O óbvio precisa ser dito: “Eu não sou a minha deficiência”

Como o capacitismo se manifesta no cotidiano das pessoas com deficiência

“Descobri o que era capacitismo quando assumi o meu autismo, aos 19 anos.”

Muitos dizem que os olhares alheios cegam a coragem. Para Matheus Chaves, o próprio olhar barrou a autoaceitação e colocou o empecilho para o convívio harmônico. Filho único de pais separados, seu primeiro diagnóstico foi aos 8 anos.

“Não revelei a minha condição para ninguém e me empenhei em esconder por um grande período de tempo. Eu pensava: ‘O pessoal vai me tratar diferente, vão achar que eu sou retardado’, assim como já vi acontecer com outros”. O silêncio foi o seu refúgio.

“Infelizmente o capacitismo é muito presente na vida de pessoas dentro do Espectro Autista, não só no TEA (Transtorno do Espectro Autista), mas em todos os transtornos do neurodesenvolvimento. O capacitismo expressa a ideia de que as pessoas com deficiências (físicas ou mentais) são incapazes, o que os leva à negação.”, explica a psicóloga Luana Xavier.

De fato, a negação foi o abrigo contra preconceitos capacitistas, mas também de consequências que encontraram morada em seu imaginário. Sua intuição estava correta. Após a perda do medo, descobriu um capacitismo que acontece na prática todos os dias. “Você tem que provar o tempo todo que você é capaz, muitos dizem não, antes mesmo de conhecer os meus potenciais”, desabafa.

Afinal, o que é capacitismo?

Discriminação e preconceito. A junção dessas ações contra pessoas com deficiência pode se manifestar por meio de discursos que tratam essas pessoas como anormais ou incapazes, em comparação com o que é considerado socialmente perfeito. Esse pré-conceito é fundamentado na premissa de que há uma diferença entre corpos perfeitos e “anormais”, e julga que essa condição afasta o indivíduo de diversas práticas sociais, como a educação, o trabalho, a relação sexual e a independência. 

As piadas, os termos pejorativos (retardado, incapacitado, demente, etc.), a infantilização, a exclusão são algumas das práticas e falas que caracterizam o capacitismo. Já no campo das opressões silenciosas, a generosidade não solicitada — conduzir cegos e cadeirantes de forma voluntária — é uma atitude recorrente dos capacitistas. Isso é consequência de um problema estrutural, em que uma parte da sociedade reconhece um deficiente como um ser incapaz e necessitado de ajuda constante. 

Em teoria, esse tipo de preconceito pode parecer algo simples de ser assimilado; na prática, o capacitismo é uma realidade presente em diversas ações de maneira silenciosa e invisível. Você, leitor(a), provavelmente, o reproduz no seu dia a dia.  Da mesma forma que a discriminação contra os negros é racismo, o preconceito contra as mulheres é machismo, o ódio ao imigrante é xenofobia, o preconceito contra as pessoas com deficiências tem nome.

Capacitismo é crime, e pode resultar em prisão pelo período de 1 a 3 anos, além de multa, conforme a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. 

Tudo começou na escola

“Na escola, eu nunca fiz questão que gostassem de mim, por isso criei amizades tão sólidas. São pouquíssimos, no máximo três, mas foram as pessoas que viam além do meu espectro”.

Metódico, poucas palavras, gestos repetitivos e pouco falante, Matheus Chaves iria além de uma criança de 8 anos comum.  Ele construiu a sua história embasado em prezar pela inteligência e valorizar seus poucos amigos.

“Ser amigo do Matheus é saber que ele te valoriza, sem interesses por trás. Sempre muito sincero, é a amizade que eu posso ficar distante como for que quando nos encontrarmos vai ser como os dois meninos do ensino médio” conta amigo próximo de Matheus.

A psicóloga confirma: “Ter um amigo autista muitas vezes é ter um amigo verdadeiro para sempre. São sinceros demais em alguns momentos, às vezes até inadequados, mas não existe nenhuma maldade nisso. E por isso podem não ter uma lista enorme de amigos, mas aqueles que forem escolhidos podem ter certeza que serão privilegiados”.

“É sempre alguém que aprendeu com alguém. Ninguém nasce discriminatório, a pessoa aprende a discriminar”

Rafael Bonfim

Ter três amigos na infância pode parecer pouco, mas é mais do que muitas PcD têm na vida adulta. Nos primeiros anos de vida, é mais fácil para essas pessoas fazerem amizade, porque há menos preconceito em relação à deficiência nessa fase.

“É sempre alguém que aprendeu com alguém. Ninguém nasce discriminatório, a pessoa aprende a discriminar”, explica Rafael Bonfim, especialista em inclusão de PcD. Na infância, as pessoas ainda não foram introduzidas ao preconceito que muitos adultos ao redor têm, portanto, mesmo que exista um estranhamento, isso não se manifesta de forma negativa para Rafael: “A maioria das crianças pergunta por perguntar, e desencana. A criança não é maldosa por natureza”. Dessa forma, conviver com PcD desde a infância diminui o estranhamento, e faz com que exista menos discriminação.

Mas as escolas também podem ser espaços de discriminação, como para Maria Gabriela, já que nem sempre representaram o espaço de acolhimento e cuidado que deveriam ser. Das instituições que não negavam a matrícula em função da deficiência, só restava o abandono e a culpabilização, como conta Regiane, sua mãe: 

“Aconteceu de eu chegar na sala de aula e ver a Gabi no cantinho, sem participar das coisas, sem ter material. Quando as outras mães recebiam a pasta, a da Gabi não vinha. 

“Certa vez uma psicóloga e uma psicopedagoga me chamaram nessa escola regular e me perguntaram por que a Gabi não aprendia. Se ela tinha alguma outra deficiência. Mas, na realidade, não é que ela não conseguia aprender. O material para a pessoa com deficiência intelectual tem que ser adaptado. O tempo da pessoa com deficiência intelectual é outro. A forma dela aprender é diferente da forma das outras crianças aprenderem. E a professora, o gestor da sala, tem que estar preparado para isso.” E eles não estavam.

Inclusão é estar preparado para os mais diversos cenários, neste caso, ao invés de atacar o problema da falta de material, os profissionais resolveram atacar a família e a criança.

A experiência marcou, e marcou negativamente: “Infelizmente  essa foi uma situação que me deixou muito, muito chateada. Porque as próprias pessoas que deveriam conhecer, fizeram esse tipo de pergunta para mim, para uma mãe”.

Ane Leôncio, intérprete e especialista na área de inclusão, alerta sobre a importância de ver cada pessoa de forma singular: “Cada indivíduo é um ser particular, é a mesma coisa com surdo, nem todos têm essa chance de ser alfabetizado e ter um contato com a alfabetização dentro de uma escola bilíngue, por exemplo. Muitos não são alfabetizados, ou não têm conhecimento da língua de sinais.” Isso abre um leque de demandas e necessidades, o ensino deve ser inclusivo, e a comunidade surda muitas vezes acaba sendo vista como diferente do resto da população de seu próprio país, como comenta o intérprete Rogério Alves: “Se um surdo nasceu no Brasil, ele é brasileiro e a língua brasileira é português. Então ele acaba tendo que ser obrigado a ser bilíngue em seu próprio país. O surdo é como um estrangeiro em seu próprio país.”. Tudo se inicia na escola, com uma educação não exclusiva, que valorize a Libras como um idioma e não somente como uma forma de comunicação.

Intérprete de libras há quatro anos, Ane conta que se interessou pela língua de sinais depois de conhecer a família surda de uma de suas alunas. “Eu não conseguia me comunicar com a mãe. Essa foi a primeira barreira e aquilo me causou um constrangimento muito grande”, lembra. Ane decidiu então fazer um curso básico de libras e se apaixonou pela língua e pela cultura surda. Além de intérprete, agora ela leciona aulas de Libras e inclusão, de forma voluntária.

Quem eu sou

“Me assumir foi um processo gradual. Passar por determinadas situações me traz orgulho da coragem que eu tive de contar quem eu sou”

Matheus Chaves

Para Matheus Chaves, não foi difícil provar sua capacidade. Desde o ensino fundamental, foi destaque das escolas por onde passou, fez duas faculdades e foi elogiado nas empresas em que atuou.

“Me assumir foi um processo gradual. Passar por determinadas situações me traz orgulho da coragem que eu tive de contar quem eu sou”, se emociona. “Tudo começou no meu primeiro trabalho, como menor aprendiz, aos 17 anos. Eu precisava ajudar a minha família e tinha medo de contar sobre meu espectro e perder a vaga.” Assim, ele trabalhou por duas semanas com atendimento — o inimigo de quem possui dificuldades de inter-relações.

As entrevistas eram como doses de tortura para ele, já que olhar nos olhos é uma de suas limitações para manter a calma. Duas semanas depois, assumiu que o plano não daria certo, já que atendeu as chamadas de interessados pela sua vaga “Essa vaga já foi ocupada, moça”, conta Matheus, pouco antes de ser despedido e descobrir que o seu lugar foi divulgado antes mesmo da comissão.

“‘Não gostamos do seu perfil’. Eles não sabiam das minhas limitações e eu também não sabia que a minha área era TI, onde me encontrei, depois de uma virada em minha vida.”

Foi em um curso para conseguir emprego que Matheus teve a oportunidade de perceber que estava tomando a decisão errada. “Senti o capacitismo na cara mesmo quando eles falaram que eu não conseguia emprego porque eu não sabia ser normal, eu não conseguia olhar nos olhos. Nesse momento senti o peso de que eu realmente tenho isso”.

“Aquilo me chocou.” 

O choque antecede ações de coragem. Matheus mudou a sua perspectiva e por meio de sessões terapêuticas trabalhou o que o limitava.

“Tratamentos como psicologia, fonoaudiologia ou terapia ocupacional têm um papel importantíssimo na intervenção do tratamento de autistas ou qualquer outra deficiência, principalmente no gerenciamento dos desafios associados ao próprio capacitismo. O profissional poderá utilizar as abordagens terapêuticas adequadas a um quadro específico”, aconselha a psicóloga Luana.

Foi o que realmente aconteceu e traçou o ponto de virada para Matheus. “Aprendi a superar aquele medo e entendi que me assumir seria a melhor alternativa.” 

Esse processo – que está ligado ao entendimento do problema – não necessariamente resulta em uma aceitação. Mesmo passados 50 anos desde que começou a perder a visão, Ênio Rodrigues da Rosa não aceita isso:

“Se me perguntam ‘você aceita ser cego?’, aceito porra nenhuma”

Ênio Rodrigues da Rosa

“Depois de esgotar todas as possibilidades médicas naquele contexto em que eu estava, falei: ‘não quero mais saber de médico’. Eu perdi a esperança de enxergar? Não. Eu fui rezar, acendi vela, fiz promessa, tomei água benta e por aí vai. Até que eu mandei todo mundo pra puta que pariu. Pensei: ‘Se existe milagre, por que existe para os outros e não para mim?’. Se me perguntam ‘você aceita ser cego?’, aceito porra nenhuma. Mas resolve o problema? O fato é que eu sou cego. Não tem como resolver.”

Para outras pessoas, a fase de aceitação acontece desde cedo, diretamente do útero. Mas isso não exclui a possibilidade de contato com o preconceito, pois há quem coloque a condição de Maria Gabriela na mesma categoria das doenças contagiosas. Já houve casos, de acordo com Regiane, de mães que tiraram seus filhos de perto ou que os impediram de brincar com ela por medo e ignorância. Mal sabem eles que se trata de uma alteração genética e que “eles são perfeitos na forma que são. Esse é o meu olhar e o olhar de muitas pessoas. Não tem porque você mudar algo que Deus fez perfeito”, como afirma a mãe da Gabi.

O desafio na criação de crianças como Maria Gabriela está em desenvolver um ambiente saudável e em contato com a realidade ao mesmo tempo. Foi com esses objetivos em mente que Regiane norteou o cuidado e permitiu que essas experiências não influenciassem negativamente a vida de sua filha, o que garantiu a Gabi conhecimento e a aceitação de si mesma: “Eu nunca deixei que isso impactasse. A auto estima da Gabi é muito boa. Ela sabe que ela é Síndrome de Down. Eu sempre falei para ela, eu falo assim: ‘olha, filha, você pode tudo. Talvez você não consiga ao mesmo tempo que o teu amigo, que o teu irmão, que teu primo, mas você pode tudo, basta você querer e nós termos as ferramentas adequadas.’”

Daquele jeito, um capacitismo disfarçado

Encontrar trabalho não é uma tarefa fácil, mas ela se torna ainda mais difícil quando se trata de pessoas com deficiência. Como Ênio, 64 anos, que começou a perder a visão ainda adolescente, e teve que enfrentar a crueldade do preconceito dentro do mercado de trabalho.

“Acho que uma das coisas mais marcantes foi quando fiz o meu primeiro concurso público. Me inscrevi como pessoa cega no concurso, já tinha reserva de vaga no edital, e passei por todas as etapas do concurso. Na última etapa, existe um exame médico pré-admissional, em que eu fui considerado inapto para exercer a função de pedagogo para a qual eu tinha feito concurso. Eu fiz uma formação de quatro anos de pedagogia, e a Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) me certificou como pessoa habilitada para o exercício da profissão. Quem é ele, médico, para dizer se eu estou ou não estou apto para o exercício da função de pedagogo?”

“Você é muito bom, mas nós não podemos te efetivar”, sumariza Matheus. Aos 24 anos, ele inicia a carreira na área da tecnologia da informação como prodígio e ainda vive em busca do emprego efetivado, frente a um capacitismo silencioso e muito sutil. Apesar de comprovar suas qualidades, ele suspeita que preferem mantê-lo como estagiário para cumprir a cota PcD, que é obrigatória às grandes empresas. 

Existem leis que procuram garantir direitos e a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho em geral, incluindo pessoas no espectro autista. No Brasil, a legislação vigente é a Lei nº 8.213/1991, conhecida como Lei de Cotas, que estabelece que empresas com 100 ou mais funcionários devem destinar uma porcentagem de suas vagas para pessoas com deficiência. Essa porcentagem varia de acordo com o número total de funcionários da empresa e é regulamentada pelo Decreto nº 9.508/2018.

Mas, na prática, esses direitos não são assegurados, muito menos fiscalizados. “Meu chefe me confirmou que eu seria efetivado e no outro dia, e o RH barrou, é um mistério”, comenta Matheus.

“Na nossa cultura, não é tão simples, nunca é direto, e ele é disfarçado de várias coisas, o que torna o capacitismo muito perigoso”. Essa frase de Rafael Bonfim sintetiza a situação de Matheus. Mesmo que ele pudesse ser efetivado eventualmente, a empresa negava isso devido à sua deficiência, sem dar explicações, embora isso já fosse óbvio. “Capacitismo é quando você nega algo a alguém com deficiência, com base nessa deficiência” – Matheus foi vítima da atitude capacitista mais comum do mercado de trabalho.

Em alguns casos, o mercado ainda é mais cruel. Muitas PcD não recebem sequer a oportunidade de ingressar em uma empresa devido à deficiência, com base na presunção de que o cargo não pode ser exercido por essa pessoa, sem ter feito qualquer pergunta ao candidato. Agindo assim, o empregador faz com que a sua própria ignorância impeça a PcD de concorrer por um emprego, e não se dá trabalho de falar com o candidato para saber se seria possível fazer determinada função.

“Ao invés do recrutador me olhar como um profissional, ele vai pensar ‘tem uma escada, não posso contratar o Rafael’”

Rafael Bonfim

Rafael traz exemplos de como isso se manifesta. “Eu uso uma cadeira de rodas. Vamos imaginar que eu me candidatei para uma vaga, e na empresa tem uma escada. Ao invés do recrutador me olhar como um profissional, ele vai pensar ‘tem uma escada, não posso contratar o Rafael’. Ele não vai me perguntar se isso é um problema”. Nesses casos, o empregador vê, antes de qualquer outra coisa, a deficiência, independentemente da qualificação do candidato.

Isso acontece até mesmo no dia a dia de indivíduos como Rafael – as pessoas incentivam que ele não vá a determinado lugar que tenha uma escada, para que ele “não se sinta mal”. A pessoa acha que está fazendo uma boa ação e se preocupando com a inclusão, sem tentar fazer com que o deficiente se sinta confortável – o capacitismo é disfarçado de cuidado. Esse falso cuidado se manifesta através de uma negação.

Outra forma de capacitismo que acontece é a atitude de desconsiderar situações de educação por pessoas cegas por achar que elas “não vão ver” o que aconteceu.

“Tem pessoas que enxergam e que passam pela gente sem dizer bom dia. Você só escuta o barulho das tamancas passando, mas quem é que está passando ao lado? Ou quando você está numa reunião e uma pessoa se levanta e sai. Aí você começa a falar com a pessoa e de repente alguém avisa que ela saiu da sala. Então você fica com cara de otário”, conta Ênio.

Capacitismo também é situações como essa – deixar de exercer as “boas maneiras” do convívio social, a partir do pressuposto de que as pessoas não percebem, é permitir que o capacitismo permaneça na sociedade.

O primeiro passo é perguntar

A partir de todas essas situações, lidar com pessoas com deficiência pode parecer complicado, e exigir muito conhecimento da sociedade. No entanto, isso é adquirido com vivência, e, principalmente, pela comunicação: “Você pode ter dúvida, mas nada te impede de falar com a pessoa”. Para Rafael, a atitude inicial deve ser sempre essa – falar com a pessoa – o que não aconteceu nas situações de Matheus e Ênio.

No entanto, além de não saber como lidar, as pessoas têm medo de interagir de qualquer maneira com PcD. Como a convivência com essas pessoas não é comum a grande parte da população, elas representam o desconhecido, o que exige mais raciocínio nas primeiras interações. Assim, é mais fácil só evitar e excluir pessoas com deficiência do que se dar ao trabalho de pensar.

No caso de cegos, muitas pessoas ao redor tomam alguma atitude, que não costuma ser o diálogo. O mais comum na vida de pessoas cegas é alguém se prontificar a ajudar sem antes questionar se alguma ajuda é necessária. Mesmo que feita sem a intenção de ferir, essa atitude parte do pressuposto de que o PcD precisa de ajuda a todo momento. Por isso, é necessário perguntar antes se há necessidade da ação – Ênio, Rafael e outras PcD podem se manifestar caso precisem de ajuda.

Para Ênio, apesar de uma deficiência impor barreiras, ela não impede o desenvolvimento de ninguém: “O maior problema das pessoas com deficiência não está nelas. Não é uma questão individual, é uma questão social, é estar numa sociedade que sempre desconsiderou as necessidades de determinados grupos, de pessoas”.

A Associação Reviver, que Regiane já presidiu, também age em função de fomentar a autoestima e a relação saudável consigo e com os outros, entendendo cada indivíduo como único e singular. “Nós temos um grupo de jovens aqui na associação e a autoestima deles é muito boa, eles se amam entre si. Podem até discutir, brigar, mas antes de ir embora, todo mundo se abraça, se beija. Gostaria que a humanidade como um todo tivesse essa civilidade”, relata.

Ou seja, não há preparo da sociedade para lidar com essas situações em seus cotidianos, o que as levam a ver as pessoas com deficiência como meros “coitadinhos”.

“É sobre eu chegar perto do ouvido dela e começar a gritar enlouquecidamente, achando que vai me compreender melhor? Isso é extremamente constrangedor”

Ane Leôncio

Em situações de dúvida de como agir ou tratar uma pessoa com deficiência, o primeiro passo é perguntar – o clássico: perguntar antes de fazer. Existem maneiras melhores de realizar determinada ação que vão além do primeiro senso comum das pessoas. Ane ilustra uma situação que não deve acontecer: “É sobre eu estar de frente com a pessoa ou chegar perto do ouvido dela e começar a gritar enlouquecidamente, achando que vai me ouvir ou vai me compreender melhor? Isso é extremamente constrangedor.”

Para evitar esse tipo de situação, ela aponta uma alternativa para agir de maneira mais adequada: “Você pode simplesmente tocar o ombro da pessoa, ela vai te olhar. Se você não sabe a língua de sinais, uma alternativa é articular melhor os lábios, porque eles fazem a leitura labial, eles têm essa facilidade de compreensão.”

É carinho, mas sem esquecer da realidade

A informação que o seu filho vai nascer com alguma deficiência em geral não é uma notícia recebida com muita facilidade. E sem uma rede de apoio pode ser ainda mais difícil. Há mães que pensam que jamais aconteceria isso com elas, outras pensam que são as únicas que estão passando por isso e não veem rotas ou possibilidades de esperança. 

Garantir apoio para essas famílias é parte fundamental do trabalho da Associação Reviver Down. Segundo Regiane, ex-presidente da associação, existe uma equipe formada por pais de crianças com Down – pois é necessário ter a experiência para melhor acolher – que faz esse trabalho, de forma a demonstrar quais são os direitos assegurados à criança e todas as questões que envolvem a condição da Síndrome de Down, em especial para as famílias em situação de vulnerabilidade social.

“É o momento de você pegar no colo e abrir os olhos para a realidade ao mesmo tempo. De encarar através de outros olhos”

Regiane Gimenez da Silva Mendonça

Ela afirma que é importante explicar do que se trata exatamente a condição, desconstruir quaisquer estigmas e alertar sobre complicações: “a Síndrome de Down não é uma doença, mas com essa alteração genética algumas comorbidades vêm junto. Pela última pesquisa, 60% são cardiopatas ou possuem outras comorbidades eventuais.”

“É o momento de você pegar no colo e abrir os olhos para a realidade ao mesmo tempo. De ajudar naquilo que nós podemos e conseguimos. De encarar através de outros olhos”, explica.

O óbvio que nem sempre é tão óbvio assim

Após todos esses relatos, a conclusão mais razoável – também a mais óbvia – é que, independente das características físicas, intelectuais, sensoriais etc., o tratamento a ser dado para qualquer PcD é bem simples: trate como uma pessoa.

“Por que primeiro tem que aparecer a cegueira e não a pessoa? Quero ser tratado como pessoa humana. Ser humano é muito mais que aspectos corporais. O cego vive no mundo que todo mundo vive!”, resume Ênio Rodrigues.

Essa incapacidade de ver além da deficiência tem muita relação com a maneira como a mídia trata essas pessoas – PcD só recebem atenção por falta de acessibilidade ou histórias de superação, que supõem que a deficiência é uma tragédia, e que superá-la é uma conquista. Rafael lamenta como já foi procurado para isso: “Eu tenho paralisia cerebral e sou um adulto funcional, não tem nada de vanglorioso nisso. Mas já quiseram fazer matérias comigo por causa disso.”

Situações como essa propagam o capacitismo positivo, que Rafael define como “perpetuar a ideia de que a pessoa com deficiência é exemplo de alguma coisa só porque tem essa deficiência”. Assim, grande parte da população não apenas desconhece como lidar com PcD, mas tem ideias erradas em relação à inclusão desse grupo.

Para Regiane a experiência foi um pouco diferente. Ela analisa que graças à visibilidade que uma novela da Globo trouxe ao tema, o assunto da Síndrome de Down passou a ter mais abertura para debate, o que era inexistente antes. Passou a ser mais fácil falar sobre isso agora que as pessoas tinham uma ideia do era, embora ainda não houvesse conscientização de fato.

O primeiro passo para entender e incluir de forma sincera é compreender a pessoa portadora de deficiência como um indivíduo único e singular. Desapegar do olhar de coitadinho ou digno de pena. Cada indivíduo não está fadado a sua deficiência, como aponta Ane: “Realmente olhar para a pessoa e entender que ela é um indivíduo como você ou qualquer outro. E você se pôr no lugar dessa pessoa, e entender que ela não é somente uma deficiência, ela tem sentimentos, histórias, alegrias, não alegrias.” O PcD é uma pessoa que possui nome próprio, identidade, gênero e características individuais. Na dúvida de como se referir a eles, perguntar sempre vai ser a melhor opção.

O capacitismo em números

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou em 2022 cerca de 17,2 milhões de pessoas com deficiência de 2 anos ou mais de idade no Brasil, correspondendo a 8,4% da população. O estudo revela que 3,8% da população têm deficiência nos membros inferiores, enquanto 2,7% têm nos membros superiores. 3,4% dos brasileiros têm deficiência visual; auditiva 1,1% e neurológica divergente 1,2.%. 

O Censo do IBGE, feito em parceria com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), aponta as desigualdades sociais dos deficientes no país considerando quatro aspectos: mercado de trabalho, educação, participação/gestão e rendimento/moradia. 

No mercado de trabalho, por exemplo, a desocupação é maior se comparada aos não deficientes; esse resultado é consequência dos fracassos na procura por emprego, o que os torna desocupados. Além disso, o estudo formula a hipótese de que a “inclusão profissional, sobretudo a partir de empregos formais, é um desafio para as pessoas com deficiência, que devem lidar com diversos fatores adversos, como a inadaptação aos lugares em que trabalham, o deslocamento, o capacitismo, etc.”

Em termos de educação, em 2019, para as pessoas com deficiência foram estimadas taxas menores de conclusão do ensino médio do que para as sem; os recortes por sexo e cor ou raça mostraram os piores resultados para os homens com deficiência de cor ou raça preta ou parda (34%).  Esses números podem ser um reflexo da dificuldade que as escolas públicas têm em integrar os alunos, além da baixa qualificação docente especializada e da estrutura não acessível.

Considerando as estatísticas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o relatório apresenta os números nas eleições municipais de 2020. Dentre os 518.485 candidatos a vereador no país, 2299 (0,44%) eram PcD. Foram eleitos 58.005 vereadores sem deficiência e 523 com deficiência (0,9%). O relatório revela ainda que a maioria das PcD eleitas tinha deficiência física, e que nenhum vereador autista foi eleito. Além disso, é possível notar uma diferença entre homens eleitos (461) e mulheres eleitas (62).

Reportagem de Allan Alexandre Carneiro, Eric Rodrigues, Fernanda Martins, Gabriel Arouca Leão, Maria Clara Moleta e Thiago Vernizi.

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