ESPECIAL

drag queens em ascensão

Redes sociais expandem atuação de drags curitibanas durante a pandemia

Apoio da internet e ampliação do mercado garantiram popularização pelo Brasil

Em 2009 um programa de televisão ganha atenção do público LGBTQIAP+, o reality show RuPaul ‘s Drag Race, em que drag queens competem por uma coroa a partir de tarefas que envolvem maquiagem, costura, dança e muito lipsync.  O fenômeno mundial RuPaul ‘s gera um  impacto na comunidade Drag, que vem crescendo cada vez mais. Antes tão marginalizada, a cultura drag se populariza entre espectadores e influencia diretamente outros artistas a investirem nesta carreira.

O cenário drag no Brasil teve grande protagonista no ano de 2010. Quando o assunto ainda nem tinha tamanha notoriedade, o ex-bbb Dicesar, se montava em rede nacional na sua persona Drag, Dimmy Kieer. Em 2014 o sucesso de RuPaul ‘s Drag Race chega no Brasil, com turnê das participante do reality estadunidense, influenciando pessoas que hoje se tornaram referências da comunidade Queer, nomes como Pabllo Vittar, Gloria Groove, Lia Clark, Kika Boom e tantos outros. Também inclui uma geração de drags que conseguiram extrapolar a barreira imposta pelas apresentações em casas de show — e influenciar os caminhos da música, youtube, da moda e do cinema. 

Os prêmios internacionais recebidos e recordes quebrados por Pabllo Vittar, por exemplo, demonstram a importância da drag como fenômeno cultural. Em 2020, foi condecorada melhor artista musical no British LGBT Awards, melhor artista brasileiro nos MTV Europe Music Awards e a Drag Queen mais seguida do mundo. 

Esse panorama acabou ampliando o mercado de trabalho drag, que também sofreu alterações devido à crescente informatização da sociedade. Em Curitiba não foi diferente: artistas como Donna Bagos e Juana Profunda vivem exclusivamente da arte drag e consideram as redes sociais vitrines para seu trabalho. 

Profissionalização e mídia

Um dos nichos de atuação mais representativos das drags é a presença em eventos. É nessa área que atua Juana Profunda, personagem de Daniel Valenzuela, que fatura a maior parte da sua renda como artista. Desde que começou, há sete anos, Juana sempre preferiu trabalhar em projetos próprios. “Fui fazendo festas, rodas com drags se apresentando e outros eventos, assim fui abrindo os meus caminhos. Foi bem difícil, tive que ir atrás de tudo. A gente vai inventando e descobrindo o que é de cada um”, afirma. 

Há quatro anos, Juana produz o festival Combo Drag Week, que une artistas transformistas de Curitiba — e aconteceu neste ano de forma remota. Além disso, Juana também trabalha como apresentadora e hostess em espetáculos para os quais é convidada. 

Mesmo que esteja estabelecida no mercado, ela  ressalta que precisa sempre aprender, porque o cenário drag está em constante mudança. “Em cada montagem, a gente aprende alguma coisa nova. Por mais que você ache que já domina tudo, há sempre novidades”, enfatiza.

Em Curitiba, Linda Power é um dos nomes mais fortes quando se fala de apresentação em eventos. Ela é a drag do Patrick Oliveira, que atua há mais de 25 anos. Sua paixão são os chás de panela, mas ele também faz despedidas de solteira, casamentos e demais festas. 

No início, Linda não recebia nada para fazer eventos. Tudo começou como brincadeira, já que ela se montava para ir em festas de amigos. Porém, a atividade passou a se profissionalizar quando Patrick percebeu que poderia se sustentar com o cachê das apresentações. 

“Até então, nem a gente levava como uma profissão. As pessoas desconsideram o trabalho de quem faz arte, como o ator, por exemplo. Hoje em dia a visão é outra, mas naquela época não era. Quando eu consegui pagar a minha primeira conta de luz com um cachê, eu percebi que era um trabalho”, lembra. 

Linda e Juana defendem que qualquer pessoa pode fazer drag e ganhar dinheiro com a arte. Não é fácil, elas ressaltam, como não é para qualquer profissão. “Tem que trabalhar muito e estudar também, mas sim, dá para ganhar dinheiro como drag”, reforça Patrick. 

O núcleo musical da arte drag também está em alta. Figuras como Kika Boom, com cerca de 63 mil ouvintes mensais no Spotify, têm se multiplicado no cenário brasileiro. No Paraná, Donna Bagos é um exemplo de drag “cantriz”, como ela se denomina: uma mistura entre cantora e atriz. A personagem é interpretada por Andrei Rufino de Lira, designer de moda e estudante de Produção Cênica. Atualmente, ele já colaborou com outros artistas, lançou a primeira música autoral (o single Eu e o Breu (veja o vídeo abaixo) e trabalha no primeiro álbum. 

Andrei se monta desde 2015, mas passou a enxergar a carreira como profissão há cerca de três anos. “A partir do momento em que eu entendi a minha expressão como mercadológica, eu comecei a acreditar mais no que eu estava fazendo”, explica.

Existem artistas da área que são exclusivamente produtores de conteúdo digital, os chamados influencers. Há também drags que produzem vídeos sobre os mais variados temas para o YouTube, como Rita von Hunty, conhecida por suas dissertações políticas, e Bianca Dellafancy, que compartilha sua experiência com maquiagem e apresenta o podcast Santíssima Trindade das Perucas, com mais duas Drags, a Duda Dello Russo e LaMona Divine. 

À medida que número de fãs cresce, a área de atuação digital das queens também se expande. Pabllo, por exemplo, passou de 36 mil seguidores no Instagram em 2016 para 4,3 milhões no ano seguinte e, desde então, ganha ao menos 1 milhão de novos seguidores anualmente. O infográfico abaixo ilustra o crescimento da popularidade de algumas drag queens famosas. 

A transformação da cultura drag

A popularidade da arte drag nas redes sociais inspira uma nova geração a expandir os horizontes da carreira. Onika Ross, interpretada por Lucas Ross Assunção, nasceu pela influência de  RuPaul ‘s Drag Race. Diferente da Juana e da Linda, Lucas não se imagina trabalhando com sua drag. “Acho que posso usar essa personagem para me levar para esse mundo da maquiagem. Um dos meus sonhos é ter um ateliê de maquiagem, que levaria o nome ‘Onika Ross'”, relata. 

Onika Ross tem 1.53 seguidores no Instagram e pretende continuar mostrando seu trabalho online. (Foto: Arquivo Pessoal)

A Dandara, interpretada por Bruno Henrique Barbosa, de 23 anos, também não pretende seguir carreira como drag queen. Ele a percebe como uma forma de enxergar a si mesmo em outro corpo. “Eu coloquei na Dandara tudo que eu queria ser. Por causa dela, minha autoestima melhorou muito”, afirma. Para Bruno, sua personagem é uma porta de abertura para alcançar a carreira de maquiador. 

Na reportagem especial intitulada Três Gerações de Drag — produzida pelas estudantes de jornalismo Bruna Eduarda Rudnick, Isabela Stanga e Isadhora Santa Clara — Donna Bagos, Linda Power e Dandara relatam suas experiências como drags, sobretudo durante a pandemia de covid-19.

A presença de drags não é mais limitada a boates e casas de show. Neste sentido,  a doutoranda em Antropologia na Universidade Federal de Santa Catarina Winny dos Santos desenvolveu uma pesquisa sobre duas diferentes gerações de artistas do ramo em Campo Grande. 

A geração Bistrô, do início dos anos 2000, frequentava e se apresentava na Boate Bistrô, casa noturna referência em Campo Grande. As drags dessa geração são clássicas, com estética exagerada e teatral. Elas usam e abusam do tradicional lipsync — a dublagem de músicas e diálogos.

A geração atual tem uma estética menos extravagante, influenciada pelas celebridades drags de maior sucesso. “Nessa mudança de influência tem uma ressignificação do que é realmente fazer drag”, constata a antropóloga. 

O embate geracional segrega uma comunidade já discriminada. “Eu acho que o cenário drag hoje é, principalmente em Curitiba, não muito unido. O que deveria ser ao contrário, com certeza, porque a gente já faz parte da minoria”, conta Onika. 

Todas as entrevistadas para essa reportagem relatam a falta de união no segmento. E não é exclusividade curitibana. “As artistas mais novas falam que as artistas da geração bistrô se apoiavam mais. Elas reclamam que é muita competição. Uma questão intergeracional”, relata Winny sobre a cena drag de Campo Grande. 

Isso não significa que seja cada uma por si: há grupos de amigas e famílias drags —  quando uma artista mais experiente “adota” uma artista principiante e oferece orientação e apoio. Os coletivos são outra forma de união.

Donna Bagos é integrante do coletivo curitibano SYLK (Support Your Local Kweens), fundado por um grupo de amigos que sentia falta de companheirismo na comunidade. No primeiro episódio do podcast PodQueen, produzido pelos estudantes de jornalismo Bruna Eduarda Rudnick, Felipe Reis e Laís Adriana, Donna explica a importância do coletivo, assim como do movimento transformista.

O SYLK é voltado para a arte e a cultura LGBTQIAP +. Além de promover eventos e divulgar o trabalho de artistas independentes, o grupo defende a presença de drags à luz do dia. A geração bistrô não tinha essa preocupação de ocupar outros espaços, como esclarece Winny. “Elas queriam ocupar a boate que está bombando no momento, o processo de visibilidade para o trabalho delas era estar ali naquela boate.” Desde os anos 2000, a situação mudou: “A geração atual têm que sair das boates porque estão se fechando, não comportam todas e pagam pouco”.

No segundo episódio do podcast PodQueen, Winny explica o conflito geracional da arte drag e como as artistas mais novas expandiram seus horizontes através das redes sociais.

Os desafios enfrentados pelos artistas, tanto da geração Bistrô quanto da atual, são baseados no preconceito. “O que restringe [a arte drag] é a falta de espaço e a baixa remuneração. A minha pesquisa conclui que esses artistas não têm espaço para se apresentar”, enfatiza a antropóloga.

Interseccionalidade na comunidade drag

Já que a drag é uma forma de arte, qualquer pessoa pode interpretar uma personagem. Contudo, algumas enfrentam mais dificuldades do que outras na área. A maioria pertence à comunidade LGBTQIA +, como é o caso de todos os artistas entrevistados para esta reportagem.

A LGBTfobia é o preconceito contra quem não se identifica dentro do padrão da sociedade cisgênero — quem se identifica com seu gênero anatômico —  e heterossexual — quem sente atração somente pelo sexo oposto —, como explica a mestranda de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) Lígia Ribeiro Ferreira. O Brasil lidera o ranking de assassinatos de pessoas trans e travestis: quatro a cada dez mortes no mundo acontecem no país, segundo levantamento do Transgender Europe (TGEU). 

Além disso, um estudo realizado entre 2015 e 2017 pela Fundação Oswaldo Cruz em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e com o Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), concluiu que 50% das vítimas eram negras, 46,6% transexuais ou travestis, 32,6% eram lésbicas e 25%, gays. Mas a violência não é apenas física, nem restrita ao espaço público.

"A história é feita pelas sujeitas que vivem aquilo, que sentem na carne o que falta. E sozinha, é complexo, não existe luta de uma só”
Dayana Brunetto
Coordenadora da Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade da UFPR

“Muitas vezes a escola atua como um aparato normalizador. Existe um vídeo da Rita Von Hunty para o Primeira Pessoa, em que ela fala: ‘Quando você cresce uma criança queer, roubam tudo de você. Não pode vestir isso, gesticular desse jeito, esse brinquedo não é para você”, afirma a pesquisadora.

Na pesquisa, Lígia defende que a arte drag surge como uma forma de resgatar a expressividade censurada na época da infância. Ao mesmo tempo, a pesquisadora ressalta que outras formas de violência e preconceitos da sociedade se integram à LGBTfobia, como o racismo e o sexismo.

Tanto Donna Bagos quanto Dandara contam que ser uma drag preta é desafiador, sobretudo em uma cidade conhecida por ser conservadora. “O corpo preto já é estigmatizado e fetichizado na sociedade. Enquanto drag, também acontece isso”, afirma Donna. “A feminilidade no homem gay não é muito bem vista. Ser gay, negro, feminina em Curitiba, então… Eu já tenho mais uns pontinhos”, completa Dandara. No último episódio do podcast PodQueen, as consequências do preconceito são evidenciadas pela psicóloga Jéssica Caikoski, da Universidade do Contestado.

Mesmo com a popularização da drag nos últimos anos, a própria norte-americana RuPaul, drag queen famosa desde os anos 1990, anfitriã do programa RuPaul ‘s Drag Race, afirma que a arte drag nunca será consumida pelo público geral. 

“Apesar do reavivamento cultural da figura da drag, isso não significa que essas pessoas saíram das margens da sociedade e que estão livres de toda a violência. É importante discutirmos as possibilidades de resistência que já estamos construindo, e fazer mudanças efetivamente”, ressalta Lígia. 

Sobre isso, a antropóloga Winny dos Santos percebe uma relação desigual entre o governo e as artistas. “Eu não vejo políticas públicas, mas vejo parcerias entre as artistas e o governo do estado”, relata a cientista social. O Andrei, cuja drag é a Donna Bagos, reconhece a necessidade do apoio governamental aos artistas locais.

Foi com o incentivo da Fundação Cultural de Curitiba que ele encontrou oportunidades para financiar seus projetos —  a entidade oferece verba a atores culturais que preenchem os requisitos dispostos nos editais de incentivo à cultura. De acordo, mais de R$ 1,1 milhão foram destinados aos artistas durante a pandemia, a partir de editais emergenciais. Entretanto, Donna ressalta que as drags geralmente não entram na parcela contemplada pelos recursos públicos. 

“A capacitação para participar de editais de incentivo, de fomento à cultura, é algo muito difícil. Não vejo muitas drags da cidade se inscrevendo e isso me preocupa, porque eu entendo hoje que esse é o modo de estar em locais institucionais”, explica.

Por isso, é preciso que a comunidade drag se una, reconheça as suas demandas e, junta, exija políticas públicas voltadas à arte, uma vez que faz parte do patrimônio cultural da sociedade como afirma a coordenadora da Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade da UFPR, Dayana Brunetto: “A história é feita pelas sujeitas que vivem aquilo, que sentem na carne o que falta. E sozinha, é complexo, não existe luta de uma só”. 

Este material é resultado de uma produção integrada, durante o primeiro semestre letivo de 2021, entre quatro disciplinas do curso de Jornalismo da UFPR: Laboratório de Jornalismo II (prof. Hendryo André), Laboratório de Radiornalismo I (prof. Rosângela Stringari), Laboratório de Telejornalismo I (prof. Elson Faxina) e Laboratório Multimídia de Jornalismo (prof. José Carlos Fernandes).

PRODUÇÃO

BRUNA EDUARDA RUDNICK
CAMILA DE CARVALHO
ISABELA STANGA
ISADHORA SANTA CLARA

EDIÇÃO FINAL

ROBSON DELGADO

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