“I.A., para quê?”: como pequenos empreendimentos do Centro de Curitiba estão se adaptando ao uso de inteligência artificial; e como eles não estão

Marcos em sua sapataria. Foto: Eduardo Gomm Perry/ Jornal Comunicação

Um martelo, um alicate, uma cola, um estilete, um pé-de-ferro, uma tesoura e uma máquina de costura já bastam para Marcos realizar seu serviço. Já se passaram algumas horas desde que o sapateiro de 53 anos iniciou reparos em um tênis de camurça azul escura com a ponta rasgada. O trabalho, ele relata, é árduo por conta da alta demanda, que contrasta com a falta de mão de obra auxiliar no estabelecimento. Ainda há muitos sapatos precisando de reparos, mas falta ajuda na loja e é difícil de dar conta — “A molecada nova não quer trabalhar em sapataria, né?”, afirma, “Aí vai uma dica, hein? Quem entrar nessa área vai ganhar bem. Ganha uns R$ 10.000 fácil, porque não tem mais”. 

O único ajudante de Marcos é o seu funcionário, Edson (60), que se encarrega de algumas das burocracias necessárias para a administração do empreendimento e, por vezes, do atendimento aos clientes. O ponto da loja, que fica na Galeria Pinheiro Lima, em frente a praça Tiradentes, no Centro, já pertence a Marcos há mais de 30 anos e, desde então, pouco mudou no cotidiano do estabelecimento. Com exceção da contabilidade — hoje facilitada pela informática — a tecnologia utilizada pelo sapateiro em seus reparos permanece a mesma de quando ele começou na profissão: ferramentas majoritariamente analógicas, cujo bom manuseio, explica o empreendedor, é o suficiente para manter sua loja de pé. 

Apesar da falta de atualização nos métodos, a clientela continua estável. O boca-a-boca e o ponto movimentado mantêm bem-sucedida a sapataria, e Marcos só tem elogios a fazer a respeito da tecnologia que surgiu nos últimos anos, sem ter observado uma queda na demanda pelo seu serviço. O Pix, por exemplo, é visto por ele como benéfico. Já a inteligência artificial (I.A) pouco impactou o seu negócio e sua única ressalva é que esta nova tecnologia seja utilizada para a criação de notícias falsas. “Eu vou usar I.A para quê?”, diz, “A minha profissão é artesanal, manual… Já a I.A é uma coisa do futuro. Não bate… Eu sou analfabeto nessas coisas”. 

Enquanto avalia o estado do tênis azul rasgado, Marcos cumprimenta transeuntes que passam pela frente da loja, atravessando a galeria — alguns deles clientes. Por ora, os passantes não entram no estabelecimento, mas é certo que quando gastarem os seus calçados eles voltarão para a Sapataria da Galeria de Marcos, cuja única forma de atendimento é presencial. 

Um modelo de negócio nem tão distinto é adotado pelo comércio gerenciado por João Alves (69), que fica na Saldanha Marinho, a poucas quadras da Praça Tiradentes. João é proprietário da Casa do Fumo, um antigo empreendimento que ele adquiriu de seu concunhado e antigo patrão. Além de artigos para fumantes, o catálogo da loja também conta com artesanato, tintas, pincéis, peças em gesso, entre outros produtos voltados para a produção de arte. 

João Alves em sua loja de fumo. Foto: Eduardo Gomm Perry/ Jornal Comunicação

Diferentemente da sapataria, a Casa do Fumo tem site, rede social e está registrada como um negócio no Google. Segundo João, a internet realmente facilita algumas coisas para a loja — muitos dos clientes descobrem o estabelecimento, através de buscas on-line —, mas as redes sociais da Casa do Fumo são um pouco paradas e o boca-a-boca continua sendo o carro-chefe do marketing adotado por Alves, inclusive entre os mais jovens. “Hoje com a parte do artesanato tem muitos clientes novos, né? Pessoas que frequentam faculdade de Belas Artes, sabe?… Além disso, tem bastante jovem que hoje tá aderindo aí a ideia de fazer o seu próprio cigarro”, ele relata. 

Com a clientela em dia e sem planos de abrir outras lojas, o empresário afirma não ter se preocupado com inteligência artificial ultimamente. Para ele, nenhuma máquina seria capaz de fazer o seu trabalho e, por enquanto, João ainda não enxergou nenhuma utilidade na I.A: “Nada substitui o ser humano… A I.A apenas copia o que o ser humano faz”.

Chame-a de tradicional ou ultrapassada, a maneira como estes pequenos empresários lidam com a gestão de seus empreendimentos manteve-os estáveis mesmo após o advento de tecnologias tidas como revolucionárias para todos os setores produtivos, como a internet e a inteligência artificial. Além disso, pelo menos no que diz respeito ao uso de I.A, Marcos e João não estão sozinhos. De acordo com a 7ª edição da pesquisa Transformação Digital nos Pequenos Negócios, realizada entre março e maio deste ano pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), apenas 42% dos pequenos empreendedores do Paraná utilizam inteligência artificial — ou seja, uma maioria no estado ainda não cedeu para a força de trabalho não-humana.

Os 42%

João, Viva La Vegan

João no seu restaurante vegetariano. Foto: Eduardo Gomm Perry/ Jornal Comunicação

Se por um lado uma parcela dos pequenos empresários do estado não enxerga valor na adoção de inteligência artificial, por outro há quem esteja trilhando o caminho oposto. Também no Centro, próximo ao Passeio Público, fica o restaurante vegetariano Viva La Vegan. O negócio é tocado por três sócios: João (38) e Fernanda são responsáveis pela parte administrativa, enquanto Renan gere o dia-a-dia da cozinha. 

O restaurante funciona com dois fluxos principais: no almoço, um cardápio rotativo de pratos quentes, que muda diariamente; e no jantar, quando são servidos lanches e porções, que fazem parte de um cardápio fixo elaborado pela casa. O risoto ao pomodoro com coxa de Yubá, por exemplo, que é servido no almoço de sexta-feira, deixa de ser uma opção no sábado, quando um prato completamente diferente — feito com outros ingredientes — é elaborado pela equipe do estabelecimento. 

Este método, explica João, exige a superação de um desafio logístico: gerenciar o inventário de insumos necessários para a manutenção de um cardápio em constante transformação. “Meu estoque deve ter mais de 350 itens para eu fazer compra semanal… Preciso fazer o cardápio toda semana e gerar uma lista de compra”, relata. Segundo o empreendedor, esta tarefa levava cerca de meio expediente para ser resolvida no passado, mas agora, com a inteligência artificial, João encontrou uma solução que reduziu o tempo gasto com controle de estoque substancialmente: “Eu fiz uma automatização ali no Google Sheets em que eu uso o ChatGPT [serviço de I.A provido pela OpenAI] para ele me ajudar a fazer scripts em código… Eu não manjo de código, mas eu sei o que que eu quero fazer”.

A I.A também se faz presente em outras instâncias do Viva La Vegan. A contabilidade do empreendimento, por exemplo, também foi positivamente afetada, e hoje os sócios do restaurante têm ao seu dispor um software próprio que busca em uma plataforma da Secretaria da Fazenda as notas emitidas no CNPJ do Viva La Vegan, agrupa-as em uma pasta digital, e adiciona os valores em uma planilha automaticamente. “Então, isso também eram três dias de trabalho que eu gastava batendo nota. Hoje, dura 10 segundos”, afirma. 

Apesar de reconhecer o tempo economizado pela implementação da I.A no setor administrativo, João é contrário a alguns usos da tecnologia que vêm se tornando comuns em outros estabelecimentos. Ele critica, sobretudo, a geração de imagens artificiais para ilustrar cardápios em plataformas de delivery, como o iFood — prática que, segundo o empreendedor, tem se espalhado no segmento. Para ele, fotos falsas comprometem a credibilidade do restaurante e distorcem a experiência real do cliente. 

Luiz Fernando, Raízes Africanas 

A criação de imagens com inteligência artificial, contudo, é um recurso bastante útil para Luiz Fernando, proprietário da Raízes Africanas, uma loja de artigos religiosos para umbanda e candomblé localizada em frente à Praça José Borges de Macedo. Ao contrário do Viva La Vegan, onde o uso de I.A é mais produtivo em processos internos, Luiz aproveita a tecnologia para fortalecer a sua marca. Foi com ela que o pequeno empresário desenvolveu a identidade visual e a logomarca da loja, e é dela que ele extrai parte das artes e textos publicados nas redes sociais do seu estabelecimento. “Eu uso para fazer chamadas, correção de texto, essas coisas”, relata. 

Luiz Fernando em sua loja de artigos religiosos. Foto: Eduardo Gomm Perry/ Jornal Comunicação

No Instagram e no Facebook, Luiz publica fotografias dos produtos, vídeos curtos e artes criadas digitalmente. Seu comércio atua em um segmento bastante nichado e a inteligência artificial é uma das maneiras que o empresário encontrou de se comunicar com o seu público alvo no ambiente cibernético. O contato presencial com o consumidor permanece, aliás, Luiz julga que devido a intrínseca relação de seu negócio com a religião, o diálogo com quem compra na loja Raízes Africanas é essencial. Mas não custa para ele encontrar pessoas novas, que talvez não estariam caminhando pelo Centro de Curitiba, não fosse para dar uma passada em sua loja. “Eu acredito que ela [a I.A] pode engrandecer muito meu comércio… Mas eu trabalho com o ser humano. A máquina pode tentar ao máximo, mas ela não vai tirar isso que é nato do ser humano”, afirma. 

Reportagem por Eduardo Gomm Perry

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