Se você já precisou ir da rua XV de Novembro até a Praça Tiradentes, deve ter passado pela avenida Marechal Floriano Peixoto. Talvez você nunca tenha reparado, mas nesse trecho, numa portinha tímida entre uma loja de calçados e uma assistência técnica de celulares e eletrônicos, existe o Hotel Eilat, um lugar que abriga muitos sonhos e histórias.
O Eilat é um hotel administrado pela Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS). Ele surgiu em 2023, a partir da luta LGBTQIAPN+, representada pelas organizações grupo Esperança e grupo Dignidade, que demandaram a criação de um lugar de acolhimento para mulheres trans em situação de vulnerabilidade social.
Hotel Eilat
Inaugurado em janeiro de 2024, o Hotel Social Eilat, no centro de Curitiba, é o primeiro do estado voltado especificamente para mulheres travestis e trans adultas em situação de rua. Com 20 vagas, a unidade oferece hospedagem social 24 horas e trabalha pela inserção no mercado de trabalho. Atualmente, abriga 17 mulheres, das quais quatro já foram contratadas com carteira assinada em funções como caixa, cuidadora, operadora de telemarketing e auxiliar de cozinha, segundo informações da Prefeitura de Curitiba.
Em entrevista à reportagem, Cristina Yuasa, gerente do hotel, explicou que a iniciativa foi fruto da luta de grupos LGBTQIAPN+.
"Isso foi fruto de muita luta e de muitas pautas, junto à FAS [Fundação de Ação Social]. Grupos como o Esperança e o Dignidade colocaram a demanda de mulheres trans, de proteção por conta das situações de violência, do desabrigo de muitas, das questões de conflitos familiares também, que levavam essas mulheres para a rua".
O “Estudo Preliminar de Violência contra as Mulheres Trans e Travestis”, realizado pelo Instituto de Pesquisa DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência e publicado em março de 2024, representa um primeiro esforço do poder público para ouvir oficialmente esse grupo. Pela primeira vez, em 2023, a pesquisa bienal sobre violência doméstica incluiu mulheres trans e travestis em seu escopo. Contudo, o estudo tem caráter exploratório e qualitativo, uma vez que a falta de dados estáveis oficiais sobre essa população impede inferências estatisticamente válidas para todo o país.
Entre 21 de agosto e 25 de setembro de 2023, 21 brasileiras trans e travestis com 16 anos ou mais foram entrevistadas por telefone. A metodologia para identificá-las revelou os desafios enfrentados: perguntas-chave sobre sexo e registro de nascimento foram necessárias para garantir que a pessoa se identificava como mulher, embora tenha sido registrada como homem ao nascer. O próprio relatório documenta casos de equívocos durante as entrevistas, evidenciando a desinformação generalizada sobre identidade de gênero.
Os resultados, ainda que não representativos da população total, desenham um panorama preocupante. Nove das 21 entrevistadas (43% da amostra) relataram ter sofrido violência doméstica ou familiar em algum momento da vida. Todas as agressões foram praticadas por homens. Chama a atenção que, dessas nove mulheres, cinco confirmaram que as agressões ocorreram nos últimos 12 meses, e uma delas disse que o último episódio foi no dia anterior à entrevista. A violência física foi unânime entre as que sofreram agressão, seguida pela psicológica (oito casos), moral (sete), sexual (quatro) e patrimonial (duas).
A pesquisa também investigou a percepção sobre a violência. Treze participantes consideraram o Brasil “muito machista”. Quando perguntadas onde as mulheres são menos respeitadas, as opiniões se dividiram entre “na rua” (onze respostas) e “na família” (oito respostas). A subnotificação também parece ser uma regra: das 21 entrevistadas, apenas uma acredita que as vítimas denunciam “sempre”, enquanto a grande maioria (18) acredita que as denúncias ocorrem “na minoria das vezes” ou “nunca”.
Um dado crucial revela a naturalização da transfobia. Uma participante de 19 anos, do Mato Grosso, ao ser questionada se alguém a havia humilhado, respondeu: “Isso é normal”. E detalhou: “me chamou de homem, mas isso é normal. É uma falsa acusação porque me vejo como mulher”. A mesma jovem sofreu violência patrimonial ao ter seu “mega hair” – objeto fortemente ligado à sua identidade de gênero – danificado.
O relatório do DataSenado ressalta a importância de instrumentos de proteção, como a Lei Maria da Penha, cuja aplicação para mulheres trans foi consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2022. No entanto, o conhecimento sobre a lei entre as entrevistadas é limitado: seis disseram conhecer “muito”, doze “pouco” e três “nada”. Apesar disso, dez acreditam que a lei protege as mulheres contra a violência.
Num cenário de invisibilidade estatística e violência estrutural, um relatório inédito do DataSenado joga luz sobre a realidade das mulheres trans e travestis no Brasil, enquanto iniciativas locais, como o Hotel Social Eilat, em Curitiba, tentam oferecer um contraponto de acolhimento e oportunidades.
O acesso ao Eilat se dá exclusivamente através de encaminhamento das unidades da FAS, como os Centros POP (Referência para População em Situação de Rua) ou os CREAS (Centros de Referência Especializados de Assistência Social). “O critério, principalmente, é a vulnerabilidade, o risco social”, detalha Cristina.
O convívio no hotel, no entanto, não está livre de conflitos, que muitas vezes reproduzem a violência que as mulheres sofrem na sociedade. Cristina Yuasa relata que as brigas frequentemente surgem quando uma residente tenta impor à outra como ela deve ser. “Por exemplo, dizem uma para outra: ‘Você não é mulher trans. Você não deveria estar aqui’… ‘Cadê teu peito? Pinta esse cabelo, senão você não é mulher trans'”.
Ela vê nisso um reflexo da violência externa. “O tempo todo falam para elas, seja a família ou a sociedade, como elas têm que ser. ‘Você é um homem. Eu não aceito o meu filho assim, saia de casa’. Então chega aqui e isso aqui também é reproduzido aqui dentro… A violência é transmissível”.
"O tempo todo falam para elas, seja a família ou a sociedade, como elas têm que ser. 'Você é um homem. Eu não aceito o meu filho assim, saia de casa'. Então chega aqui e isso aqui também é reproduzido aqui dentro... A violência é transmissível".
Para além dos conflitos de convivência, as acolhidas enfrentam barreiras no mercado de trabalho. “Muitas vezes elas ficam no período de experiência, mas na hora de fazer a admissão elas são demitidas”, conta a gerente. Para enfrentar esse problema, a Secretaria da Mulher e Igualdade Racial está lançando o “Projeto Transformar”, de capacitação profissional e acompanhamento no emprego.
Apesar dos desafios, o Eilat se consolida como um refúgio essencial. “Eu acho que aqui vira um refúgio para elas. É um local seguro. É um local onde elas se sentem que elas encontraram o lugar delas”, avalia Cristina. “Acho que é um primeiro passo para uma possibilidade de autonomia”.
O hotel, mantido por contrato da FAS com a empresa Pensionato Universitário, não tem prazo fixo de permanência. A duração do acolhimento é definida por uma avaliação técnica individual. “O que a gente gostaria é que aqui fosse só o recomeço. ‘Opa, cheguei, consegui me organizar, estou saindo'”, conclui Yuasa. “Aqui tudo é provisório… É um preparo para essa saída da rua”.
A VIDA ANTES DO HOTEL
Desde muito cedo, Jô aprendeu o que era viver sem aceitação. Nasceu numa família militar, que não tolerava a diferença. A mãe biológica morreu quando ela tinha apenas seis meses, e, sem a proteção materna, cresceu entre casas de parentes e conhecidos, nunca por muito tempo em um mesmo lugar.
Aos nove anos, o pai quase cortou seu pulso por causa de uma pulseira que usava. Foi um ponto de ruptura. A partir dali, por medo, começou a sair de casa com frequência, buscando abrigo onde pudesse passar a noite.
Passou por instituições, viveu na rua, e, ainda criança, foi estuprada, quando era acolhida pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem). Carregou desde então uma história de traumas, deslocamentos e sobrevivência.
A infância fragmentada se transformou em uma vida adulta de exclusões sucessivas. Nem durante a infância, nem após esse período, foi aceita pela família.
A morte do pai, em 2019, trouxe uma luta judicial para a vida de Jô. Tudo por conta de uma casa, que a família não reconhece como dela por direito. Aos 53 anos, Jô lida com a rejeição dos familiares, que, nas palavras deles, “não devem nada a ela”. O irmão é coronel do Exército, os parentes são conservadores e bolsonaristas, e o preconceito atravessa todas as relações.
Com a morte do pai e as condições precárias de sobrevivência, entrou com uma ação de alimentos contra os familiares, movida pela Defensoria Pública. O processo, lento e desgastante, é o que hoje assegura o mínimo de estabilidade. A defensoria propôs a ação porque ela estava em extrema vulnerabilidade social, morando na rua.
Antes disso, Jô já havia conseguido retificar seu nome em um mutirão da defensoria no Rio. Enquanto explica o porquê da escolha do nome, exibe orgulhosamente a certidão e o RG atualizados. “Eu botei Jô, por causa de João, que era o nome do meu pai, que eu não queria tirar. Aí botei só Jô de Souza.” A retificação foi total: não apenas o nome social, mas o registro civil.
Mesmo assim, enfrenta resistências em instituições públicas. Em alguns órgãos, ainda é tratada pelo nome antigo, e o reconhecimento legal é questionado. A disputa com a família também passa por isso: a Marinha, responsável pela pensão militar, se nega a atualizar o cadastro, alegando que ela foi registrada como “filho homem”, e não como mulher.
O Rio de Janeiro foi o cenário de sua vida antes de decidir se mudar para Curitiba. Na sua cidade natal, foi enganada por um advogado durante o processo de inventário da herança do pai. Entre o medo de violência e a falta de alternativas, decidiu deixar a cidade. “Eles [a família] disseram que só me matando”, recorda. Escolheu Curitiba como destino, guiada tanto pelo instinto de sobrevivência quanto pela ideia de que o frio da cidade poderia trazer alguma paz.
Chegou de ônibus, ficou uma semana em um hotel perto da rodoviária e, quando o dinheiro terminou, foi parar na rua. Procurou o Grupo Dignidade, que a orientou a buscar ajuda da FAS. Na assistência social, contou que estava em situação de rua e sem para onde ir. O encaminhamento veio no mesmo dia: o endereço do hotel que serviria como acolhimento.
A história de rejeição familiar de Jô se cruza com outras que encontraram abrigo no mesmo lugar.
Entre elas está a de Paola Fernanda Soares, de 36 anos, que também chegou ao hotel depois de entrar em uma situação de vulnerabilidade social.
Formada em Direito e em Teologia e casada com outra mulher trans, Paola viu a vida mudar após a morte dos pais, com quem morava junto com a esposa. Sem o apoio dos familiares, elas acabaram em situação de rua.
Foi então que descobriram o Hotel Social de Curitiba. Antes de chegar no hotel, Paola nunca tinha vivido numa cidade grande como Curitiba.
ROTINA
No hotel Eilat, Paola descreve a rotina como tranquila. O dia começa cedo, com o café da manhã servido no refeitório. As moradoras podem escolher entre café preto ou café com leite, o que Paola relata ser um privilégio.Depois do café, cada uma segue seu rumo. Algumas saem para trabalhar, outras para resolver pendências. Paola divide o tempo entre compromissos pessoais, estudos e o trabalho como tatuadora.
Outra moradora, que não quis ser identificada e chamaremos de Maria durante a reportagem, faz faculdade e está prestes a iniciar num novo emprego. Ela destaca como é a localização do hotel é um aspecto positivo, por ser uma região central, perto de universidades e empresas.
O almoço é servido ao meio-dia, e o jantar, a partir das seis. A alimentação, preparada diariamente, é um dos pontos que Paola mais valoriza. “As refeições são sempre frescas, é uma comida muito boa”, conta.
No fim da tarde, o hotel ganha um ritmo mais agitado. Algumas moradoras se reúnem na sala de TV para assistir novelas ou noticiários. Outras preferem ficar nos quartos, onde há banheiro privativo e um ambiente que aconchegante, segundo Paola. Às 22h, é proibido entrar ou sair do hotel até a manhã seguinte.
Ali, cercada de outras mulheres trans, que Paola conseguiu retomar planos deixados de lado. Voltou a estudar e tenta se manter produtiva enquanto busca estabilidade.
Apesar do conforto, ela sabe que o hotel é uma etapa, não um destino final. “Eu penso em refazer a minha vida, ter a minha independência, porque apesar de aqui ser um lugar muito bom para a gente se estabilizar, é algo passageiro, só um alicerce, um pontapé inicial”, afirma.
“Eu penso em refazer a minha vida, ter a minha independência, porque apesar de aqui ser um lugar muito bom para a gente se estabilizar, é algo passageiro, só um alicerce, um pontapé inicial"
DIFICULDADES
A vida no Eilat carrega desafios que vão além da vulnerabilidade social. Muitas moradoras chegam de contextos de convivência complexos, com traumas familiares, preconceito e violência, e precisam lidar com as consequências psicológicas desses episódios.
Um dos principais problemas enfrentados, segundo Maria, está ligado ao uso de drogas por algumas moradoras. Embora a entrada de entorpecentes seja proibida, algumas consomem esses produtos fora do hotel e retornam sob efeito, o que gera tensão no ambiente.
O impacto desse comportamento é direto nas relações dentro do espaço. Maria relata que, quando algumas moradoras chegam alteradas, surgem discussões e conflitos. A convivência, que já exige adaptação a regras e horários, se torna ainda mais delicada diante dessas situações.
Outros problemas enfrentados no hotel envolvem a saúde mental das acolhidas.
Para Jô, que passou a vida enfrentando rejeição familiar e perdas sucessivas, a adaptação ao espaço envolve cuidados constantes não apenas com sua saúde mental, mas também física. Ela depende de medicação controlada, usada diariamente.
Muitas outras acolhidas apresentam dificuldades emocionais e comportamentais, resultado de anos de exclusão e discriminação.
SONHOS
Sonhar, para quem vive em situação de vulnerabilidade, é também uma forma de continuar. No hotel, os planos das moradoras variam, mas todos têm em comum o desejo de reconstruir o que foi interrompido.
Paola diz que o principal objetivo é sobreviver. É fluente em hebraico e em árabe. Já deu aulas de idiomas e agora se prepara para o exame da OAB. Deseja exercer a profissão de advogada.
Maria, por outro lado, sonha ter uma casa própria. Quer um espaço para viver com seus bichos e recomeçar. Pensa em continuar os estudos, quer ser professora e, quem sabe, fazer um mestrado.
Quando lembra da avó, que morreu de Covid, Maria fala com saudade. Diz que a felicidade da avó no campo é um exemplo de vida que guarda consigo. “Não que a riqueza não traga coisas boas, mas não é isso que vai me deixar feliz”, resume.
No fim, o que mantém cada uma delas em movimento é a ideia de que ainda existe um futuro possível. Mesmo diante das dificuldades, continuar sonhando é o lembrete de que nunca é tarde ou difícil demais para recomeçar.
