Um vereador preto incomoda muita gente

O advogado Renato Freitas, 38 anos, desvia de bombas terrestres numa cidade que quer ver diferente – para que sua filha Aurora possa crescer em paz. Enquanto esse dia não vem, vive a perigo – da cassação ao linchamento moral de quem não entende a luta que o move

Renato Freitas
Renato Freitas abraça o rótulo de “polêmico”: contra ter de pedir licença para protestar. Foto: Malik Fotografia

Quando conversei com Renato Freitas pela primeira vez, ele já estava na boca do povo. Caía um aguaceiro e nos abrigamos dentro de um Virtus branco. Conversamos ali mesmo, perto da Rua Trajano Reis. Naquela manhã, tinha acontecido o primeiro relato das testemunhas no processo da Câmara Municipal de Curitiba, que quer cassá-lo do cargo de vereador. Freitas é acusado de quebra de decoro parlamentar por uma manifestação na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em 5 de fevereiro de 2022, no Centro Histórico de Curitiba.

Cheguei com medo de irritá-lo. Hesitei chamá-lo de polêmico, e ele riu. “Irmão, eu sou um cara polêmico”. A conversa deslanchou, ele ofereceu um Fini Tubes de morango e até me deu uma carona para o trabalho.

A ideia de escrever um perfil do vereador surgiu há um tempo, quando tentei trazer o Renato para uma entrevista com uma turma de Jornalismo da UFPR. Os estudantes adoraram a ideia. Freitas é meio que um ídolo da galera jovem, mas a proposta melou por falta de agenda. Agora, no clima do bate-papo sobre dez anos da Lei de Cotas Raciais, cogitei uma segunda tentativa. A agenda do Renato estava dez vezes mais cheia do que na primeira vez, mas só precisei chorar um pouquinho com a assessora para encontrar uma brecha.

Fato é que eu, assim como boa parte dos curitibanos, só conheci mais da vida do Renato depois da manifestação pelas vidas pretas de 5 de fevereiro, o tal dia da tal “invasão”. Antes disso, sabia que ele era figurinha marcada, mas conhecia bulhufas do sujeito. Dentro do carro, descobri que o cara grandão e intimidador que pintou nos jornais tem voz calma e maneirismos.

Fã de basquete, rap, farofa de banana e estrategista no xadrez, Renato cresceu na periferia, antes de finalmente residir na capital. Passou por Almirante Tamandaré, Piraquara e Pinhais. Criado pela mãe, se fez na quebrada e perdeu um irmão e sobrinha muito cedo, assassinados. Nesse momento, abandonou o curso de Ciências Sociais e passou um bom tempo bebum antes de converter a morte do João, o irmão, em luta e partir em busca da tal fórmula mágica da paz dos Racionais.

A morte, o tráfico, as drogas e a criminalidade tornaram Renato um ativista valente. “Não tenho medo de nada, irmão. Sou teimoso mesmo e por muito tempo não tive medo de morrer. Mas hoje tenho. Sou teimoso porque hoje tenho medo”. Renato é pai de Aurora, e parte de sua luta é para garantir que a filha não cresça em uma Curitiba racista e conservadora.

Na minha pesquisa sobre quem é Renato em Curitiba, conversei com muita gente. Para um senhorzinho da Tiradentes, Renato é o “próprio anticristo”. Para um motorista de Uber, é “imaturo, mas tem potencial”. Para uma zeladora de 48 anos, preta, a Lurdinha, “ele é o meu vereador”.

“A verdade está comigo”, Renato Freitas acredita que não vai ter seu mandato cassado. Arte: Jorge André, Artista periférico

Houvesse como traçar o perfil dos 5.097 eleitores que escolheram Freitas em 2020, aposto que se repetiriam milhares de Lurdinhas. Como ele próprio acredita: “Esse é o meu eleitorado: as tiazinhas e os tiozinhos trabalhadores, que vivem de aluguel na periferia”. Para ele, os que defendem o povo, mas estão nas universidades e no conforto dos apartamentos, escolhem votar em outros candidatos, mais idealistas. Renato é explícito demais para eles.

O idealismo exacerbado do academiquês, aliás, o fez deixar as universidades. Não atualiza seu Lattes desde 2017. Renato se formou em Direito na UFPR e tem mestrado em Direito Penal, Criminologia e Sociologia da Violência. Fez iniciação científica, e a universidade foi determinante em sua trajetória e suas lutas. Também foi palco de embates e desilusão. “O campo da pesquisa acadêmica é como uma roda de moleques que querem provar que um tem o pau maior que o outro”.

O tal indivíduo polêmico é tão polêmico que racha até o partido. Os integrantes do PT refletem isso: alguns amam o cara, outros (brancos) acham-no demasiado obtuso. Tanto que após a manifestação fatídica na Igreja do Rosário dos Pretos, o próprio partido publicou nota em que condena os atos de Renato e o deixa a deus-dará. Ele retruca: isso foi racismo. Até Lula, em sua visita a Curitiba para a filiação de Requião, chamou Renato de garoto e tirou o dele da reta. “A decisão de condenar meu ato partiu de quem? Dos cabeças do partido, brancos, que julgam do conforto de seus lares os atos dos pretos. Para nos manifestarmos, ainda temos que pedir permissão?”, questiona.

E essa é a imagem que fica. Lembro de ao menos quatro vezes em que vi alguma matéria sobre ele na mídia local: quando secou o cabelo durante uma sessão da Câmara; quando chamou pastores trambiqueiros de “pastores trambiqueiros” e quase foi cassado por – pela primeira vez, mas não a última – suposta quebra de decoro; quando foi detido na Praça 29 de Março por desobediência; e quando protestou no Carrefour e foi chamado de vândalo. Nas palavras dele mesmo, “polêmico”.

Mas não só: Renato foi líder da oposição na Câmara e integrante da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da População em Situação de Rua. Enviou projetos de lei como o “Renda Solidária”, que previa a expansão do programa, para beneficiar os curitibanos com renda mensal de até meio salário mínimo por mês. Condenou o higienismo no Centro Histórico e a solidariedade de fachada das políticas públicas. Enviou 12 sugestões ao executivo e 24 requerimentos. Tudo em um ano e meio de trabalho.

Parece descabido que a atual maior figura do movimento negro em Curitiba, da mesma categoria de Iyagunã Dalzira, seja reduzido a um cara barraqueiro. Renato Freitas – advogado, vereador, ativista, preto, do basquete e da farofa de banana – incomoda, e incomoda para o bem.

Perfil produzido por Gabriel Tassi para a Revista Mercúrio, escrita e editada pelos alunos da disciplina de Laboratório de Jornalismo III – Impresso e Revista, sob orientação do professor José Carlos Fernandes.

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