Seja nos haikais do Samurai Malandro ou nos contos nocauteadores de Dalton Trevisan, existe uma Curitiba que escapa ao olhar cotidiano. Uma cidade não é apenas aquilo que vemos e escutamos: é também o imaginário coletivo de um povo. Acreditar que existe apenas uma Curitiba — e rejeitar todo o resto que vem junto — é mais do que uma forma de apagamento; é simplesmente impossível.
Curitiba, além da Praça Tiradentes, é todos os poemas de Helena Kolody. Curitiba, além do Prédio Histórico da UFPR, é cada conto inquieto de Manoel Carlos Karam. Curitiba, além de seus governantes, é — e sempre será — a cidade do vampiro. E também é a minha cidade, e talvez a sua, que está lendo este texto.
Esta série de reportagens busca justamente mergulhar nessa Curitiba que vive na literatura. Um percurso que vai do Simbolismo às vozes contemporâneas, rastreando como diferentes autores ajudaram a construir, desconstruir e reinventar a alma da cidade.
A República das Letras
Entre 1870 e 1920, Curitiba viveu um de seus períodos mais intensos e transformadores. Entre tipografias, cafés, redações e bibliotecas, a cidade começava a inventar a si mesma. É esse território simbólico, reconstruído por Antonio Marcos Myskiw em sua pesquisa CURITIBA, “REPÚBLICA DAS LETRAS” (1870/1920) que escolhemos para dar início a série Província, cárcere e lar.
A Curitiba do final do século XIX era uma cidade em rápida modernização. As ruas se alargavam, a administração pública se fortalecia, novas escolas surgiam e a vida urbana se adensava. Nesse cenário, a palavra impressa se tornou um instrumento de organização social e de construção de identidade. Jornais diários, muitas vezes de vida breve, multiplicavam-se pela capital; revistas literárias se sucediam umas às outras; livros começavam a circular com mais consistência. As tipografias, muito mais do que simples oficinas, tornaram-se o verdadeiro coração da vida intelectual curitibana. Nelas, jovens aprendiam o ofício ao mesmo tempo em que descobriam ideias, debatiam política, escreviam crônicas, traduziam textos e faziam amizades.

Da esquerda para a direita, os irmãos Paulo, Jango e Zico Gapski, fundadores da fábrica de máquinas tipográficas e posteriormente da tipografia. Foto: Arquivo pessoal/Raquel Gapski. Reprodução: Revista Haus
Diferentemente de outras capitais brasileiras, Curitiba não tinha uma grande universidade, e seu ambiente cultural não dependia de salões aristocráticos ou mecenas. O centro dessa vida letrada eram as casas de impressão, como a Tipografia Paranaense, a Livraria Econômica, a Tipografia d’A República, a Tipografia Mundial, a Novo Mundo e tantas outras que nasceram e desapareceram com a mesma velocidade que as discussões circulavam no papel.
Desse ambiente surgiram figuras decisivas. Rocha Pombo, professor, romancista e historiador, foi talvez o mais inquieto deles. Começou como tipógrafo, percorreu jornais, escreveu para o país inteiro e tentou organizar uma História do Brasil que priorizasse o cotidiano e a experiência popular. Seus críticos diziam que sua obra não tinha o rigor positivista que se esperava na época, enquanto sua cidade o reconhecia por um exímio talento narrativo.
Busto de Rocha Pombo em Morretes. Reprodução: Wikipedia
Romário Martins, por sua vez, dedicou a vida a escrever a história do Paraná e a transformar símbolos regionais — a araucária, o mate, o pinhão — em identidade cultural. Foi ele quem ajudou a construir o imaginário que depois seria consolidado pelo Paranismo.
Dario Vellozo representava a força mais excêntrica dessa República. Poeta simbolista, professor, editor, anticlerical e místico, concentrou ao seu redor uma juventude inteira de escritores. Sua biblioteca, suas revistas e seu Instituto Neo-Pitagórico criaram uma atmosfera singular, onde espiritualidade, filosofia e literatura conviviam com debates sobre educação e política.
Instituto Néo-Pitagórico, localizado na rua Professor Dario Vellozo 460. Reprodução: Wikipedia
Em direção parecida, mas com temperamento explosivo, Euclides Bandeira incendiou a cena literária com Heréticos (1901), onde atacava com virulência o ultramontanismo católico. No Diário da Tarde, polemizava diariamente, criando um espaço onde a juventude literária testava seus primeiros textos.
A literatura daquele período não se limitava a essas vozes. Ela se espraiava pelos clubes literários de Paranaguá, Lapa, Antonina, Morretes e São José dos Pinhais. A Biblioteca Pública do Paraná, ainda jovem, começava a formar um público leitor. Festas cívicas, conferências públicas e saraus garantiam que a vida intelectual não ficasse restrita à elite urbana. À luz de lampiões, em cafés boêmios ou em pequenos círculos de leitura, formavam-se leitores que não apenas consumiam livros, mas participavam da construção de uma cultura escrita.
Myskiw descreve esse movimento como um processo de circularidade cultural: a literatura não descia de cima para baixo, nem surgia apenas do povo; havia um constante fluxo entre ambos. Os intelectuais escreviam sobre a cidade, mas também se inspiravam nela: nos conflitos urbanos, nas tensões políticas, nos costumes locais, nos trabalhadores que enchiam as ruas, nos migrantes, nas feiras, nas festas, nos debates que animavam a vida pública. A cidade alimentava os escritores, e os escritores retribuíam imaginando novas cidades possíveis.
A Curitiba que emergiu dessa República das Letras era múltipla. Era moderna e provinciana, progressista e conservadora, espiritualista e anticlerical, regionalista e cosmopolita. Era uma cidade que se reinventava enquanto tentava se reconhecer. E embora muito desse movimento tenha sido absorvido, apagado ou reconfigurado ao longo do século XX, seu impacto deixou marcas profundas. Foi ali, nas tipografias cheias de ruído e nas páginas manuseadas com cuidado, que Curitiba descobriu que podia ser uma cidade de escritores.
A Curitiba das Intrigas, Novelas e Palcos de Papel
Os anos 1920 foram um momento de efervescência cultural na capital paranaense. E essa história, como revela Regina Elena Saboia Iorio, em seu estudo Intrigas & novelas : literatos e literatura em Curitiba na década de 1920, não foi escrita apenas por seus livros, mas por seus bastidores — por reuniões acaloradas, intrigas que circulavam nos cafés, reportagens que animavam os jornais e escritores que tentavam, a cada nova iniciativa, criar um “campo literário” onde antes havia apenas dispersão.
Nesse período, Curitiba respirava letras em espaços muito concretos. O Centro de Letras do Paraná, por exemplo, funcionava como um pequeno parlamento literário, onde se discutia poesia, se homenageavam autores, se anunciavam novidades e, principalmente, se disputavam posições de prestígio. A cada reunião quinzenal, os associados liam páginas inéditas e comentavam publicações recentes, mas o ambiente nem sempre era calmo. Foi ali que a educadora Anette Macedo quase fez o salão ruir ao apresentar sua tese sobre A Missão Social da Mulher Brasileira, defendendo a presença feminina na política, um gesto recebido com indignação por parte da plateia, que exigia do Centro não debates cívicos, mas a “pureza” das letras.
O Centro de Letras do Paraná (CLP) está sediado em prédio próprio desde a década de 1950, na Rua Fernando Moreira nº 370, em Curitiba Fontes: Acervo Curitiba Histórica / Centro de Letras do Paraná.
Era esse tipo de tensão que atravessava a Curitiba literária: ao mesmo tempo em que buscava modernizar sua expressão, permanecia presa a rituais de tradição. E nada simbolizava melhor esse paradoxo do que a Academia Paranaense de Letras, criada com pompa, mas rapidamente envolta em disputas internas. A ampliação do quadro de acadêmicos, que deveria fortalecer a instituição, acabou virando chacota pública. Charges de Alceu Chichorro mostravam os acadêmicos como burros solenes, enquanto cronistas ironizavam a entrada de figuras sem produção literária relevante, escolhidas mais por vínculos políticos do que por méritos artísticos. Clemente Ritz, por exemplo, satirizou a lógica das eleições: era preciso escolher alguém que não tivesse perdido tempo com “baboseiras de literatura”, mas que mantivesse alguma ligação remota com intelectuais — ainda que fosse apenas um sobrenome parecido.
Mas talvez nenhuma experiência defina tão bem essa década quanto a Novela Paranaense, um projeto editorial ousado que buscava consolidar um mercado regional de ficção. Era mais do que publicar livros: era criar um acontecimento cultural, com direito a exposições, lançamentos, semanas dedicadas ao livro, concertos musicais e declamação de poemas. Em 1928, por exemplo, foram exibidos originais de autores diversos, de Phâmphilo Assumpção, Viriato Ballão, José Moraes e Anita Philipowski a membros da Sociedade Teatral Renascença, tudo em festa pública inaugurada pelo próprio governador do estado, Afonso Camargo.
A imprensa cobria esses eventos com entusiasmo. Repórteres percorriam livrarias, entrevistavam leitores e ouviam bibliotecários para entender que literatura circulava na cidade. Livros de estudo eram os mais vendidos, mas havia, segundo os livreiros, boa aceitação para a literatura local. O público se habituava a ver a ficção paranaense como algo vivo e cotidiano.
Essas iniciativas não eram apenas celebração, mas também um grande laboratório. Criar uma novela no Paraná significava lidar com limitações técnicas, estéticas e materiais. Quando uma das edições trouxe ilustrações de Pedro Macedo, por exemplo, parte da crítica torceu o nariz — era um recurso gráfico novo demais para um ambiente ainda preso à comparação com grandes centros editoriais. Os diretores da coleção defenderam o pintor com veemência, argumentando que julgar pelo padrão do Rio ou de São Paulo era “rematada insensatez”, afinal, o gênero novela praticamente não existia ali, e a inovação era um mérito, não um defeito.
Enquanto isso, a produção literária se multiplicava nos jornais. Poemas modernistas conviviam com versos tradicionais, e nem sempre seguiam fielmente o espírito da vanguarda. Em muitos casos, a modernidade aparecia como tema, não como forma: carros velozes, aviões, trilhos, asfalto, bungalows — imagens que sugeriam uma Curitiba futurista, ainda que a cidade tivesse, na prática, apenas uma rua asfaltada.
Nas crônicas sobre futurismo, essa ambiguidade ficava evidente. Por um lado, havia rejeição à quebra das formas clássicas. Por outro, reconhecimento de que a rebeldia podia ampliar os horizontes da expressão. Um crítico local chegou a descrever o futurismo como “hipertrofia do individualismo”, mas admitia que sua maior herança talvez fosse a libertação das peias do formalismo — uma abertura necessária para que a literatura paranaense respirasse algo novo
Assim, a Curitiba dos anos 1920 não era apenas uma cidade que produzia literatura; era uma cidade que disputava literatura. Cada poema publicado, cada reunião de academia, cada resenha mal-humorada, cada festival e cada exposição carregava, além do conteúdo estético, uma camada de sociabilidade intensa: intrigas, alianças, vaidades, pequenas vinganças e tentativas de afirmação num ambiente onde todos queriam ser ouvidos.
Foi desse caldo, cheio de contradições, que emergiu uma Curitiba capaz de imaginar a si mesma como uma capital cultural. E, ainda que muitos desses textos tenham ficado restritos às páginas dos jornais, nunca reeditados, nunca canonizados, foi ali que a cidade preparou o terreno para tudo o que viria depois.
E talvez seja justamente nesse passado turbulento que esteja a chave para entender as muitas Curitibas que ainda hoje coexistem.
Na próxima reportagem iremos nos debruçar sobre a vida e obra de Dalton Trevisan, Paulo Leminski e outros importantes autores da cidade no século XX, com participações especiais de Guta Stresser e Fabiana Faversani.