Eu não estava lá, mas consigo imaginar. No dia 14 de junho de 1925, trovões rasgavam o céu de Curitiba. Caía uma chuva torrencial, quem sabe até pedras de granizo, dessas capazes de romper telhados e ferir quem estivesse na rua. É impossível saber ao certo, mas naquele dia a cidade mergulhou em um apagão generalizado. Um chamado, um aviso, um presságio. Nascia alguém diferente de tudo o que aquela província já tinha visto. Metade homem, metade bicho — cem por cento vampiro.
Dalton Trevisan veio ao mundo no meio de uma década efervescente para a literatura curitibana. Entre brigas célebres na Academia Paranaense de Letras e uma cidade que tateava em busca de uma voz própria, ninguém poderia imaginar o que estava por vir.
Um jovem advogado Dalton Trevisan.
Para Caetano Galindo, tradutor, escritor e professor do Departamento de Letras da UFPR, “Não sei se Dalton Trevisan é um exemplo da literatura produzida no estado. Ele trabalhou contra o estado, ele trabalhou contra Curitiba, ele trabalhou contra a literatura local, ele riu disso tudo em boa parte de seu tempo. E talvez, por isso, ele seja o mais curitibano dos autores. Temos uma relação complicada com nossa cidade. E Dalton é o melhor exemplo disso. Ele não era um promotor da literatura curitibana, ele se considerava condenado a ser curitibano. E ao mesmo tempo era viciado em falar sobre a cidade. Mas acredito que ele jamais se consideraria parte de uma literatura curitibana.”
No início de sua carreira, ainda nos anos 1940, Dalton Trevisan já rejeitava boa parte do que Curitiba havia produzido. Crítico feroz do Simbolismo e da mentalidade provinciana que, segundo ele, emperrava a cidade, liderou o grupo que criaria a revista Joaquim, um dos mais importantes porta-vozes de uma geração de escritores, críticos e poetas brasileiros. Era um sopro de ar modernista em plena era do Paranismo, cujo apogeu — e contradições — foram dissecados na primeira reportagem desta série.
As principais críticas de Joaquim miraram diretamente nos pilares da cultura oficial: Emiliano Perneta, o “príncipe” da poesia paranaense, e Alfredo Andersen, referência incontornável das artes plásticas. Dalton não poupava ninguém. Sobre Perneta, escreveu: “Emiliano Perneta foi uma vítima da província, em vida e na morte. Em vida, a província não permitiu que ele fosse o grande poeta que poderia ser, e, na morte, o cultua como sendo o grande poeta que não foi.”
Exemplo de edição da Revista Joaquim, com ilustrações de Di Cavalcanti.
Guta Stresser, atriz curitibana que estrelou O Vampiro e a Polaquinha, adaptação de Dalton Trevisan para os palcos, tem com o escritor uma relação tão enigmática quanto qualquer outro cidadão da cidade, ainda que seja sua parente distante. “Ele assistiu a alguns ensaios do Vampiro e a Polaquinha. E, olha, o mais que eu tenho dele é esse dia. Ele ficou ali vendo um ensaio, falou pouquíssimo. Muito quieto, muito na dele, muito reservado — mas muito atento. E eu acredito, de verdade, que ele estava feliz com o que estava vendo. Feliz mesmo.”
A montagem se transformou em um sucesso estrondoso e colocou Guta em outro patamar na cena curitibana. “Era muito doido ver aquilo acontecendo. A peça tinha uma força estranha, muito bonita. A gente sabia que estava fazendo uma coisa importante, mas não imaginava o tamanho que ia tomar. Era como se tivesse alguma coisa da cidade inteira ali, sabe? Como se todo mundo entendesse do que aquilo estava falando”, lembra.
Para a atriz, um dos motivos que fez com que a peça tivesse tanto sucesso é o fato do curitibano ter se sentido visto e ouvido nos palcos. “Eu acho que foi porque foi uma das primeiras vezes que o curitibano se viu, assim… ele se viu em cena. Quando viu o Dalton montado. É muito louco isso, mas é como se dissesse: ‘É daí que eu vim. É disso que eu sou.’ Sabe? Aquilo bateu de um jeito muito forte. As pessoas se reconheciam.”
E isso também vale para a obra de Dalton Trevisan como um todo. Ele entende Curitiba para além das narrativas oficiais e, ao rejeitá-la, a enxerga de um modo que pouquíssimos conseguiram. No conto “Em Busca de Curitiba Perdida”, condensa sua visão da cidade de maneira fulminante:
“Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo.
Curitiba, onde o céu azul não é azul, Curitiba que viajo.
Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja.”
Dalton criticou abertamente os simbolistas provincianos, assim como as propagandas urbanísticas e o discurso higienizado da era Lerner. Nesse confronto com o mito oficial, encontrou a matéria-prima inesgotável para sua literatura. Entre o cárcere e o lar, transformou Curitiba em destino inevitável: sua terra, sua obsessão, sua condenação.
O mais genial dos escritores curitibanos esteve, durante toda a vida, preso ao fato de ter nascido aqui — e foi justamente dessa prisão que extraiu sua voz. Como escreveu:
“Ó Curitiba Curitiba Curitiba, escuta o grito do senhor feito um martelo que enterra os pregos.
Teu próprio nome será um provérbio, uma maldição, uma vergonha eterna.”
Curitiba é, e sempre será, a cidade de Dalton. Hoje, gosto de imaginar que cada chuva pesada e cada trovão que rasga o céu é o choro do Vampiro. O lamento de quem esteve a vida inteira condenado a esta cidade terrivelmente fascinante, mesmo após sua morte.
Leminski, gênio multifacetado
Poeta, poliglota, judoca, publicitário, compositor musical, romancista, jornalista e acima de tudo, um artista absolutamente marginal — um pichador, sim, por que não? Paulo Leminski, certamente, é o multiartista paranaense mais genial da história.
Metade polaco e metade africano, Leminski nasce em 24 de agosto de 1944, em Curitiba, província em que cresceu e que teve como a cidade amada ao longo de toda a vida. Ele mesmo disse: “Curitiba é igual chinelo velho. Sapato novo aperta o pé”.
“Parem
eu confesso
sou poeta
cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face
parem
eu confesso
sou poeta
só meu amor é meu deus
eu sou o seu profeta”
Durante a infância, o sonho de Leminski era ser monge beneditino. E aos 12 anos, em 1957, ele parte em sua primeira jornada espiritual e intelectual, ao Mosteiro de São Bento, em São Paulo, onde estuda durante dois. Lá, ele é iniciado nos primeiros estudos sobre Filosofia, Teologia e latim, conhecimentos que vão influenciar pra sempre sua obra. E também o que o leva, mais tarde, a escrever uma biografia de Jesus.
Ao longo da vida, Leminski, bom malandro que era, soube usar o seu talento para viver e sobreviver. Usou a alquimia das palavras não só na literatura, mas também na publicidade. Um slogan clássico que o Cachorro Louco deixou na história de Curitiba, foi feito para a imobiliária Galvão: “A imobiliária Galvão acha fácil o imóvel que você acha difícil”. Mais detalhes podem ser conferidos no vídeo do canal Meteoro Brasil.
E uma de suas mais célebres frases, “Sentado, não tem sentido”, foi pichada num muro após a discussão com um chefe numa agência, que queria o obrigar a trabalhar sentado.
Palpite,
o graffiti
é o limite.
Na música, o Judoca Malandro escreveu para artistas do mais alto nível, como Ney Matogrosso, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Uma de suas composições, “Promessas Demais”, interpretada por Matogrosso, foi tema da novela “Paraíso”, da Rede Globo.
Fato curioso é que toda a sua produção literária em vida, entre poesia, romances e uma novela, foi toda escrita inteiramente ao longo do tempo que permaneceu casado com Alice Ruiz, o seu grande amor da vida.
“Essa a vida que eu quero,
querida,
Enconstar na minha
a tua Ferida”
Cronologicamente, assim se dispõe a parte central da obra do Bandido Que Sabia Latim: em 1975, testa os limites da linguagem e da narratividade, numa trama que insere Rene Descartes numa viagem psicodélica, em “O Catatau”; em 1980, o livro “80 poemas”; em 83, arrebenta a cena com sua magnum opus, “Caprichos e Relaxos”, em que mescla prosa, poesia moderna, haicai, poesia concreta e ilustração; em 84, publica mais um romance, “Agora é que são elas”; no ano de 86, arrisca até mesmo uma publicação infantojuvenil, “Guerra dentro da gente”, em que narra a história do personagem “Baita”; sua última obra é de 1987, mais um livro de poesia, “Distraídos venceremos”.
Um dos pontos mais curiosos da trajetória do Kamiquase foi a sua admiração pela cultura asiática e a filosofia samurai. O haicai, é um dos seus estilos mais impregados: “Confira, tudo que respira, conspira”. Ele também escreveu a biografia do poeta japônes Matsuo Bashô, que foi uma das suas influências artísticas.
Leminski e Jorge Mautner brincando de luta. Foto:
Um detalhe é que, assim como Ernest Hemingway, Leminski também sabia trocar soco.
Ele foi aluno do histórico mestre Aldo Lubes, um dos pioneiros do judô em Curitiba. Leminski treinava no dojô de Lubes, a Kadokan, uma das mais antigas academias de judô e karatê da cidade.
Sobre a arte de lutar, Leminski escreveu: “ …tudo o que se sabia é que o domínio de uma arte marcial asiática representava uma superioridade na luta dos machos pela supremacia homem a homem”.
Apesar de seus mil talentos e da prolífica produção multiartística, o ouro de Paulo Leminski está guardado na poesia. As palavras disparadas pelo Polaco Loco Paca são projéteis que atingem certeiramete a alma, mas que ao invés de ferir, fazem nascer flores. A simplicidade dos versos, mesclada com uma sagacidade ímpar, produziu frases que viraram mantras na capital do Paraná. O segundo hino do estado, que na verdade é um poema disposto em cinco versinhos, chamado “Incenso fosse música”, quem escreveu foi ele:
“Isso de querer ser
exatamento aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além”
Leminski, o pinheiro instraplantável, tem o espírito marcado em cada rua da cidade, e eu sei, tenho a plena certeza, que por detrás de todo boteco, viela, muro pichado e lambrequim de casa polonesa, há por detrás o escandaloso bigode do eterno Polaco Mulato de Curitiba.
Jóias escondidas da literatura curitibana
Leminski e Trevisan podem ser os dois grandes representantes da literatura curitibana no cenário nacional, mas estão longe de ser as únicas joias da cidade. Entre elas, poucos foram tão singulares quanto Manoel Carlos Karam e Jamil Snege, autores que, cada um à sua maneira, revelaram outras camadas dessa Curitiba feita de ironia, melancolia e humor agridoce.
Manoel Carlos Karam (1947–2007) foi uma das vozes mais inventivas e radicais surgidas por aqui. Escritor, dramaturgo, fundador da Cia. de Palhaços Pluft! e presença constante nos bares e cafés do centro, Karam criou uma obra que mistura humor nonsense, lógica ilógica, diálogos secos e personagens deslocados, que sempre observam a cidade por um ângulo torto, deslocado e improvável.
Se Dalton expõe a crueldade do humano, Karam revela seu ridículo. Seus romances não obedecem a qualquer regra tradicional: são feitos de lacunas, cortes, microcenas e situações que lembram o teatro do absurdo, mas com um humor tão local que só poderia ter nascido sob este céu cinza.
Karam inventa personagens que vagam por uma Curitiba sem glamour, sem centro, sem destino, uma cidade onde o cotidiano parece sempre prestes a desabar num abismo cômico. Recentemente teve um livro inédito lançado pela editora Arte & Letra, Crônicas de Alhures do Sul, o que reacendeu o interesse por sua obra e aproximou uma nova geração de leitores de sua genialidade silenciosa.
Jamil Snege (1940–2003) é outro nome incontornável do período. Humorista, publicitário, cronista e crítico ferino dos bons-modos curitibanos, Jamil se especializou em desmontar a “Cidade Modelo” com ironia inteligente e um humor de precisão cirúrgica.
Seus livros zombam da formalidade da cidade, escancaram o ridículo da vida urbana, expõem o vazio elegante da classe média curitibana e fazem rir, mas sempre com uma pontada de melancolia.
Snege é o autor que transforma o cotidiano em piada, e a piada em filosofia. Retrata Curitiba como uma grande comédia involuntária, encenada por todos nós sem que sequer percebamos que estamos atuando. Recentemente esteve em cartaz a peça No Céu da Boca, com direção de Rodrigo Fôrnos, uma celebração à sua obra.
Na próxima reportagem desta série, iremos nos debruçar sobre a literatura contemporânea produzida em Curitiba, de seus movimentos culturais à reedição da obra de Dalton pela Todavia.
