Guilherme Gontijo Flores, quando criança, queria ser paleontólogo. Que nem aqueles que se vê nos filmes, que decifram os mistérios escritos nas ossadas dos dinossauros, fósseis e outros resquícios do passado do planeta. Com o tempo, Gontijo se desinteressou pela paleontologia, mas acabou indo parar justamente na, como ele mesmo se refere, “paleontologia das humanidades”: a tradução. “Eu não escavo osso, mas escavo textos antigos e os traduzo”, diz em tom de brincadeira.
Gontijo, que é atualmente professor de Língua e Literatura latina na UFPR, ganhou recentemente o Prêmio Jabuti de Tradução, graças ao seu trabalho com a obra “Anatomia da Melancolia” de Robert Burton. Esse projeto chegou até Gontijo por indicação de Caetano Galindo, tradutor de “Ulysses”, de James Joyce, que havia feito a proposta de tradução da obra de Burton para a Editora UFPR. Ele aceitou na hora.
Flores já tinha conhecimento do livro graças à indicação de alguns amigos psicólogos e de sua própria esposa, também psicóloga. Ao começar a tradução da obra, percebeu que precisava de uma estratégia para decifrar seu “fóssil”. Ele precisou fazer uma pesquisa e uma mini “bio-bibliografia” sobre cada autor que Burton cita e para os quais a língua portuguesa não tem um nome tradicional.
Além disso, outra batalha foi conseguir achar a linguagem adequada para a tradução, já que essa obra, mesmo sendo um tratado médico e teológico, é lida também como literária, graças a qualidade da escrita de Burton. Para isso, Gontijo criou um estilo híbrido, combinando arcaísmos e oralidades “para dar ao leitor a sensação de que aquilo não foi escrito agora, e que a obra tem um jeito literário”. Foi um processo de quatro anos de duração.

“Quando você conhece um livro, você não tem muita ideia de qual é o trabalho que dá traduzi-lo. Você tem uma vivência mais afetiva com ele”. E afetividade é a palavra-chave para definir o trabalho de Guilherme Gontijo como escritor, leitor e tradutor. De 2005 para cá, época em que começou a traduzir, Gontijo realizou em sua maior parte traduções de obras poéticas, o gênero pelo qual ele mais tem afeição desde a adolescência. “É uma formação afetiva que foi se tornando também um modo de trabalho”, complementa.
Dessa forma, mesmo que os livros que ele traduza não revelem necessariamente sua personalidade, eles carregam um pouco de seu universo afetivo, o universo que interessa poeticamente a ele. Além disso, compreende que a poética vai além do conteúdo de um texto, estando impressa também em sua forma. “Eu gosto de pensar que fiz uma tradução poética do Burton, pois para mim a tradução tem um caráter poético independente da obra”.
Gontijo é também autor do livro de poesias “Brasa Enganosa”, um marco do seu retorno à produção autoral. Retorno, pois ele escrevia poemas quando adolescente. Estes, porém, não escaparam do seu auto criticismo e foram todos para o lixo. Abandonou a poesia ao entrar no curso de Letras. “Eu vi que o que eu estava escrevendo não era bom e passei a me dedicar mais à tradução. Ela supria minha necessidade de produzir poesia porque eu podia, pela tradução, fazer poesia com o poema dos outros”.
Flores tem em sua bagagem cultural nomes que vão de Horácio até João Cabral de Melo Neto. Além disso, é leitor assíduo de Leminski, uma de suas referências. Mas mesmo com tantos nomes de peso e leituras densas no seu “currículo”, ele gosta de destacar que as leituras mais leves como quadrinhos e literatura mais “água com açúcar”, em suas palavras, tiveram importância em sua formação. Aos 17 anos, no entanto, desenvolveu uma postura mais séria em relação à literatura após ler “Uma Estadia no Inferno” e as “Iluminaçãoes”, de Rimbaud.
“Eu não sabia francês, mas ficava lá com uma edição bilíngue me debatendo com aquilo ali sem entender bem, querendo já meio que conferir o original. Acho que aí já começa um pouco minha vontade pela tradução”, relembra.
Ainda sobre seu lado escritor, Gontijo diz já ter se aventurado com a prosa, mas que não conseguiria, pelo menos por enquanto, escrever um romance. Seu jeito tranquilo de falar e a maneira poética e fluída com a qual escreve a vida se descompassam com a disciplina mais rígida de se escrever um romance. Gontijo escritor não gosta de amarras, nem da produção contínua, disciplinar. Essa parte ele deixa para o Gontijo paleontólogo.