
No palco do Teatro Novelas Curitibanas, Terra sem Acalanto, da companhia Sala de Giz, ecoa as tragédias das cidades mineiras de Mariana e Brumadinho. A encenação aconteceu no último sábado, 29, parte da mostra Fringe no Festival de Teatro de Curitiba, e transportou o público para um interior de Minas Gerais devastado, onde um coveiro encontra sobreviventes soterrados pela lama. Com direção de Tatiana Henrique, a obra se inspira nos maiores crimes ambientais do Brasil para fazer um paralelo entre arte, justiça social e meio ambiente.
O lucro de poucos vale mais para o nosso sistema político-econômico do que a vida de várias pessoas
Advogada e ativista climática Carolina Efing
Para o ator Bruno Quiossa, que também tem formação em jornalismo, a ficção pode traduzir certas realidades de maneira mais sensível do que a notícia. “A minha pesquisa era relacionada a como um fato noticiado pode virar cena […] Fui pegando esses recortes do jornalismo para mostrar como a ficção, às vezes, dá conta de explicar para as pessoas o que a realidade não consegue”, afirma.
O espetáculo parte de uma pesquisa realizada durante o mestrado do dramaturgo e ator Felipe Moratori, em parceria com Quiossa e Tatiana Henrique. O grupo levantou as narrativas da imprensa sobre o desastre e, depois, coletou os relatos da população local. “Foi um contraste entender quais narrativas estavam sendo veiculadas na mídia nacional e os relatos que aconteceram lá […] Tivemos que lidar e entender que as dimensões dessa tragédia foram muito amplas”, conta.
Em cena, a prioridade foi conciliar o respeito à memória das vítimas com a “poesia da destruição” que conduz a peça. “A gente tenta trazer uma poética que se distancia um pouco das narrativas verídicas, inclusive como forma de poupar as pessoas que vivenciaram essa tragédia”, diz Moratori. Para Quiossa, algumas perguntas foram essenciais para guiar a construção de Terra sem Acalanto. “Como a gente respeita esse luto, esses desejos das pessoas que estão lá? Como a ficção pode poetizar isso?”.
A curitibana Viviane Moraes, lembra em detalhes da comoção com a cobertura jornalística sobre Brumadinho. “Eu selecionei várias peças que me interessavam e resisti a vir nessa [Terra sem Acalanto] porque sabia que ia mexer muito comigo”, conta. “Foi uma surpresa, porque eu estava esperando uma peça um pouco mais racional, e fui muito visceral”.
A visualidade da obra é central para a narrativa: a bacia de cerâmica, a terra e a lama, a carne. As fechaduras de portas que nunca mais serão abertas. Os sapatos perdidos. A dramaturgia ainda mistura elementos da cultura e oralidade de Minas Gerais e da língua e ancestralidade do povo indígena Puri, originário do Sudeste brasileiro. “Ela não fazia você pensar o racional, ela fazia você viver um pouco do que foi”, relata Viviane.
“Não vale mais, Vale? Não vale nada”
As cidades mineiras de Mariana e Brumadinho foram palco de dois dos maiores crimes ambientais do Brasil, ambos envolvendo a mineradora Vale. Em 2015, a barragem de Fundão, operada pela Samarco (administrada pela Vale e pela BHP Brasil, num modelo de negócio chamado joint venture), rompeu em Mariana, liberando 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos. O desastre matou 19 pessoas e poluiu mais de 600 km de água doce até a foz no Espírito Santo.
Três anos depois, em 2019, a barragem da Mina do Feijão, em Brumadinho, também sob responsabilidade da Vale, se rompeu, liberando 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos. O incidente matou 270 pessoas, incluindo duas mulheres grávidas, e devastou o meio ambiente local. “O Judiciário não pune ninguém e isso já é um grande incentivo para que aconteçam mais desastres”, aponta a advogada e ativista climática Carolina Efing. “É muito mais barato você deixar os desastres acontecerem do que investir em estruturas para prevenir eles”.
Em resposta ao desastre de Mariana, Vale e BHP firmaram um acordo de US$ 23 bilhões para compensação, incluindo R$ 100 bilhões para reparações socioambientais e R$ 32 bilhões para reassentamentos. No entanto, nenhum executivo foi responsabilizado criminalmente, e os processos enfrentam risco de prescrição.
A ambientalista relembra que já existiam estudos alertando para o risco de rompimento das barragens. “Eles fizeram os cálculos e viram que era mais barato deixar a barragem romper e matar um monte de gente do que corrigir o problema”, afirma. “O lucro de poucos vale mais para o nosso sistema político-econômico do que a vida de várias pessoas. Infelizmente, o Judiciário confirmou exatamente isso”.
Ficha técnica
Repórteres: Rodrigo Matana e Vitória Smarci
Revisor: Luisa de Cássia
Edição final: Alana Morzelli