#2 - CRISE HÍDRICA

Problema afeta as cinco regiões do Brasil​. País abriga 12% de toda a água doce do planeta, mas cidades sofrem com crises de abastecimento ​

A dona de casa Maria Tereza tem 73 anos e é moradora de Curitiba, no Paraná. O estado passou recentemente por uma crise hídrica expressiva, que fez parte do que foi considerado pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) a pior crise hídrica do Brasil desde 1931. Maria conta que não aguentava mais a falta de água em casa. “A água é tudo, não dá pra ficar sem porque é a melhor coisa que temos, ela é essencial”, afirma. “O Brasil é um país tão rico, não devia faltar água, não é mesmo?”.

A pergunta de Maria Tereza é respondida pelo geógrafo e pesquisador em processos hidrológicos, Rodrigo Marcos Souza. Ele explica que grande parcela da água do mundo está no Brasil, ainda que distribuída de forma irregular pelo território. Algumas regiões têm água em abundância, enquanto outras sofrem com a falta dela. A Amazônia, por exemplo, acumula 80% de toda a água brasileira, segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Isso faz com que outras regiões, como o semiárido, tenham déficit hídrico. “Se considerar o território como um todo e pegar a média, parece que tem muita disponibilidade desse recurso”, explica Souza. 

De acordo com o coordenador de estudos setoriais da ANA, Thiago Fontanelles, uma crise hídrica tende a acontecer por três fatores. 

“Pode acontecer uma mudança hidrológica negativa do ponto de vista de chuvas e vazão, ou pelo aumento da quantidade de usos, que ocorre pelo desenvolvimento econômico e desenvolvimento dos setores dos usuários. E o terceiro motivo é a escassez de investimentos em infraestrutura”
Thiago Fontanelles
Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA)
“Pode acontecer uma mudança hidrológica negativa do ponto de vista de chuvas e vazão, ou pelo aumento da quantidade de usos, que ocorre pelo desenvolvimento econômico e desenvolvimento dos setores dos usuários. E o terceiro motivo é a escassez de investimentos em infraestrutura”
Thiago Fontanelles
Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA)

Os três fatores se combinam de variadas formas para instaurar uma crise em uma bacia e afetam tanto a chamada infraestrutura cinza, de construção humana, quanto a infraestrutura verde, rios e mananciais.

Maristela de Paula também é moradora de Curitiba e reclama sobre a forma como a crise hídrica do Paraná foi gerenciada: “Acho que deveriam ter previsto e feito um planejamento anterior à crise”. Quando questionada sobre por que não houve planejamento prévio, como sugeriu a moradora, a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) declarou que segue um Plano Diretor de Abastecimento para planejar e se preparar para crescimentos populacionais e da própria cidade. A companhia explica:  “Manter um sistema de abastecimento para fazer frente a uma crise hídrica dessa magnitude exigiria investimentos muito altos que resultam em custos para toda a sociedade, na forma da tarifa, que seriam injustificados principalmente devido ao tempo de recorrência desse tipo de evento”. 

Vários Brasis

Um país continental como o Brasil é lar de várias versões de si mesmo, onde existem diferentes características para cada pedacinho dele. É o que afirma o engenheiro hidráulico Cláudio Krüger: “O Brasil é um país muito grande e os problemas hidrológicos dele são muito diferentes entre as regiões”. Quando se fala em recursos hidrológicos, não é diferente. O país tem 12 regiões hidrográficas espalhadas pelos estados.

NORDESTE

Projeto de transposição do Rio São Francisco teve início em 2008 e se tornou o maior empreendimento de infraestrutura hídrica do país. Obra diminui impacto da seca na região, mas não irá resolver a situação

O Nordeste foi também anfitrião de 80% das secas que aconteceram entre 2017 e 2020 no território brasileiro, segundo a ANA. O órgão também apontou uma tendência de diminuição da disponibilidade de água nos próximos 20 anos na região. Todos os nove estados fazem parte do chamado polígono das secas, região caracterizada pelo baixo volume de chuvas, solo árido e água subterrânea indisponível.

Para acompanhar e tentar encontrar soluções a longo prazo para o problema das secas, o governo federal, junto dos governos dos estados do Nordeste, criou o Monitor de Secas. O diretor da agência pernambucana de águas e clima, Marcelo Asfora, explica a importância de ações como esta: “A seca passa a ser monitorada, você passa a entender como ela evolui e tem indicadores da severidade dessa seca, o que permite que o governo e a sociedade se preparem para um evento extremo”.

SUDESTE

Segundo ONG SOS Mata Atlântica, Rio Tietê recebe cerca de 600 toneladas diárias de esgoto. Em 2020, relatório identificou 150 quilômetros de trecho morto do rio

Enquanto isso, no Sudeste, o que tira o sono dos gestores de águas é a alta concentração populacional. A região representa pouco mais que 10% do território e abriga 42% da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, o índice de uso de água por pessoa no Sudeste é o mais alto do país, com 143 litros por morador, contra uma média de 116 litros por brasileiro. O Sul, Nordeste, Norte e Centro-Oeste gastam, respectivamente, 121, 83, 84 e 114 litros diários por pessoa. Segundo levantamentos feitos pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), os mananciais da região também sofrem com a qualidade da água.

Muito já foi sugerido para tentar resolver os problemas hídricos dos mineiros, paulistas, capixabas e fluminenses. Vale citar a ideia do ex-governador do Amazonas José Melo, em 2015, de fazer um sistema que levasse a água do Rio Amazonas para São Paulo. É uma possibilidade, mas o problema é que não vale a pena, como explica o pesquisador Rodrigo Souza: “Trazer água da Amazônia para o sudeste é uma obra de engenharia caríssima, então temos que buscar um sítio hidrológico mais próximo”.

Segundo estudos em conjunto realizados pela WRI Brasil e mais seis organizações, a solução está na recuperação das áreas florestais degradadas. “Recuperar florestas e outros ecossistemas potencializa a eficiência de infraestruturas convencionais, aumentando a capacidade sazonal dos reservatórios e sistemas de abastecimento. Isso torna o uso de um recurso essencial como a água potável mais eficiente, reduzindo emissões de carbono e, de quebra, gerando benefícios econômicos”, traz o texto publicado no blog da organização.

A solução dialoga com o problema apontado pelo geógrafo Rodrigo Marcos como uma das razões pelas quais o Brasil enfrenta problemas com água. Ele explica que os efeitos da intensa ocupação humana ao meio ambiente impermeabilizam o solo e alteram o ciclo da água. Não tendo mais como infiltrar no solo, agora a água escoa direto para o rio, que enche e esvazia mais rápido. Dessa forma, não há reserva de água subterrânea.

Centro-Oeste

O Centro-Oeste é o lar de grande parte do cerrado, bioma considerado berço das águas. Segundo o Museu do Cerrado, iniciativa da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FA/UnB), o bioma tem 23,6% de todas as nascentes brasileiras. Neste solo, localizam-se lençóis freáticos importantes que mantêm a perenidade de vários rios e garantem recursos para a irrigação e abastecimento dos reservatórios de parte das hidrelétricas do país. Tudo isso vem também da página do Museu do Cerrado, onde é apontado que vários fatores contribuem para o déficit hídrico. Entre os principais estão o crescimento das cidades e consequente impermeabilização do solo, ocupações irregulares e falta de investimento do governo.

DE NORTE A SUL

Enquanto a Região Norte acumula 60% de toda a água potável do país, no Sul, abastecimento de hidrelétricas e irrigação são problemas recorrentes

Já no Norte do país, tem muita água e pouca gente. A região acumula 60% da disponibilidade hídrica do Brasil e é berço do aquífero de Alter do Chão, que fica no Pará e é um dos maiores reservatórios de água subterrânea do mundo. A densidade demográfica é considerada baixa, de 4,12 pessoas por quilômetro quadrado, segundo o IBGE.

Mesmo com a grande abundância de água, o pesquisador Rodrigo Marcos afirma que a Amazônia também enfrenta problemas hidrícos. “Assim como tem cheias absurdas, tem também os momentos de seca. Você não vai ver o Solimões secar, mas tem afluentes que ficam sem água”, explica. Estes fenômenos são causados por três principais razões, de acordo com estudo apresentado no XV Congresso Brasileiro de Agrometeorologia: o aumento da temperatura no Oceano Atlântico, aumento da quantidade de queimadas e outros fenômenos climáticos.

A região Sul, por sua vez, enfrenta como principais desafios problemas relacionados às cheias, abastecimento de hidrelétricas, qualidade de água e irrigação. Além disso, outro problema expressivo na região é o gerenciamento dos recursos para abastecimento urbano nas regiões metropolitanas. Quem sofreu com este último problema foi Leda Biana, que mora no Paraná.

Direito quase fundamental

Leda Biana adora morar no bairro Guarituba, que fica em Piraquara, parte da região metropolitana de Curitiba. A cidade é berço das nascentes do Rio Iguaçu, de diversos mananciais e é responsável por 50% do abastecimento de água da Grande Curitiba, segundo o IBGE. Mesmo com a grande disponibilidade de água, quando Leda se mudou para o Guarituba, em 1995, o recurso não foi oferecido em boas condições. 

“Na época em que eu vim morar aqui não tinha nem água encanada, nem saneamento básico. Nós tínhamos um poço que cavamos na frente da casa e ali brotava aquela água que a gente usava para limpeza geral e higiene. Na época, eu podia comprar galão de água mineral, mas tinha vizinhos que não podiam, então nós dividiamos a água”
Leda Biana
Moradora do bairro Guarituba, em Piraquara

A situação vivida por Leda já foi um retrato de um dos principais problemas com a água na região Sul: a distribuição. Hoje, já faz vários anos que a casa de Leda tem acesso à água encanada e tratada, mas este cenário não é uma questão específica da cidade. Quando é observado um cenário mais amplo, descobre-se que, em 2022 no Brasil existem 35 milhões de pessoas sem acesso à água tratada, de acordo com o Instituto Trata Brasil (ITB).

Ainda segundo o ITB, o problema do saneamento no Brasil é ainda maior que o da água tratada, com cerca de 100 milhões de brasileiros sem rede de coleta de esgoto. Para Leda, a pior parte da situação em que vivia é a precariedade da saúde: “Era uma coisa horrorosa porque não tinha saneamento básico também. O poço ficava na frente da casa e nos fundos  tinha a fossa pro  banheiro. As crianças estavam bastante doentes e a gente percebia que era devido a água praticamente contaminada”. 

Políticas públicas

Mesmo que a água potável seja uma necessidade básica do ser humano, ela ainda não é considerada um direito fundamental pela Constituição. Somente em 2018 foi proposto o acréscimo do recurso no artigo 5º da Constituição Federal. A PEC 04/2018 sugere que seja adicionada à Constituição que: “é garantido a todos o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar meios de vida, bem-estar e desenvolvimento socioeconômico”. Em 2021, a proposta foi aprovada pelo senado e agora tramita na Câmara como PEC 6/21.

Esta movimentação política é um passo na direção do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) número 6, que estabelece como meta “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos”. Quando destrinchada, a ODS abrange grande parte das questões relacionadas à água, colocando como objetivos menores garantir o acesso universal à água potável, ao saneamento e à higiene, reduzir pela metade a quantidade de água usada e devolvida ao meio ambiente sem tratamento, melhorar a eficiência de todos os usos da água e da gestão dos recursos hídricos e proteger e restaurar ecossistemas que envolvem água. Além disso, também é apontada a importância de apoiar programas e atividades de outros países com objetivos relacionados à ODS e orientar e apoiar a participação da população no processo.

Esta é também a recomendação da Organização das Nações Unidas quanto aos direitos humanos. Em julho de 2010, ocorreu a Assembleia Geral da ONU, na qual foi definido que o acesso à água tratada e saneamento são necessários para que todos os direitos humanos sejam atingidos. Desde então, a organização solicita que os Estados e organizações internacionais desenvolvam soluções tecnológicas e financeiras para que todos os países possam assegurar “água potável segura, limpa, acessível e a custos razoáveis e saneamento para todos.”

Leda conta que, ao redor de sua casa, havia pessoas que não tinham recursos para fazer um poço, então, tinham ainda menos acesso. Mesmo quando foi instalada uma torneira comunitária e encanamento para Leda e seus vizinhos, muitos deles continuaram sem o recurso porque não podiam pagar por ele.

Por conta disso, o artigo 29 da lei 11.445 de 2007, conhecida como Lei do Saneamento, diz: “Os sistemas tarifários devem ser inclusivos, garantindo o acesso de todos aos serviços e promovendo a equidade”. Isso gera a criação da chamada tarifa Social, ou, dependendo da região do país, tarifa reduzida, popular, favela, etc. Trata-se de um desconto no preço da água dado às famílias de baixa renda.

No entanto, segundo declaração do professor titular aposentado da UFABC, Ricardo Moretti, na live do Ondas, os critérios de seleção dos beneficiados pela tarifa são muito complexos e é necessário simplificá-los. As falhas também são apontadas pelo integrante do Instituto Democracia e Sustentabilidade, Guilherme Checco, nos dados apresentados em audiência pública feita por meio do YouTube. Segundo ele, os critérios utilizados pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) abrangem apenas cerca de 24% das famílias que precisam do auxílio.

Moretti aponta que, após a experiência vivida com a pandemia da covid-19, foi percebido que problemas de higiene e saneamento em lugares específicos acabam se estendendo para toda a população, e completa: “Não há barreiras físicas que separam os que têm dos que não têm, então, ou a gente pensa em soluções que atendam todos e todas, ou toda a gente vai estar em risco”.

Em declaração dada no Youtube do Instituto Trata Brasil, o presidente executivo da organização, Edison Carlos, disse: “Centenas de prefeitos ainda não se aperceberam que muitos dos gastos que a prefeitura tem em saúde pública poderiam ter sido resolvidos construindo as redes de água, de coleta e estações de tratamento de esgoto”. Tudo isso vai de encontro e comprova as declarações de Leda de que é impossível viver com saúde sem água tratada e saneamento básico.

Para as casas e além

A moradora de Curitiba Maristela de Paula tenta sempre economizar água em casa e incentiva a família a fazer o mesmo. “A gente sabe que a água não é uma fonte infinita e que um dia realmente vai acabar”, conta. Ela evita o desperdício tomando banhos curtos e não gastando muito na torneira. Assim como Maristela, Cristiano é morador de uma cidade do Paraná, São José dos Pinhais, e também respeitou o período de racionamento de água no último ano sem desperdiçar, como via seus vizinhos fazendo ao lavar calçadas e carros assim que a água chegava.

Mesmo que o gasto de água para abastecimento urbano não seja o principal no país, cuidados como os de Maristela e Cristiano fazem grande diferença, de acordo com o engenheiro hidráulico e professor da UFPR, Cláudio Krüger. “Os racionamentos acabam deixando um ‘legado positivo’, pois, ao sofrer a falta da água, as pessoas passam a usá-la de forma mais econômica. Isso também pode ser válido na agricultura, pelo uso de métodos de irrigação mais eficientes”, explica.

De acordo com a Sanepar, o racionamento não é uma solução, nem a primeira medida tomada quando se depararam com a crise, mas ele é adotado por dois principais motivos: “Primeiro, para assegurar níveis mínimos de preservação de água nas barragens, uma vez que as previsões meteorológicas indicam períodos longos de chuvas abaixo da média; e, segundo, para distribuir a água de forma igualitária para todas as regiões, a fim de não prejudicar moradores de locais mais distantes dos centros de preservação e distribuição de água”. A Sanepar também afirma que foram feitas mais de 20 ações, entre captações emergenciais de água e antecipações de obras que já estavam previstas e que aumentaram o volume de água para o abastecimento público.

Contudo, o abastecimento urbano não é o maior uso da água no Brasil. A irrigação é a primeira e representa 50% da retirada total de água em 2020 e 72% da quantidade destinada à agricultura, segundo a Agência Nacional de Águas. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), quase metade de toda a água empregada no campo é desperdiçada.

Outros grandes usos dos recursos hídricos ainda não mencionados são relacionados à indústria e criação de animais, enquanto o abastecimento urbano representa 25% do total em 2020.

Paralelo a isso, também existe uma grande quantidade de água que é perdida, inicialmente no processo chamado de “evaporação líquida”, que é a quantidade de água que evapora de reservatórios em decorrência de fatores ambientais, sendo o segundo maior gasto de água no país.

Outra perda significativa é no processo de distribuição urbana, etapa na qual o Brasil perdeu 40% da água tratada em 2021. O especialista Thiago Fontanelles explica que o abastecimento público é o setor que mais tem perdas: “Há uma questão econômica envolvida e é muito caro controlar as perdas. Para reduzi-las, tem um custo de investimento muito alto que refletiria nas tarifas”.

A série de reportagens Brasil Insustentável foi produzida durante o primeiro semestre letivo de 2022 nas disciplinas Laboratório de Jornalismo II – web e impresso (Hendryo André), Laboratório de Radiojornalismo I (Rosângela Stringari), Laboratório de Telejornalismo I (Vinicius Carrasco) e Laboratório Multimídia de Jornalismo II (Criselli Montipó).

PAUTA

ANA CRISTINA
THAYSLA NEVES

TEXTO

CECILIA SIZANOSKI

REPORTAGEM EM VÍDEO

CECILIA SIZANOSKI
LORENZO GUSSO

EDIÇÃO FINAL

LARA MAOSKI
MARIA EDUARDA VELOSO
VITOR HUGO BATISTA

CRISE HÍDRICA

Problema afeta as cinco regiões do Brasil​. País abriga 12% de toda a água doce do planeta, mas cidades sofrem com crises de abastecimento ​

A dona de casa Maria Tereza tem 73 anos e é moradora de Curitiba, no Paraná. O estado passou recentemente por uma crise hídrica expressiva, que fez parte do que foi considerado pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) a pior crise hídrica do Brasil desde 1931. Maria conta que não aguentava mais a falta de água em casa. “A água é tudo, não dá pra ficar sem porque é a melhor coisa que temos, ela é essencial”, afirma. “O Brasil é um país tão rico, não devia faltar água, não é mesmo?”.

A pergunta de Maria Tereza é respondida pelo geógrafo e pesquisador em processos hidrológicos, Rodrigo Marcos Souza. Ele explica que grande parcela da água do mundo está no Brasil, ainda que distribuída de forma irregular pelo território. Algumas regiões têm água em abundância, enquanto outras sofrem com a falta dela. A Amazônia, por exemplo, acumula 80% de toda a água brasileira, segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Isso faz com que outras regiões, como o semiárido, tenham déficit hídrico. “Se considerar o território como um todo e pegar a média, parece que tem muita disponibilidade desse recurso”, explica Souza. 

De acordo com o coordenador de estudos setoriais da ANA, Thiago Fontanelles, uma crise hídrica tende a acontecer por três fatores. 

“Pode acontecer uma mudança hidrológica negativa do ponto de vista de chuvas e vazão, ou pelo aumento da quantidade de usos, que ocorre pelo desenvolvimento econômico e desenvolvimento dos setores dos usuários. E o terceiro motivo é a escassez de investimentos em infraestrutura”
Thiago Fontanelles
Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA)

Os três fatores se combinam de variadas formas para instaurar uma crise em uma bacia e afetam tanto a chamada infraestrutura cinza, de construção humana, quanto a infraestrutura verde, rios e mananciais.

Maristela de Paula também é moradora de Curitiba e reclama sobre a forma como a crise hídrica do Paraná foi gerenciada: “Acho que deveriam ter previsto e feito um planejamento anterior à crise”. Quando questionada sobre por que não houve planejamento prévio, como sugeriu a moradora, a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) declarou que segue um Plano Diretor de Abastecimento para planejar e se preparar para crescimentos populacionais e da própria cidade. A companhia explica:  “Manter um sistema de abastecimento para fazer frente a uma crise hídrica dessa magnitude exigiria investimentos muito altos que resultam em custos para toda a sociedade, na forma da tarifa, que seriam injustificados principalmente devido ao tempo de recorrência desse tipo de evento”. 

Vários Brasis

Um país continental como o Brasil é lar de várias versões de si mesmo, onde existem diferentes características para cada pedacinho dele. É o que afirma o engenheiro hidráulico Cláudio Krüger: “O Brasil é um país muito grande e os problemas hidrológicos dele são muito diferentes entre as regiões”. Quando se fala em recursos hidrológicos, não é diferente. O país tem 12 regiões hidrográficas espalhadas pelos estados.

NORDESTE

Projeto de transposição do Rio São Francisco teve início em 2008 e se tornou o maior empreendimento de infraestrutura hídrica do país. Obra diminui impacto da seca na região, mas não irá resolver a situação

O Nordeste foi também anfitrião de 80% das secas que aconteceram entre 2017 e 2020 no território brasileiro, segundo a ANA. O órgão também apontou uma tendência de diminuição da disponibilidade de água nos próximos 20 anos na região. Todos os nove estados fazem parte do chamado polígono das secas, região caracterizada pelo baixo volume de chuvas, solo árido e água subterrânea indisponível.

Para acompanhar e tentar encontrar soluções a longo prazo para o problema das secas, o governo federal, junto dos governos dos estados do Nordeste, criou o Monitor de Secas. O diretor da agência pernambucana de águas e clima, Marcelo Asfora, explica a importância de ações como esta: “A seca passa a ser monitorada, você passa a entender como ela evolui e tem indicadores da severidade dessa seca, o que permite que o governo e a sociedade se preparem para um evento extremo”.

SUDESTE

Segundo ONG SOS Mata Atlântica, Rio Tietê recebe cerca de 600 toneladas diárias de esgoto. Em 2020, relatório identificou 150 quilômetros de trecho morto do rio

Enquanto isso, no Sudeste, o que tira o sono dos gestores de águas é a alta concentração populacional. A região representa pouco mais que 10% do território e abriga 42% da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, o índice de uso de água por pessoa no Sudeste é o mais alto do país, com 143 litros por morador, contra uma média de 116 litros por brasileiro. O Sul, Nordeste, Norte e Centro-Oeste gastam, respectivamente, 121, 83, 84 e 114 litros diários por pessoa. Segundo levantamentos feitos pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), os mananciais da região também sofrem com a qualidade da água.

Muito já foi sugerido para tentar resolver os problemas hídricos dos mineiros, paulistas, capixabas e fluminenses. Vale citar a ideia do ex-governador do Amazonas José Melo, em 2015, de fazer um sistema que levasse a água do Rio Amazonas para São Paulo. É uma possibilidade, mas o problema é que não vale a pena, como explica o pesquisador Rodrigo Souza: “Trazer água da Amazônia para o sudeste é uma obra de engenharia caríssima, então temos que buscar um sítio hidrológico mais próximo”.

Segundo estudos em conjunto realizados pela WRI Brasil e mais seis organizações, a solução está na recuperação das áreas florestais degradadas. “Recuperar florestas e outros ecossistemas potencializa a eficiência de infraestruturas convencionais, aumentando a capacidade sazonal dos reservatórios e sistemas de abastecimento. Isso torna o uso de um recurso essencial como a água potável mais eficiente, reduzindo emissões de carbono e, de quebra, gerando benefícios econômicos”, traz o texto publicado no blog da organização.

A solução dialoga com o problema apontado pelo geógrafo Rodrigo Marcos como uma das razões pelas quais o Brasil enfrenta problemas com água. Ele explica que os efeitos da intensa ocupação humana ao meio ambiente impermeabilizam o solo e alteram o ciclo da água. Não tendo mais como infiltrar no solo, agora a água escoa direto para o rio, que enche e esvazia mais rápido. Dessa forma, não há reserva de água subterrânea.

Centro-Oeste

O Centro-Oeste é o lar de grande parte do cerrado, bioma considerado berço das águas. Segundo o Museu do Cerrado, iniciativa da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FA/UnB), o bioma tem 23,6% de todas as nascentes brasileiras. Neste solo, localizam-se lençóis freáticos importantes que mantêm a perenidade de vários rios e garantem recursos para a irrigação e abastecimento dos reservatórios de parte das hidrelétricas do país. Tudo isso vem também da página do Museu do Cerrado, onde é apontado que vários fatores contribuem para o déficit hídrico. Entre os principais estão o crescimento das cidades e consequente impermeabilização do solo, ocupações irregulares e falta de investimento do governo.

DE NORTE A SUL

Enquanto a Região Norte acumula 60% de toda a água potável do país, no Sul, abastecimento de hidrelétricas e irrigação são problemas recorrentes

Já no Norte do país, tem muita água e pouca gente. A região acumula 60% da disponibilidade hídrica do Brasil e é berço do aquífero de Alter do Chão, que fica no Pará e é um dos maiores reservatórios de água subterrânea do mundo. A densidade demográfica é considerada baixa, de 4,12 pessoas por quilômetro quadrado, segundo o IBGE.

Mesmo com a grande abundância de água, o pesquisador Rodrigo Marcos afirma que a Amazônia também enfrenta problemas hidrícos. “Assim como tem cheias absurdas, tem também os momentos de seca. Você não vai ver o Solimões secar, mas tem afluentes que ficam sem água”, explica. Estes fenômenos são causados por três principais razões, de acordo com estudo apresentado no XV Congresso Brasileiro de Agrometeorologia: o aumento da temperatura no Oceano Atlântico, aumento da quantidade de queimadas e outros fenômenos climáticos.

A região Sul, por sua vez, enfrenta como principais desafios problemas relacionados às cheias, abastecimento de hidrelétricas, qualidade de água e irrigação. Além disso, outro problema expressivo na região é o gerenciamento dos recursos para abastecimento urbano nas regiões metropolitanas. Quem sofreu com este último problema foi Leda Biana, que mora no Paraná.

Direito quase fundamental

Leda Biana adora morar no bairro Guarituba, que fica em Piraquara, parte da região metropolitana de Curitiba. A cidade é berço das nascentes do Rio Iguaçu, de diversos mananciais e é responsável por 50% do abastecimento de água da Grande Curitiba, segundo o IBGE. Mesmo com a grande disponibilidade de água, quando Leda se mudou para o Guarituba, em 1995, o recurso não foi oferecido em boas condições. 

“Na época em que eu vim morar aqui não tinha nem água encanada, nem saneamento básico. Nós tínhamos um poço que cavamos na frente da casa e ali brotava aquela água que a gente usava para limpeza geral e higiene. Na época, eu podia comprar galão de água mineral, mas tinha vizinhos que não podiam, então nós dividiamos a água”
Leda Biana
Moradora do bairro Guarituba, em Piraquara

A situação vivida por Leda já foi um retrato de um dos principais problemas com a água na região Sul: a distribuição. Hoje, já faz vários anos que a casa de Leda tem acesso à água encanada e tratada, mas este cenário não é uma questão específica da cidade. Quando é observado um cenário mais amplo, descobre-se que, em 2022 no Brasil existem 35 milhões de pessoas sem acesso à água tratada, de acordo com o Instituto Trata Brasil (ITB).

Ainda segundo o ITB, o problema do saneamento no Brasil é ainda maior que o da água tratada, com cerca de 100 milhões de brasileiros sem rede de coleta de esgoto. Para Leda, a pior parte da situação em que vivia é a precariedade da saúde: “Era uma coisa horrorosa porque não tinha saneamento básico também. O poço ficava na frente da casa e nos fundos  tinha a fossa pro  banheiro. As crianças estavam bastante doentes e a gente percebia que era devido a água praticamente contaminada”. 

Políticas públicas

Mesmo que a água potável seja uma necessidade básica do ser humano, ela ainda não é considerada um direito fundamental pela Constituição. Somente em 2018 foi proposto o acréscimo do recurso no artigo 5º da Constituição Federal. A PEC 04/2018 sugere que seja adicionada à Constituição que: “é garantido a todos o acesso à água potável em quantidade adequada para possibilitar meios de vida, bem-estar e desenvolvimento socioeconômico”. Em 2021, a proposta foi aprovada pelo senado e agora tramita na Câmara como PEC 6/21.

Esta movimentação política é um passo na direção do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) número 6, que estabelece como meta “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos”. Quando destrinchada, a ODS abrange grande parte das questões relacionadas à água, colocando como objetivos menores garantir o acesso universal à água potável, ao saneamento e à higiene, reduzir pela metade a quantidade de água usada e devolvida ao meio ambiente sem tratamento, melhorar a eficiência de todos os usos da água e da gestão dos recursos hídricos e proteger e restaurar ecossistemas que envolvem água. Além disso, também é apontada a importância de apoiar programas e atividades de outros países com objetivos relacionados à ODS e orientar e apoiar a participação da população no processo.

Esta é também a recomendação da Organização das Nações Unidas quanto aos direitos humanos. Em julho de 2010, ocorreu a Assembleia Geral da ONU, na qual foi definido que o acesso à água tratada e saneamento são necessários para que todos os direitos humanos sejam atingidos. Desde então, a organização solicita que os Estados e organizações internacionais desenvolvam soluções tecnológicas e financeiras para que todos os países possam assegurar “água potável segura, limpa, acessível e a custos razoáveis e saneamento para todos.”

Leda conta que, ao redor de sua casa, havia pessoas que não tinham recursos para fazer um poço, então, tinham ainda menos acesso. Mesmo quando foi instalada uma torneira comunitária e encanamento para Leda e seus vizinhos, muitos deles continuaram sem o recurso porque não podiam pagar por ele.

Por conta disso, o artigo 29 da lei 11.445 de 2007, conhecida como Lei do Saneamento, diz: “Os sistemas tarifários devem ser inclusivos, garantindo o acesso de todos aos serviços e promovendo a equidade”. Isso gera a criação da chamada tarifa Social, ou, dependendo da região do país, tarifa reduzida, popular, favela, etc. Trata-se de um desconto no preço da água dado às famílias de baixa renda.

No entanto, segundo declaração do professor titular aposentado da UFABC, Ricardo Moretti, na live do Ondas, os critérios de seleção dos beneficiados pela tarifa são muito complexos e é necessário simplificá-los. As falhas também são apontadas pelo integrante do Instituto Democracia e Sustentabilidade, Guilherme Checco, nos dados apresentados em audiência pública feita por meio do YouTube. Segundo ele, os critérios utilizados pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) abrangem apenas cerca de 24% das famílias que precisam do auxílio.

Moretti aponta que, após a experiência vivida com a pandemia da covid-19, foi percebido que problemas de higiene e saneamento em lugares específicos acabam se estendendo para toda a população, e completa: “Não há barreiras físicas que separam os que têm dos que não têm, então, ou a gente pensa em soluções que atendam todos e todas, ou toda a gente vai estar em risco”.

Em declaração dada no Youtube do Instituto Trata Brasil, o presidente executivo da organização, Edison Carlos, disse: “Centenas de prefeitos ainda não se aperceberam que muitos dos gastos que a prefeitura tem em saúde pública poderiam ter sido resolvidos construindo as redes de água, de coleta e estações de tratamento de esgoto”. Tudo isso vai de encontro e comprova as declarações de Leda de que é impossível viver com saúde sem água tratada e saneamento básico.

Para as casas e além

A moradora de Curitiba Maristela de Paula tenta sempre economizar água em casa e incentiva a família a fazer o mesmo. “A gente sabe que a água não é uma fonte infinita e que um dia realmente vai acabar”, conta. Ela evita o desperdício tomando banhos curtos e não gastando muito na torneira. Assim como Maristela, Cristiano é morador de uma cidade do Paraná, São José dos Pinhais, e também respeitou o período de racionamento de água no último ano sem desperdiçar, como via seus vizinhos fazendo ao lavar calçadas e carros assim que a água chegava.

Mesmo que o gasto de água para abastecimento urbano não seja o principal no país, cuidados como os de Maristela e Cristiano fazem grande diferença, de acordo com o engenheiro hidráulico e professor da UFPR, Cláudio Krüger. “Os racionamentos acabam deixando um ‘legado positivo’, pois, ao sofrer a falta da água, as pessoas passam a usá-la de forma mais econômica. Isso também pode ser válido na agricultura, pelo uso de métodos de irrigação mais eficientes”, explica.

De acordo com a Sanepar, o racionamento não é uma solução, nem a primeira medida tomada quando se depararam com a crise, mas ele é adotado por dois principais motivos: “Primeiro, para assegurar níveis mínimos de preservação de água nas barragens, uma vez que as previsões meteorológicas indicam períodos longos de chuvas abaixo da média; e, segundo, para distribuir a água de forma igualitária para todas as regiões, a fim de não prejudicar moradores de locais mais distantes dos centros de preservação e distribuição de água”. A Sanepar também afirma que foram feitas mais de 20 ações, entre captações emergenciais de água e antecipações de obras que já estavam previstas e que aumentaram o volume de água para o abastecimento público.

Contudo, o abastecimento urbano não é o maior uso da água no Brasil. A irrigação é a primeira e representa 50% da retirada total de água em 2020 e 72% da quantidade destinada à agricultura, segundo a Agência Nacional de Águas. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), quase metade de toda a água empregada no campo é desperdiçada.

Outros grandes usos dos recursos hídricos ainda não mencionados são relacionados à indústria e criação de animais, enquanto o abastecimento urbano representa 25% do total em 2020.

Paralelo a isso, também existe uma grande quantidade de água que é perdida, inicialmente no processo chamado de “evaporação líquida”, que é a quantidade de água que evapora de reservatórios em decorrência de fatores ambientais, sendo o segundo maior gasto de água no país.

Outra perda significativa é no processo de distribuição urbana, etapa na qual o Brasil perdeu 40% da água tratada em 2021. O especialista Thiago Fontanelles explica que o abastecimento público é o setor que mais tem perdas: “Há uma questão econômica envolvida e é muito caro controlar as perdas. Para reduzi-las, tem um custo de investimento muito alto que refletiria nas tarifas”.

A série de reportagens Brasil Insustentável foi produzida durante o primeiro semestre letivo de 2022 nas disciplinas Laboratório de Jornalismo II – web e impresso (Hendryo André), Laboratório de Radiojornalismo I (Rosângela Stringari), Laboratório de Telejornalismo I (Vinicius Carrasco) e Laboratório Multimídia de Jornalismo II (Criselli Montipó).

PAUTA

ANA CRISTINA GOMES DA SILVA
THAYSLA NEVES

TEXTO

CECILIA SIZANOSKI

REPORTAGEM EM VÍDEO

CECILIA SIZANOSKI
LORENZO GUSSO



EDIÇÃO FINAL

LARA MAOSKI
MARIA EDUARDA VELOSO
VITOR HUGO BATISTA

 

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