As apostas já são velhas conhecidas da população brasileira, seja no jogo do bicho, nas tradicionais “fézinhas” ou naquela aposta da mega da virada, porém nos últimos anos, o setor de apostas encontrou novos meios de expansão. O Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Paraná (IEPTB/PR) realizou uma pesquisa sobre endividamento no primeiro semestre de 2025 e os dados apontam que 28,31% dos entrevistados fizeram apostas online (bets) durante este período. A pesquisa também aponta que desse percentual, 32,52% utilizaram recursos que tinham outra destinação, comprometendo o orçamento familiar.
Essa realidade ganha contornos ainda mais específicos e preocupantes quando observada no território paranaense. A pesquisa do IEPTB/PR demonstra que a imediatidade dos aplicativos, somada a uma agressiva campanha de marketing com influenciadores digitais e anúncios que associam o sucesso das apostas a um estilo de vida luxuoso, cria um ambiente fértil para a desorganização financeira. Dessa forma, evidencia-se não apenas um retrato estatístico, mas um alerta sobre uma transformação nos hábitos financeiros dos paranaenses.
Regulamentação e segurança
A legalização das apostas esportivas no Brasil, estabelecida pela Lei 13.756 de 2018, e a subsequente regulamentação do mercado a partir de janeiro de 2025 visam organizar o setor e aumentar a arrecadação governamental. Contudo, o período de maior controle e visibilidade coincide com o aumento do endividamento reportado pelos apostadores, tornando a prática um risco financeiro e questão de saúde pública. Os dados demográficos nacionais do PoderData mostram que as taxas de endividamento são mais elevadas em homens (43%), em indivíduos com apenas o ensino fundamental completo (42%) e em eleitores com renda de até dois salários mínimos (40%).
A motivação principal para começar a apostar envolve a tentativa de obter dinheiro rápido (29%) ou buscar uma renda extra (25%). Uma parcela significativa de 44% já utilizou as apostas na tentativa de quitar dívidas. Quanto às fontes de recursos para apostas, 69% dos apostadores utilizam o próprio salário. Paralelamente aos riscos financeiros, a segurança dos dados dos apostadores e a integridade dos sistemas são alvos de atenção. O engenheiro da computação e doutor em Cibersegurança pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Altair Olivo Santin, explica que por serem sistemas computacionais, as plataformas online estão sujeitas a vulnerabilidades. “Se o sistema é um sistema fechado, sem exposição para a internet, com controles adequados, com monitoramento e boas práticas de segurança, os riscos são baixos. Se esses cuidados não são tomados, levados a cabo, os riscos são altos”, afirma Santin.
Máquinas de apostas em videoloteria no Paraná. Foto: Fernanda Gomes e Francielle Lacerda
O especialista também aborda a possibilidade de fraudes e manipulações técnicas, confirmando a probabilidade de sua ocorrência em máquinas de jogos online. Ele explicou que quando o sistema não opera online, esse risco é reduzido, mas ressaltou que existem maneiras técnicas de coibir essas práticas. O engenheiro defende a existência de mecanismos robustos de auditoria, para registrar todas as transações e ações nos jogos, permitindo inspeções que comprovem a ausência de manipulação. Sobre a arquitetura dos sistemas, o professor da PUCPR pondera que tanto modelos centralizados, quanto isolados podem ser seguros, desde que bem protegidos. “A questão não é muito a arquitetura, mas é ter para cada uma os mecanismos de segurança adequados. Esse é o ponto-chave”, conclui.
Enquanto o mercado regulamentado de apostas busca se estabelecer no Paraná e no Brasil, os desafios se mostram duplos: proteger os cidadãos dos riscos e garantir que a infraestrutura tecnológica responsável pelo setor seja à prova de falhas e ataques. A própria regulamentação, no entanto, surge como um instrumento de face dupla: se por um lado é a ferramenta para organizar o mercado e proteger o consumidor, por outro, ao conferir um selo de legitimidade, pode inadvertidamente normalizar a prática e ampliar a base de apostadores.
O grande desafio regulatório, portanto, vai além de simplesmente criar regras para o jogo; é preciso construir um sistema de proteção robusto que atue de forma preventiva e corretiva. Isso implica em ir à raiz dos problemas, estabelecendo diretrizes claras para publicidade responsável, a oferta compulsória de ferramentas de autolimite e a integração dos cadastros de apostadores em situação de vulnerabilidade para impedir que eles migrem de uma operadora para outra.
No campo tecnológico, a regulamentação tem o papel crítico de transformar as boas práticas de segurança, como as defendidas pelo especialista da PUCPR, em exigências mandatórias. A arquitetura dos sistemas, seja centralizada ou isolada, precisará seguir padrões técnicos rigorosos e ser submetida a auditorias independentes contínuas. A regulamentação deve instituir um regime de conformidade similar ao do setor financeiro, em que cada transação, alteração algorítmica e tentativa de acesso sejam rastreáveis e auditáveis. Dessa forma, a regulação não só mitiga o risco de falhas e fraudes, como também constrói a confiança no mercado, que é o seu ativo mais valioso.
O monitoramento proativo de comportamentos de risco, os limites personalizáveis, a verificação rigorosa de idade e fonte de recursos são exemplos de como a tecnologia pode ser aliada à proteção social. A próxima fronteira regulatória reside justamente em tornar essas práticas dispersas em um protocolo unificado e auditável para todo o mercado, estendendo a proteção também aos ambientes físicos de apostas.
Impactos econômicos
Usualmente, as apostas são vinculadas a um meio de entretenimento, mas para quase 11 milhões de brasileiros está longe de ser uma diversão. Segundo estudo realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que entrevistou 4.860 pessoas com mais de 14 anos em 349 municípios, a região sul do país concentra a maior parcela de apostadores. Além disso, a pesquisa aponta que a prevalência de jogos arriscados foi mais alta entre pessoas com renda mensal de até um salário- mínimo, resultando em um percentual de 52,8%.
O professor de economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), José Guilherme Silva Vieira, afirma que o impacto não é macroeconômico. “Essas pessoas não deveriam apostar absolutamente nada, porque os benefícios sociais ou um salário mínimo são recursos que não são suficientes sequer para a alimentação e a moradia.” E destaca que as consequências da perda de dinheiro em apostas são significativas : “Portanto, todo centavo importa. O impacto é restrição alimentar, é dificuldade de desempenho físico no trabalho, porque está faltando comida em casa, está faltando vestimenta, é dificuldade para alimentar um filho. Os danos para as próximas gerações de famílias que ganham pouco e gastam dinheiro com apostas são imensos.”
Apesar dos debates em torno do assunto, cerca de 4 milhões de brasileiros consideram as plataformas de apostas como uma forma de investimento, segundo pesquisa realizada pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), em parceria com o Datafolha. A ideia de investimento pode ser facilmente refutada, visto que um levantamento realizado pelo Serasa aponta que 57% dos inadimplentes não estavam endividados antes de começar a apostar e 52% afirmam que perderam mais dinheiro do que ganharam.
Além disso, de janeiro a maio de 2025, a arrecadação federal com jogos de azar e apostas esportivas alcançou R$ 3,03 bilhões. A estimativa é que o faturamento das empresas alcance a marca de R$ 36 bilhões até o final de 2025. “Os vários bilhões que o pessoal da Bolsa de Valores estima que o mercado de apostas esteja consumindo, ou aqueles grupos de trabalho no Congresso na ocasião da discussão sobre a regulamentação das bets, todos esses números são fictícios. Não se tem ideia de quanto que se gasta em termos gerais, porque boa parte desse mercado é ilegal, mesmo após essa regulamentação”, afirma o professor de economia. Diante desses fatos, é notório como o mercado de apostas continua enriquecendo por meio do sofrimento de uma população aflita por qualidade de vida e estabilidade financeira.
Setor paranaense de apostas
No Paraná, o combate ao endividamento relacionado aos jogos passa necessariamente pela distinção entre o mercado legalizado e o ilegal. Para tanto, o Governo do Estado divulgou, com base em informações do Ministério da Fazenda, a lista dos sites de apostas esportivas autorizados a operar de forma regulamentada: Apostou, Bplay, Betplay, Pixbet e Nossabet. As plataformas que não constam nesta relação foram consideradas ilegais e estão proibidas de atuar no Brasil.
Para além do ambiente online, a regulamentação também se aplica aos terminais físicos de apostas. O professor da UFPR, advogado e especialista em direito regulatório, Miguel Gualano de Godoy, explica que esses equipamentos funcionam sob regime de loterias instantâneas, exigindo integração com sistema central, registro individual das apostas com identificação do usuário, certificações técnicas e auditorias externas. Segundo o especialista, essa estrutura oferece rastreabilidade completa e controle centralizado, diferenciando os equipamentos regulamentados dos caça-níqueis ilegais.
Contudo, Godoy alerta para brechas persistentes no sistema regulamentado. Ele critica a experiência do usuário nos terminais físicos, que, com estímulos luminosos e sonoros, mimetiza a das máquinas clandestinas e incentiva o jogo contínuo. A instalação em bares, ao ampliar o acesso, normaliza a prática para públicos vulneráveis. Como principais falhas, o especialista aponta a falta de limites de apostas por sessão, a carência de mecanismos robustos de autoexclusão, ferramenta de autocontrole assistido que reconhece que o vício em apostas pode comprometer a capacidade de julgamento do indivíduo, e pausas obrigatórias, além da transparência reduzida nas auditorias.
Nesse contexto, a Apostou se consolidou como a operadora exclusiva das máquinas de videoloteria (VLTs) no Paraná, posicionando-se como a protagonista da expansão do jogo legalizado no estado. Essa posição foi garantida após processo de licitação conduzido pela Lottopar no início de 2024, que desclassificou duas outras empresas concorrentes. A empresa já possui operação palpável em Curitiba, com terminais eletrônicos funcionando em ambientes que simulam café-bares, e a meta de abrir 80 novas casas até o final do ano.
O modelo de negócio, que aceita apenas Pix como forma de pagamento com valores entre R$ 0,25 e R$ 50, opera sem limites de tempo de permanência ou gasto total por parte do jogador. Embora a Lottopar e a Apostou defendam que os VLTs oferecem “entretenimento seguro” por serem auditados e operarem com banco de dados eletrônicos, a semelhança visual e a dinâmica com os caça-níqueis clandestinos permanecem notórias.
Estratégias de fidelização com alimentos e a ausência de mecanismos robustos de controle no local colocam em xeque a efetividade das políticas de jogo responsável. Enquanto o estado avança na regulamentação do setor, especialistas defendem maior rigor nos mecanismos de proteção aos apostadores, harmonizando o controle fiscal com políticas de prevenção ao vício e superendividamento, fundamental para que a expansão acelerada das apostas não supere a capacidade de proteção aos cidadãos.
A equipe do Jornal Comunicação visitou uma das lojas físicas da Apostou. Confira o relato aqui.
A busca pela vitória
A pesquisa da Unifesp aponta que existem 3 grupos de apostadores que correm mais risco de desenvolver o transtorno do jogo (distúrbio caracterizado pelo desejo incontrolável de jogar, apesar das consequências negativas): os adolescentes, as pessoas de baixa renda e os adeptos das plataformas de apostas online. Embora, segundo a regulamentação, sejam proibidas as apostas para menores de 18 anos, os adolescentes compuseram 4% dos apostadores identificados. Um exemplo deste número é o historiador Nino Haida, que conheceu o mundo das apostas durante a adolescência. “Eu já tinha apostado antes quando eu tinha 16 a 17 anos, eram cassinos que giravam em torno de skins em um jogo que eu tenho, o CS, que era o Counter-Strike na época. Eu tinha ganhado bastante dinheiro e perdi tudo.” Atualmente, aos 25 anos, Haida voltou a ser um apostador habitual.
O historiador foi atraído por um tipo de aposta cada vez mais recorrente: as apostas esportivas. Optando por fazer apostas múltiplas, acreditando em um retorno financeiro maior, Nino estima um valor de R$ 30 por jogo, o que já o levou a apostar aproximadamente R$ 1.000 em um mês. Para ele, a ganância para ganhar mais recompensas leva ao vício. “Depois de um tempo, você não tem mais que sentimento, é mais um vício. Então, quantos mais heads (apostas perdidas) você tem, mais você fica cobiçando ganhar alguma coisa, ganhar uma aposta.” Autodeclarado adicto, ele chega a uma constatação: “Hoje em dia, eu não consigo ver um jogo de futebol, sem ter colocado pelo menos R$ 5,00 e apostado alguma coisa, é um sentimento complicado.”
O psicólogo Filipe de Veer analisa que a sociedade está normalizando o vício em apostas sob um viés de diversão e recompensas. Para ele, a facilidade e constante disponibilidade das plataformas geram um forte padrão de manutenção. “Vai havendo uma hiperestimulação, os jogos têm um padrão de estudo comportamental, eles trabalham bastante com reforço intermitente, um reforço onde eles associam a vitória como se fosse uma virtude, associação de ganhos, de conquista. Além da própria sensação de gatilho rápido, de recompensa, vislumbrando o que pode ser feito com o dinheiro.”
Um fator determinante para a proliferação das casas de apostas são as propagandas. Tornou-se habitual consumi-las nas emissoras de televisão, nas plataformas online e por meio de personalidades influentes como Neymar Jr. e Virginia Fonseca. A sedução não se restringe às telas; os estabelecimentos físicos propiciam ambientes confortáveis para os jogadores, desde as cadeiras até “cortesias” como café e pizza.
As diversas formas de atrair jogadores, alimentam a indústria de forma inquantificável, o Brasil já é 5º maior mercado de bets do mundo. “Está sempre disponível, e você pode começar com valores baixos, tem toda uma estrutura de sedução, eu acho que a chance de uma pessoa que faz uso prolongado não desenvolver algum padrão de vício é bem reduzida.” Afirma o psicólogo.
Por meio de um pedido via Lei de Acesso à Informação (Lei n° 12.527/2011), o Jornal Comunicação solicitou à Secretaria de Saúde do Paraná dados referentes ao número de atendimentos ambulatoriais e/ou internações hospitalares registrados no estado, entre os anos de 2023 e 2025, com diagnóstico principal ou secundário correspondente ao CID-10 F63.0 – Jogo patológico (ludopatia). Mesmo após o prazo estipulado por lei de 20 dias, com possibilidade de prorrogação por mais 10 dias, e as tentativas de contato, até o momento de publicação da matéria não houve resposta. Segundo a Ouvidoria da Secretaria de Saúde do Paraná, o pedido tem prazo estipulado de 30 dias, com prorrogação de mais 30. Porém, o Sistema Integrado para Gestão de Ouvidoria Geral do Estado (Sigo) informa que o protocolo 188263/2025, aberto em 28 de outubro, teve seu prazo final em 17 de novembro, sem prorrogação.
Um paradigma regulatório
A consolidação do setor de apostas no Paraná e no Brasil dependerá da capacidade do Estado e das operadoras de garantirem que a expansão do mercado seja acompanhada pelo bem-estar da população. O desafio regulatório requer uma mudança de estratégia: tratar o mercado de apostas não como simples atividade econômica, mas como questão de saúde pública que demanda políticas preventivas, integradas e contínuas. A legitimidade conferida pela regulamentação deve ser um respaldo não somente para o setor empresarial, mas para os consumidores deste mercado.
O investimento em campanhas conscientizadoras, as quais deixarão de lado frases ineficazes como “jogue com responsabilidade”, é um dos fatores que vão guiar o futuro do mercado de apostas, visto que o descontrole e prejuízos aos consumidores requerem uma revisão de políticas regulamentares. A acessibilidade desenfreada a um setor tênue, que caminha entre diversão e destruição, é uma arma poderosa para quem quer lucrar independente de qualquer valor ético.
Afinal, as pessoas que jogam no ônibus a caminho do trabalho, os que buscam uma fuga dos problemas financeiros ou aqueles que começam achando que vai ser somente uma diversão, não são os culpados. Os investidores e defensores da expansão do mercado de apostas, precisam estar cientes que este setor não diz respeito somente a economia, é importante que não existam outras Ângelas Maria. A eficácia será comprovada ao conseguirem frear a transformação de apostadores em pacientes e de sonhos em dívidas.
Reportagem: Fernanda Gomes de Siqueira, Francielle Lacerda, João Marcelo Simões, Lee Pedroso, Leticia Negrello, Maria Flávia Ferreira e Matheus Neme.
Texto: Lee Pedroso e Maria Flávia Ferreira.
Revisão: Fernanda Gomes de Siqueira e Francielle Lacerda
