O preço da madrugada: o corpo e a mente dos que trabalham enquanto o país dorme

Enquanto crescem os casos de afastamento por ansiedade e depressão, trabalhadores noturnos enfrentam jornadas exaustivas, falta de apoio psicológico e o silêncio sobre o próprio sofrimento

C.J. trabalha fazendo taxa de garçom nos fins de semana, para completar a renda de casa. No geral, atende em casamentos, formaturas e festas que exigem uma preparação minuciosa do ambiente. Estudante de engenharia elétrica na UFPR, tem vinte anos de idade — o corpo ainda aguenta os turnos longos, os copos equilibrados na bandeja e as madrugadas de pé em celebrações que parecem não acabar. Mas, a cada evento, a cada caixa carregada, o peso começa a deixar marcas em seu corpo e mente.

Foi numa dessas diárias que ele viveu uma das experiências mais exaustivas — e, talvez, mais reveladoras — desde que começou na profissão. Um casamento em Itu, interior de São Paulo.

Era sexta-feira, quase meia-noite, quando o grupo se reuniu para a viagem. A van, velha e apertada, já estava lotada antes mesmo de todos entrarem. Dentro, iam as caixas de pratos, taças de cristal, panelas, refrigerantes e garrafões d’água.

“A gente que carrega tudo”, conta C.J. “Não é só servir mesa. É montar, desmontar, limpar. Fazer o que precisa ser feito.”

O trajeto foi longo e desconfortável. Sete horas e meia de estrada, bancos sem espaço, corpos espremidos entre caixas, sono que não vinha. “A gente ficou em silêncio. Ninguém dormia, ninguém descansava”, conta.

Chegaram a Itu pouco depois das sete e meia da manhã, com o sol já alto. Ainda era preciso organizar o salão e alinhar cada cadeira com precisão. Tudo impecável para o casamento que começaria dali a poucas horas.

No meio da correria, encontraram alguns estofados de cadeira — e foi ali, no chão frio do salão, que improvisaram um descanso. “Deitamos uns quarenta minutos. Só pra dar um gás, pra tentar levantar de novo.” Depois disso, banho rápido, roupa social passada às pressas e o turno seguinte: das cinco da tarde às duas da manhã.

Mas, ao contrário do que muitos imaginam, o fim da festa não é o fim do trabalho. Ainda era preciso desmontar tudo, recolher o material, empilhar caixas, recarregar a van. A volta foi silenciosa, exausta e tão desconfortável quanto a ida.

No balanço da estrada, C.J. lembra que começou a pensar no valor do próprio corpo. “Duzentos e cinquenta reais por uma diária”, repete, “mas será que vale o preço?” Ele fala das dores nas costas, da tendinite que ronda os colegas, do sapato social que aperta, do esforço de parecer sempre pronto, mesmo quando o corpo pede pausa.

“Hoje eu aguento, tenho força e saúde”, diz. “Mas daqui a dez anos não vai ser a mesma coisa.”

“Trabalhar de madrugada é bem complicado. Impacta não só na rotina que a gente tem no trabalho em si, mas também na semana inteira. Desregula o sono, o cansaço é exagerado. Se não fosse por uma questão financeira, este trabalho não seria uma opção.”

Trabalhadores noturnos ao redor da cidade. Fotos: Vitória Smarci

O país que não dorme

Casos como o de C.J. não são raros no Brasil. São muitas as pessoas que não têm escolha senão trabalhar durante a madrugada. Atendentes de redes de fast food, caixas de supermercados 24 horas, bartenders e profissionais da área da saúde — os exemplos se multiplicam.

As consequências, no geral, são visíveis. Mesmo com apenas vinte anos, C.J. já relata dores nos pés e nas costas causadas pela rotina pesada como garçom.

Para Iracema Lua, professora da Universidade Estadual de Feira de Santana e membro do Observatório Nacional de Saúde Mental no Trabalho, é fundamental compreender a dimensão humana por trás dessas jornadas.

“Quando falamos sobre saúde mental dos trabalhadores, precisamos entender o trabalho como um importante determinante social da saúde. A partir dessa perspectiva, podemos pensar em ações de promoção da saúde mental e de prevenção do adoecimento psíquico, além de estratégias nos próprios ambientes de trabalho que favoreçam o bem-estar. O trabalho precisa ser fonte de realização e saúde — não de sofrimento e adoecimento, como infelizmente temos visto em tantos contextos no Brasil.”

Quem cuida também adoece

Mesmo entre aqueles que dedicam a vida a cuidar dos outros, o peso das madrugadas também cobra seu preço. Profissionais da enfermagem — que passam noites em claro  — também sentem as consequências de uma rotina que esgota o corpo e desgasta a mente.

É o caso de Jenira Priscila, enfermeira há 15 anos e funcionária do Hospital São José, em São José dos Pinhais, onde trabalha há mais de uma década no turno da noite. “Entrei jovem, sem filhos, e aceitei o plantão noturno porque era o que tinha. Hoje continuo porque é o único jeito de acompanhar a rotina das crianças”, conta.

Durante catorze anos de trabalho em UTI, Jenira viu o corpo e o humor mudarem. “Ganhei vinte quilos, desenvolvi ansiedade, trato pressão alta e transtorno de humor”, diz.

 “Tem dias em que quero abraçar o mundo, outros em que só quero um buraco pra me esconder.”

O relato dela expõe um lado pouco falado da profissão: a saúde de quem cuida. “Não existe acompanhamento psicológico para os trabalhadores. Cada um precisa se virar por conta própria. Às vezes, a gente brinca: ‘hoje tô medicada, tá tudo bem’. É o jeito de tentar deixar o clima mais leve.”

Entre plantões de doze horas, crises de ansiedade e a tentativa de conciliar o mestrado com a maternidade de dois filhos — um deles neurodivergente —, Jenira carrega o mesmo dilema que tantos outros trabalhadores noturnos enfrentam: o de seguir por necessidade, mesmo quando o corpo já pede pausa.

O peso dos números

Os relatos de C.J. e Jenira não são casos isolados. Dados recentes mostram que o adoecimento mental ligado ao trabalho se tornou uma epidemia silenciosa, em que quem trabalha durante a madrugada esta ainda mais sujeito a sofrer os efeitos.

Em 2024, o Brasil registrou 472 mil afastamentos por ansiedade e depressão, o maior número em dez anos, segundo o Ministério da Previdência Social. O dado representa um aumento de 68% em relação a 2023, e já faz da saúde mental uma das principais causas de afastamento no país.Pesquisas internacionais reforçam o alerta. Um levantamento da Capita (Workplace Wellness Employee Insight Report) revelou que:

  • 79% dos trabalhadores relataram ter sofrido estresse no trabalho nos últimos 12 meses;
  • 22% afirmaram sentir estresse com alta frequência ou o tempo todo;
  • 47% acreditam que é “normal” sentir estresse e ansiedade no trabalho;
  • 45% já pensaram em deixar o emprego devido ao estresse;
  • 53% disseram ter colegas que precisaram abandonar o trabalho por conta disso;
  • 49% não acreditam que seus líderes saberiam lidar com um problema de saúde mental.

Entre os efeitos colaterais do estresse, 44% dos entrevistados relataram estar mais irritados, 28% descontam o cansaço na família, 25% aumentaram o consumo de álcool, e 15% passaram a fumar mais.

O problema é agravado pelo silêncio. Embora 24% dos trabalhadores já tenham se afastado por motivos de estresse, menos da metade desses casos foi registrada oficialmente como licença de saúde mental.

 Além disso, 37% dizem não se sentir à vontade para assumir, nem à empresa nem aos colegas, que o afastamento foi motivado por questões psicológicas. Mais da metade (55%) afirma sentir medo de tirar dias de folga para cuidar da própria mente.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta outro fator de desgaste: 42% dos brasileiros já sofreram assédio moral no ambiente profissional — uma violência que agrava quadros de ansiedade e depressão e reforça o ciclo de sofrimento.

Há, contudo, um movimento de resposta. Segundo uma pesquisa da Wellable, parte das empresas começa a adotar medidas voltadas à saúde mental dos trabalhadores:

  • 67% já oferecem programas de assistência aos empregados;
  • 46% investem em palestras, treinamentos e ações educativas;
  • 30% flexibilizaram escalas de trabalho;
  • 29% oferecem acesso a aplicativos e ferramentas digitais de apoio emocional.

Contudo, medidas como essas ainda são exceção em ambientes de trabalho como os de C.J. e Jenira. Segundo Nuncio Manala, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba, a pressão cotidiana sobre os trabalhadores tem se tornado insustentável.

“Hoje, muitos vivem sob enorme pressão por conta das longas jornadas. Fazem horas extras para complementar a renda e acabam recorrendo a medicamentos de forma inadequada, com medo de perder gratificações ou a participação nos lucros. Em Curitiba, diversas clínicas estão lotadas de profissionais em busca de recuperação mental, e muitos deles já enfrentam dependência de remédios.”

Em 1978, Chico Buarque lançou a clássica Cálice, música que se tornou símbolo da resistência à ditadura. Quase meio século depois, muitos brasileiros ainda são obrigados a “tragar a dor e engolir a labuta”, silenciados por uma rotina que não lhes dá escolha, apenas a necessidade de continuar.

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