“Depois do diagnóstico, eu brinco que passei pelos estágios do luto, porque primeiro eu fiquei em negação”, compartilha Maria Lígia Freire Guilherme, mulher, mãe, funcionária pública e neurodivergente.
Maria Lígia é a exceção da exceção. Aos 20 anos, recebeu o primeiro diagnóstico: Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Aos 35, veio a segunda etapa. Dessa vez, o laudo de Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Superdotação. A notícia não foi bem recebida e por um tempo ela encarou o autismo como uma peça que não se encaixava. Precisou de outras opiniões para entender que às vezes em que pensava ser sociável e a facilidade de conversar com as pessoas foram habilidades aprendidas, usadas como uma camuflagem para parecer “normal”. Dali em diante, fizeram sentido os sentimentos de inadequação e o esgotamento emocional constantes na vida de Maria Lígia.
Dentro da neuropsicologia, um laudo com as três condições é a “tripla excepcionalidade”, pois conglomera três condições de uma só vez. Apesar da raridade do diagnóstico, o caminho para encontrá-lo costuma ser bastante comum para mulheres neurodivergentes: tardio e acompanhado de comorbidades consequentes de anos de sofrimento pela falta de compreensão sobre os próprios pensamentos e atitudes.
De acordo com a pesquisa do professor Francisco Ortega, do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o conceito de neurodivergência, ou neurodiversidade, é usado para descrever cérebros que funcionam de formas diferentes, principalmente na parte cognitiva. É o que acontece nos casos do TDAH, TEA, Dislexia (transtorno de aprendizagem que dificulta leitura e escrita), Dispraxia (transtorno neurológico de coordenação motora que envolve dificuldade em pensar e movimento planejado) e as Altas Habilidades/Superdotação (AHSD).
Experientes em camuflagem
Em mulheres, o diagnóstico costuma vir mais tarde. Para a professora e psicóloga Carolina Marques, da Universidade Tuiuti do Paraná, especialista em neurociências e psicopatologias, alguns dos motivos para que isso aconteça são a prática da camuflagem social e as questões neurobiológicas que tornam as mulheres mais empáticas ao ambiente. Esses fatores criam camadas de imitação, em que a mulher recebe as informações de onde está e imita o que vê, mascarando possíveis neurodiversidades.
“Hoje, os estudos majoritariamente são feitos por público masculino“
Carolina Marques, psicóloga
Além disso, a dificuldade do diagnóstico também se funda no meio científico, já que a prevalência de estudos e pesquisas se volta para o cérebro masculino. “Hoje, os estudos majoritariamente são feitos por público masculino, então [a camuflagem acontece] porque são interpretados os sintomas masculinos, esquecem de levar em consideração os femininos”, explica Carolina. Como consequência, se cria uma lista de estereótipos que são tipicamente masculinos e dificilmente aplicados às mulheres.
Com o atraso no processo de diagnóstico, a saúde mental e a socialização são as principais afetadas. Após anos sem respostas, é comum que a mulher desenvolva comorbidades e encontre desafios durante a vida, principalmente em termos de baixa autoestima. “[essa mulher] acha que é o problema das coisas, que ela tem falta de compreensão, que ela tem uma baixa cognição”, exemplifica a psicóloga. Surgem, ainda, questões como ansiedade, depressão, transtornos de estresse pós-traumático, alguns tipos de transtornos obsessivos compulsivos e outros transtornos ao redor.
Mãe e filha convergentes
A busca do segundo diagnóstico de Maria Lígia veio após o laudo da mãe, Blenda Freire, que descobriu o TDAH aos 45 anos e, mais tarde, o TEA. Indo na contramão do que normalmente acontece nesse processo, a filha sugeriu que a mãe investigasse.
Marcada por uma infância difícil, uma adolescência com poucos amigos e um convívio familiar onde o pai, extremamente ocupado, era o único familiar com quem podia contar, Blenda cresceu solitária e as dificuldades de interação não passavam despercebidas, mas acreditava que aconteciam por pura timidez.
Ela relata como foi o processo de se descobrir neurodivergente. “Quem identificou mesmo foi a minha filha, que um dia me perguntou se eu achava que poderia ser autista. Eu disse para ela que ‘normal’ eu não era mesmo, e que se eu fosse autista, explicaria muita coisa. Então resolvi fazer o teste. Até então, eu achava que as coisas diferentes que eu tinha eram por causa do TDAH, mas a questão do autismo sempre foi uma dúvida” conta Blenda.

Para a mãe, foi um processo difícil, mas acima de tudo libertador: “Eu parei de me cobrar ser sociável porque seria a coisa certa e passei a me permitir caminhar no meu tempo e do jeito que é mais confortável para mim. Está sendo bem melhor saber que as minhas limitações não são falhas minhas”, desabafa.
Para a filha, o caminho foi mais complicado. Quando Blenda recebeu o diagnóstico de TEA, sugeriu que Maria Lígia também investigasse e, com a certeza de que não se enquadrava, seguiu o conselho. Quando o resultado veio, a aceitação não o acompanhou. “Meu primeiro reflexo foi pensar que [a psicóloga] tinha errado”, confessa.
Depois do diagnóstico, Maria Lígia buscou estudar mais sobre o assunto e notou que os comportamentos que identificava na mãe não se aplicavam da mesma forma para si mesma. “Eu sinto que depois do diagnóstico eu ‘piorei’, como se tivesse ficado mais autista, porque entendi o conceito de masking (camuflagem)”, conta.
Apesar da dificuldade inicial, hoje Maria Lígia reconhece que o diagnóstico mudou sua vida. Assim como a mãe, a filha também enxerga o processo como algo catártico. Aqui, a experiência das duas se torna ainda mais semelhante e convergente. Ambas entendem o poder que o autoconhecimento proporciona e como ele contribui para a autoaceitação e a autoestima de uma pessoa. As cobranças e expectativas internam diminuem, os limites pessoais são respeitados e o sofrimento diminui.

Nunca é tarde para buscar ajuda. “O diagnóstico sempre vai fazer a diferença […] Sempre há tempo pra entender melhor o que aconteceu na sua vida, pra ajustar o que pode acontecer ainda […] e para também trabalhar a aceitação da nossa história e desenvolver uma vida que a gente pode viver de forma plena”, aconselha Carolina.
Ficha Técnica
Reportagem: Francielle Lacerda
Edição: Fernanda Gomes
Orientação: Cândida de Oliveira