Quem vê cara, não vê coração. Já quem prefere ver a Vila 29 de Outubro à distância, na região da Caximba, em Curitiba, não consegue enxergar uma comunidade em constante transformação. São cerca de 1,6 mil famílias escanteadas pela capital do Paraná, nos arredores de onde, há 15 anos, funcionava um aterro sanitário.
O pastor Jorge Nunes conhece e é conhecido por todos ali. Ele anda pelas ruas de chão batido vestindo um colete refletor, daqueles usados por agentes de segurança pública em regiões tomadas por desastres. A Caximba poderia ser um desses lugares, se esgoto a céu aberto, alagamentos e falta de água e de luz para quem mora na periferia fossem vistos como calamidade.
Depois de muito tempo relegada à indiferença do poder público, a “vinte e nove” ganhou a atenção da prefeitura de Curitiba. Hoje, tem até programa com nome próprio: Projeto Gestão de Risco Climático Bairro Novo do Caximba.
Se tudo correr conforme os planos da prefeitura, o lugar deve se tornar o próximo cartão postal climático da cidade. O investimento é da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) e ocupa a casa dos € 47,6 milhões – quase 300 milhões de reais brasileiros. Desse total, quase R$ 60 milhões vêm do município.
Uma volta na Caximba
Há buracos por todos os lados: em frente aos portões das casas, na “calçada”, no meio das vias. Moradores e trabalhadores da prefeitura se revezam para usar as passagens que contornam as retroescavadeiras e os caminhões. A lama remanescente da última pancada de chuva dificulta as coisas.
O pastor Jorge é presidente da Associação Amigos do Caximba. Ele testemunha, naquele instante, a primeira rua da comunidade a ganhar pavimentação. O líder popular acredita que, dentro dos próximos meses, todas as vias da ocupação estarão cobertas por asfalto. A expectativa parece ser compartilhada por quem tenta fazer vingar o comércio no bairro: borracharias, oficinas, barracões de reciclagem, mercearias e restaurantes enfrentam o urbanismo precário da região.
Entre o cavoca aqui e ali, um grande buraco no meio de uma das ruas de terra se destaca pelo tamanho. Retangular, extenso e alagado, deve dar lugar a um trecho das galerias pluviais. Elas são importantíssimas: tubos que, sob o solo, drenam a água da chuva e a transportam para rios e córregos. Se tiverem manutenção regular, impedem que as vias, casas e comércios inundem a cada previsão de mau tempo.
Saídos da palafita
A Gallinula chloropus, ou galinha-d’água, pesa uns 340 gramas e mede entre 30 e 38 centímetros. A crista vermelha se mistura à cor do bico e é o que mais chama a atenção. Ela costuma habitar lagos, lagoas, canais e pântanos. Na Caximba, vive nas cavas – buracos enormes, de 15 a 20 metros de profundidade, escavados décadas atrás para a extração da argila que abastecia fábricas de tijolos.
Com o tempo, as empresas abandonaram essas crateras e elas encheram d’água. Na região de Curitiba, todos os anos a defesa civil alerta para o perigo de afogamento nas cavas. Hoje, elas formam o pântano da Caximba, onde há de tudo: peixes, mato, lixo, esgoto e galinhas-d’água.
Além das cavas, a ocupação está em contato com outro corpo d’água. O rio Barigui nasce na serra da Betera, ao norte de Curitiba, e atravessa dezoito bairros da capital e vários parques, como o Tanguá, o Tingui, o Guairacá e o próprio Barigui. No final, margeia a Caximba e deságua no Iguaçu. O encontro das bacias é protegido por uma Área de Preservação Ambiental (APA).
Por ali, a prefeitura quer emplacar o projeto de um parque linear. A qualidade d’água preocupa. O lixo se acumula às margens, somado ao esgoto despejado no curso. O projeto do governo municipal quer desocupar 200 metros a partir do leito do Barigui para implantar um corredor verde. Enquanto nada disso acontece, uma lixeira improvisada com tábuas usadas tenta remediar a situação, iniciativa dos moradores.






PlanClima
Pode ser difícil falar sobre a importância da energia sustentável, descarbonização e transição energética para quem, até pouco tempo, convivia com esgoto a céu aberto, gatos na luz elétrica e mangueiras de borracha conduzindo a rede de água clandestina. Ano passado, a Agência Pública apontou, a partir de um levantamento do governo federal, que 3 a cada 4 brasileiros vivem nas cidades sob maior risco de alagamento, inundação, enxurrada ou deslizamento de terra.
De acordo com a nota técnica nº 1/2023, que identifica os municípios brasileiros mais suscetíveis a desastres naturais relacionados a chuvas, o Paraná tem 63 mil pessoas em áreas de risco geo-hidrológicos mapeadas – 80 cidades paranaenses estão na lista das mais suscetíveis à ocorrência de deslizamentos, enxurradas e inundações. Nelas, vivem 6,2 milhões de pessoas.
Em 2020, o governo municipal publicou o Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas, o PlanClima. O documento lista uma série de objetivos climáticos que a capital quer alcançar até 2030 e 2050. O sonho de Curitiba, segundo o plano, é se tornar “uma cidade neutra em emissões, resiliente frente aos riscos climáticos, inclusiva e vibrante, com engajamento e responsabilidade compartilhada entre toda a sociedade”.
As metas de adaptação incluem a implementação de ações como a revisão do plano de macrodrenagem, a ampliação do mapeamento de áreas prioritárias para permeabilização do solo urbano, e o aprimoramento do sistema de alerta e monitoramento de eventos extremos. De acordo com o prefeito Eduardo Pimentel (PSD), na Caximba, também serão construídos um dique para contenção de cheias e um parque linear.
‘Uber não entra na Caximba’
As obras do “bairro novo” começaram há três anos. Até outubro deste ano, 27% das casas previstas foram entregues – 322 de 1.211. Segundo a prefeitura, outras 439 estão em construção e mais 440 em licitação.
As novas moradias são divididas em grandes conjuntos habitacionais. Elas são padronizadas, têm dois andares e ficam coladas umas às outras. As fileiras de prédios pequenos são dispostas em paralelo. Quando se olha através da grade branca que cerca cada unidade, vê-se outra casa exatamente igual do outro lado do calçadão de paver. Para quem morava na palafita, sempre sujeita à cheia do Barigui, é um grande passo na direção da moradia digna.
Nem todas as famílias vão migrar para as casas novas. Além da realocação, a Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) quer regularizar os terrenos de parte das moradias que já existiam. Quem já foi realocado vê melhoria na qualidade de vida. Enquanto isso, aqueles que aguardam na fila continuam a conviver com os desafios da Caximba.
Ainda há muita gente no “fundão”, na região das cavas. As moradias esvaziadas foram demolidas, uma por uma. Por isso, na parte onde o projeto da prefeitura ainda não chegou, as palafitas e barracos que continuam de pé dividem espaço com os escombros dos antigos vizinhos. Para quem sobra, não há calendário claro com a previsão de mudança.
A casa de Rose*, 49, já foi inundada duas vezes. “Na primeira vez, ficou só no quintal. Na segunda, entrou dentro da minha casa”, conta. A proximidade com as cavas e a depressão no relevo facilitam a elevação do nível d’água a cada chuva. “Ergui tudo o que eu podia erguer”, conta sobre as mobílias que conseguiu salvar. O pastor Jorge Nunes diz que, anos atrás, a água chegava a subir 1,5 m da base das casas.
A energia clandestina custa caro. Rose diz que “uma hora vem fraca, outra hora vem forte demais” e, por isso, é comum que os eletrodomésticos queimem. Quando chove, a luz costuma acabar de vez.
Apesar de ser atravessada por um rio, a água também não chega a todos os moradores da Caximba. Quem ainda habita a parte mais precária da ocupação continua sendo abastecido pela rede clandestina: uma ramificação de mangueiras de borracha que se espalham entre os barracos.
A espera por uma vaga na fila das novas casas causa agonia. A falta de transparência confunde. “Tem pessoas que nem moravam aqui e já ganharam casa. A gente, que precisa realmente, não”, relata Rose. A falta de um calendário claro desampara os planos de quem permanece na expectativa. “Não tem previsão, não dão explicação pra gente, não dizem nada”.
Os desafios para quem mora na Caximba também vêm de fora. Apesar dos empreendimentos que a população da 29 de Outubro se esforça para sustentar, a visão de quem não conhece a comunidade é dura. “As pessoas me falaram que não conseguem emprego se botarem o endereço da Caximba”, conta Jorge Nunes. “É muito difícil Uber que entra aqui, eu tenho que esperar lá na avenida”, diz Rose. O bairro aparece como “área de risco” para os motoristas de aplicativo.
A ‘Vinte e Nove’ permanece
Apesar de todas as dificuldades, quem vive na Caximba mantém a ponta firme. Cassandra Barbosa, 41, é uma das moradoras que já não vivem “lá embaixo”. Ela está há oito anos na ocupação e, agora, tem acesso à água potável, luz e chuveiro. “A gente tomava banho de canequinha”, lembra.
Vinda do interior paulistano, trabalhou a vida inteira cortando cana. Hoje, é aluna do curso técnico em enfermagem. De bicicleta, ela chega todos os dias às 23h50 em casa e diz se sentir segura. “Eu quero crescer aqui, porque foi aqui que eu consegui todas as minhas coisas”, confirma.
Rose, apesar do difícil acesso à luz e à água, também zela pelo que já conquistou. A moradia, os animais de estimação, o quintal: tudo tem muito valor quando qualquer coisa é escassa. Ela diz que gosta de viver ali. “Minha casinha é bem arrumadinha. Gastei tudo o que eu tinha e o que não tinha”, conta.
Com frequência, o pastor Jorge Nunes faz lives apelando à comunidade pela preservação do Barigui. Ela também dá outros recados nos vídeos ao vivo, informando a população sobre serviços de saúde, assistência social e acesso a direitos básicos que o poder público deveria garantir. A Caximba permanece no escanteio, mas reage como pode.
*Nome fictício. A reportagem optou por preservar a identidade das entrevistadas que ainda aguardam por uma vaga nas novas moradias.


