Quentin Tarantino era um diretor iniciante quando cinco pessoas decidiram, em 1992, criar o Festival de Teatro de Curitiba. Passadas três décadas, o evento confirma importante papel na cultura brasileira.
Tudo começou com o final do espetáculo New York, dirigido por Edson Bueno. Os jovens Carlos Eduardo Bittencourt e Leandro Knoplholz, após ficarem maravilhados com a peça, decidiram criar o Festival de Curitiba para fomentar o teatro na capital paranaense. Na época, mesmo com uma boa estrutura para receber espetáculos, a cidade possuía uma oferta muito restrita de apresentações. Em junho de 1992, Carlos, Leandro e mais três sócios realizaram a primeira edição do evento, com a primeira peça sendo encenada na Ópera de Arame. Daí em diante, o evento evoluiu a ponto de se tornar o maior festival de arte cênicas da América Latina.
A última edição presencial do evento ocorreu em 2019. Dentre as diversas peças que marcaram a edição, a homenagem a Elza Soares obteve destaque. Elza demonstra as múltiplas facetas da cantora e a sua vida marcada por grandes reviravoltas. Outra apresentação marcante da edição foi a peça Psicose 4h48, que adotou uma pegada mais psicológica. Ao acompanhar a história de uma jovem deprimida e suicida, a história aborda diversas questões médicas e sociais.
Agora, a 30ª edição terá a participação do cantor Emicida, com o show AmarElo, baseado no álbum de mesmo nome lançado em 2019 pelo músico. A obra também inspirou um documentário, que foi lançado em 2020 na Netflix (trailer abaixo). Com músicas que abordam questões raciais, sociais e sentimentais, o AmarElo é considerado um grande marco para a cultura brasileira.
Confira mais sobre as atrações do evento. Você pode ainda baixar o Guia Oficial do Festival de Curitiba.
Readequação à pandemia
Durante o isolamento social, a organização do Festival pensou em estratégias e formatos para se adaptar à incerteza que o vírus trouxe, como descreve a diretora evento, Fabíula Bona Passini. Com a vacinação e a melhora do cenário, a 30ª edição vai ser realizada quase como os eventos anteriores.
O Festival segue os protocolos públicos de álcool em gel, distanciamento, uso de máscaras, além da testagem de pessoas da equipe, em caso de sintomas. “Se acontecer de novo [uma piora da pandemia], vamos estar mais preparados para saber como reagir”, diz a diretora.
Uma das mudanças provocadas pela pandemia aconteceu na mostra Fringe, criada na sétima edição do Festival. A atração se inspirou no fringe escocês de 1947 e abriu as portas do Festival de Curitiba para outras companhias do Brasil e do mundo. Até 2019, costumava ser uma mostra paralela, que movimentava por ano cerca de cinco mil artistas. As peças eram espalhadas pela cidade e região metropolitana, gratuitas ou com preços acessíveis.
Em 2020, o projeto do Festival foi atualizado para um evento de rua, pensado para setembro daquele ano. Como o Fringe reúne muitos artistas de fora, a organização considerou o risco e o transformou em uma plataforma digital para conectar trabalhadores das artes cênicas, que será lançada ainda na próxima semana. É uma rede social do teatro.
Para a edição deste ano, foi criado o Festival na Rua, como forma de garantir apresentações também em espaços abertos. “O Festival na Rua acaba suprindo de alguma forma o que o Fringe trazia”, diz a coordenadora da mostra, Carol Scabora. Nas outras edições, era o Fringe que ocupava a maior parte dos espaços públicos ao ar livre. Ela também espera que, nos próximos anos, o Festival de Curitiba tenha programação na rua e em teatros na mesma proporção.
A mostra dispõe de 60 companhias locais, 11 espaços e 130 apresentações, reunindo mais de 400 artistas, e tem o objetivo de democratizar a cultura. Não há cobrança de ingressos e o público fica acomodado de forma que seja acessível a todas as classes sociais.
Carol relata que a relação do Festival com as pessoas em situação de rua melhorou. Ela conta que em edições anteriores havia embates com essa população, quando o Fringe se instalava em um espaço público. Mas entendeu que é necessário abrir o teatro para aqueles que ocupam a rua.
“Nos dois primeiros dias do evento, há mais ou menos três ou quatro edições, a gente vai até o Centro POP [Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua] no horário do almoço ou do café, leva um espetáculo lá pra dentro e o guia do evento, e explica como localizar os espetáculos de rua. O teatro também é pra eles”, relata.
O Festival busca a inclusão também na equipe, que integra pessoas surdas e da comunidade trans, e na programação, que apresenta peças com recursos de acessibilidade.
Retorno presencial do teatro
“Eu tenho a sensação de que as pessoas vão voltar mais felizes”, conta Fabíula sobre o retorno do Festival. A diretora espera que o evento contribua para que as pessoas saiam da pandemia melhores. “A arte é muito sensível, o público é mais receptivo nesse sentido”, diz.
Embora no início da crise sanitária existisse o medo de que atividades como o teatro nunca voltassem da mesma forma, para Fabíula, a percepção dos cidadãos não mudou após o isolamento. “Era um dos nossos receios. Mas percebemos na bilheteria que o público também está ansioso para voltar”.
Para Carol Scabora, o teatro é a arte do encontro, da reunião entre plateia e artista pelas sensações. “Quando você está na primeira fila, às vezes a saliva do ator te alcança. Essa emoção, o suor escorrendo com a luz forte, a internet não pode passar”, afirma. De acordo com a coordenadora, no ambiente digital a nossa atenção é perturbada de várias maneiras: é diferente estar na frente da obra no agora, ao vivo.
De acordo com Fabíula, a pandemia mostrou que um artista consegue se reinventar e que a classe artística é muito desvalorizada pelo poder público, mas também deixou claro como as artes são fundamentais para a vida.
Reportagem de Murilo Bernardon e Roger Souza Castro.