Em 2018, a Sony Pictures Animation lançou seu projeto mais ousado e arriscado até então, um longa-metragem animado do Homem-Aranha trazendo a estreia de Miles Morales – personagem que foi ganhando popularidade entre fãs desde sua criação nos quadrinhos em 2011 – nas telonas em um trama que aborda o multiverso e versões alternativas do herói aracnídeo com um estilo de animação único, misturando elementos visuais de HQs, animação 3D e 2D. Mesmo com uma modesta bilheteria, Homem-Aranha no Aranhaverso tornou-se um grande sucesso de crítica e o maior trunfo do estúdio, vencendo diversos prêmios – incluindo Oscar de Melhor Animação em 2019 – sendo considerado um divisor de águas no ramo de filmes animados, quebrando o padrão de animação fotorealista estabelecido pela Pixar/Disney e influenciando diversos outros longas a seguirem um estilo visual mais experimental, como Gato de Botas 2, Entergalatic e o novo filme das Tartarugas Ninja, As Tartarugas Ninja: Caos Mutante, a ser lançado em agosto deste ano. Depois de uma longa espera, a aguardada sequência – Homem-Aranha: Através do Aranhaverso – chega às salas de cinema.
Pouco mais de um ano se passou desde os eventos do primeiro filme e Miles Morales (Shameik Moore) busca equilibrar vida dupla de estudante do ensino médio e Homem-Aranha do Brooklyn, bem como manter a relação com seus pais. Após o retorno de Gwen Stacy (Hailee Steinfeld), Miles é introduzido a um time de elite composto pelos melhores Aranhas de todas as realidades, liderados por Miguel O’Hara (Oscar Isaac), o Homem-Aranha 2099. Quando um novo inimigo surge, contudo, ameaçando desestabilizar o multiverso, Miles entrará em conflito com Miguel e seu time de Aranhas sobre como lidar com este perigo.
Se o primeiro filme já impressionava bastante pelo estilo de único de animação, incorporando traços de 2D, 3D e signos visuais de quadrinhos como balões de fala, notas de rodapé, onomatopeias e edição em quadros que emulam uma página de gibi, criando uma animação dinâmica, fluida e cheia de cor, Através do Aranhaverso consegue inovar ainda mais. Enquanto no primeiro longa os diferentes Aranhas convergiram na Terra de Miles, agora é o jovem herói (e o público) que é catapultado pelas diferentes realidades do Aranhaverso. Cada uma das Terras apresentadas no filme possuem uma identidade visual própria. A Terra de Gwen Stacy é um mundo de aquarela que reage às emoções dos personagens, com tons frios de azul e roxo para momentos de melancolia e reconfortantes tons quentes e claros nas horas de felicidade e afeto. Mumbhattan – Terra do Homem-Aranha Indiano – é uma megalópole que mistura traços de Manhattan e Mumbai em uma vibrante paleta de cores de verde e amarelo que se diferencia bastante da cidade futurista e tecnológica de Nueva York de 2099.
O trio de diretores Joaquim dos Santos, Kemp Powers e Justin K. Thompson junto com o impressionante time de aproximadamente 1 mil animadores, sabem utilizar a temática de realidades alternativas para extrapolar ao máximo as capacidades criativas que uma animação pode ter. Se você parar o filme em cinco momentos aleatórios, terá cinco belíssimas ilustrações. Seja nas frenéticas cenas de ação ou em momentos de contemplação visual, o longa é um verdadeiro espetáculo para os olhos. Além disso, o filme é uma carta de amor ao personagem Homem-Aranha, prestando diversas homenagens aos quadrinhos, filmes, desenhos animados e games do herói, que farão até o mais árduo dos fãs sorrir de orelha a orelha com as inúmeras referências.
No entanto, em momento algum o filme esquece de seu foco, Miles Morales e seu desenvolvimento. Se o primeiro longa é a história do garoto aprendendo que qualquer um pode usar a máscara, Através do Aranhaverso é sobre Miles aprendendo o peso e as consequências de usar esta máscara. Phil Lord e Chris Miller, produtores e roteiristas do filme anterior, retornam para a sequência com uma trama muito mais madura e bem amarrada, dando sequência a elementos do primeiro, mostrando o crescimento de Miles como adolescente e herói e o desenvolvimento de seus relacionamentos com seus pais e Gwen Stacy. E por falar nela, a Mulher-Aranha vivida por Hailee Steinfeld ganha muito mais destaque neste longa, mostrando mais de seu passado, seus traumas e inseguranças e o difícil relacionamento com seu pai policial, assumindo a posição de co-protagonista em diversas partes. O desenvolvimento da amizade e possível romance entre Miles e Gwen é um dos pontos mais fortes do roteiro.
Outro ponto importante no filme é a introdução de Miguel O’Hara, o Homem-Aranha 2099. Trinta anos após sua criação nos quadrinhos por Peter David e Rick Leonardi, este Aranha de descendência latina-irlandesa finalmente faz sua estreia nas telonas interpretado pelo ator Oscar Isaac. Sendo o líder do esquadrão de Aranhas encarregados de proteger a Teia da Vida e do Destino que liga todos no Aranhaverso, Miguel é frio e determinado, sem o tradicional bom humor e piadas que associamos ao Homem-Aranha, disposto a fazer o que for preciso para cumprir sua missão e manter a estabilidade nos universos. O embate ideológico entre Miles e Miguel é o principal obstáculo na jornada do jovem Aranha, mas vale ressaltar que, mesmo representando oposição para o protagonista, o Homem-Aranha 2099 não é o vilão.
Quem fica responsável pelo papel de antagonista do filme é o vilão Mancha (Jason Schwartzman). Mesmo sendo considerado um vilão de segunda categoria da galeria do herói, seu poder de abrir portais com as manchas em seu corpo criam sequências de ação muito criativas e sua utilização na história, de um vilão inicialmente considerado uma piada progressivamente se transformando em uma ameaça para todas as realidades é muito bem construída e se entrelaça bem com o protagonista.
Ainda nos novos personagens, vale citar as participações do Homem-Aranha Indiano (Karan Soni) e do Punk-Aranha (Daniel Kaluuya), duas adições muito válidas ao elenco de heróis. Ambos são carismáticos e protagonizam diversos momentos engraçados pelo filme, com destaque para o Punk-Aranha e seu visual único, com o personagem parecendo que saltou direto de um pôster de punk rock e colagens de papel “lambe lambe”.
Quanto a trilha sonora, o filme segue na mesma pegada do anterior com diversas batidas de rap e hip-hop. Apesar de achar a trilha do primeiro filme mais memorável, a sequência possui ótimas faixas que se encaixam e complementam muito bem a emoção que as cenas querem transmitir. Destaque para a música “Mona Lisa” que toca durante a cena em que Miles e Gwen estão balançando por Nova York no entardecer, uma das sequências mais bonitas do filme e as faixas de encerramento “Am I Dreaming” e “Calling”.
Talvez o único “problema” do longa, que pode incomodar alguns espetadores, é que o filme não possui um final. Sem entrar em spoilers, Através do Aranhaverso encerra suas duas horas e vinte de duração em um gancho para sua sequência Spider-Man: Beyond the Spiderverse (Homem-Aranha: Além do Aranhaverso, em tradução livre) com previsão de estreia para Março de 2024. É algo semelhante ao que aconteceu com Duna (2021) onde o filme termina no que parece a metade da história, a ser concluída em sua segunda parte. Como o filme do Teioso originalmente foi dividido em “Parte 1” e “Parte 2”, já fui assistir o longa esperando um desfecho em gancho, portanto é algo que não me incomoda e me deixa ainda mais ansioso para a conclusão desse arco narrativo no terceiro filme, mas é um ponto que mesmo assim vale ressaltar.
Homem-Aranha: Através do Aranhaverso é tudo que uma sequência deve ser. Ela pega tudo que foi bom do primeiro filme e consegue expandir em absolutamente tudo, seja nas criativas e belas técnicas de animação, o desenvolvimento das relações entre os personagens já conhecidos, introdução de ótimos personagens inéditos e um roteiro mais elaborado e maduro que prepara o terreno para o que promete ser uma bombástica conclusão para a saga de Miles Morales e todo o Aranhaverso.