ESPECIAL
O direito à propriedade no Brasil é constitucional. A carta magna determina que toda a propriedade deve ter uma função social. Em Campo Magro uma área, que hoje abriga milhares de pessoas, estava abandonada há uma década. Em 2020, já no contexto epidêmico, o espaço foi ocupado com a organização do Movimento Popular por Moradia (MPM) e deu esperança a pessoas que não tinham uma terra ou dinheiro para alugar uma moradia. A comunidade Nova Esperança se destaca como uma ocupação ecológica de ações sustentáveis na convivência com o meio ambiente, mas agora também faz parte das ocupações no Paraná em que o risco de despejo ameaça a permanência de mais de 1 mil famílias.
“Meu pai trabalhou a vida toda aqui, ele trazia os funcionários da Fazenda Solidariedade. Quando estou aqui parece que vejo a Kombi dele entrando, faz 16 anos que ele faleceu”, recorda Márcia Regina Guimarães, moradora da Ocupação Nova Esperança.
Na década de 1980, o pai de Márcia trabalhava como motorista na antiga Fazenda Solidariedade. Em 1984, o extenso terreno localizado no centro do município de Campo Magro, na porção noroeste da Região Metropolitana de Curitiba, foi doado à Fundação de Ação Social (FAS), órgão gestor da política de assistência social do município de Curitiba.
Entre 1984 e 2009, a Fazenda Solidariedade permaneceu sob direção da FAS e foi utilizada como espaço de recuperação para dependentes químicos e moradores em situação de rua. A propriedade contava com diversas atividades que tinham por objetivo institucional a ressocialização das pessoas atendidas, dentre elas: lavoura, marcenaria e panificação.
Em 2009, a instituição teve seus serviços encerrados. Dentre as principais razões para o fechamento, a prefeitura de Curitiba alegou que o terreno era muito distante do município e necessitava de muitos custos para manutenção. Desde então, a área de 1.020.66,69m², que corresponde a cerca de 142 campos de futebol, permaneceu inutilizada por 11 anos, até a chegada das primeiras famílias, em maio de 2020.
“Ficamos sabendo da ocupação pelo chamado ‘telefone sem fio’, um passando a informação para o outro”, conta Márcia, uma das primeiras pessoas a chegar à Nova Esperança. Assim que recebeu a notícia sobre a ocupação, ela chamou filhos, nora, genro, netos e foram até o terreno que ela já conhecia muito bem, da época em que seu pai ainda trabalhava ali.
As primeiras famílias chegaram ao território em 25 de maio de 2020, sob organização do Movimento Popular por Moradia (MPM). Inicialmente, as pessoas foram abrigadas numa espécie de alojamento coletivo, localizado dentro dos barracões que hoje acomodam as salas de aula, a biblioteca e a padaria. Cerca de uma semana depois, a organização da ocupação começou a distribuir os lotes para todas as famílias cadastradas.
“No início foi tudo muito difícil, não tinha estrutura nenhuma, a gente teve que construir do zero”, relata Márcia. Ela e a família conseguiram um terreno de 200 metros quadrados, padrão dos lotes distribuídos. Na área construíram duas casas, um brechó e uma oficina de bicicletas, de onde tiram o sustento da família.
Quem vê a comunidade Nova Esperança atualmente não imagina as condições em que o terreno se encontrava nos primeiros dias de ocupação. As construções já existentes no local estavam abandonadas e degradadas, a vegetação estava alta e sem poda, escancarando o descaso do poder público com a área. No início de 2020, o local apresentava grande risco à saúde e segurança pública da região.
Um ano e seis meses após a ocupação, os moradores restauraram as infraestruturas existentes no local e as transformaram em salas de aula, centro cultural, padaria e cozinha comunitária, biblioteca, sala de informática e espaços comerciais. Além disso, cada lote distribuído também conta com hortas orgânicas e fossas ecológicas.
“Eu gosto muito daqui. Se eu pudesse não sair daqui, eu não saía. Mas a gente não sabe o futuro do terreno, porque não está certo aqui ainda. Corremos o risco de sermos despejados”, declara Márcia.
A Nova Esperança se estabeleceu em um espaço urbano, mas também de preservação ambiental. As casas são rodeadas pela Floresta Ombrófila Mista, um ecossistema presente no bioma da Mata Atlântica e que se estende em grande parte da Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Andando pelos bairros de Campo Magro, vemos grandes áreas concentradas de casas e asfaltos e, só ao horizonte, vemos grandes matas e áreas de pastagem e plantação. Na Nova Esperança as casas não se isolam da mata e dividem o espaço (ou o terreno) com árvores e vegetação.
Sabendo que a região seguia leis de preservação ambiental, as lideranças se prontificaram de não destruir vegetações nativas e importantes para o ecossistema do município. Para algumas dessas lideranças, ocupar em terreno ambiental era uma experiência nova. Coube ao MPM e a esses líderes, a missão de informar e regrar os novos moradores sobre uma forma sustentável de se ocupar.
A ocupação mostrou que é possível abrigar mais de mil famílias em convivência com o meio ambiente. “Nesse estudo nós aprendemos que as árvores produzem uma quantidade de água por dia. As que não fazem parte da Mata Atlântica são pragas aqui dentro, como o Eucalipto e o Pinus. Ao invés de produzirem água, elas consomem e matam as outras espécies. Então, essas nós não vemos problema nenhum em eliminá-las”, conta Galeno Cristóvão Machado, um dos líderes da Nova Esperança.
Mesmo as árvores consideradas pragas, não são simplesmente removidas. Se uma árvore representa risco para alguma casa, família, morador ou para a comunidade, uma análise prévia é feita. Líderes e o chefe do setor em que há o risco da queda da árvore se reúnem e discutem as possibilidades. “Geralmente optamos por tirar o morador e colocar em outro local. Mas se ver que a árvore realmente é um perigo, tomamos as precauções”, conta um dos líderes da comunidade, Valdecir Ferreira da Silva. Essa é a única condição para retirada de uma árvore na área.
Um estudo realizado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com o Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Urbanas (Ceppur) e outros grupos parceiros, foi essencial para a permanência da comunidade ali. O levantamento permitiu a identificação das características do local, delimitou a Área de Preservação Permanente (APP) — sob Lei nº12.651/12 do Código Florestal — e orientou os ocupantes sobre as áreas de risco.
Um dos riscos levantados pelo estudo é a presença de dolina em algumas áreas construídas. Esse é um fenômeno geológico comum em determinados pontos subterrâneos onde o lençol freático sofre alterações de rebaixamento, de forma natural ou induzida. Logo, o terreno pode ceder e formar uma cratera, engolindo construções e oferecendo risco às famílias. A presença de dolina na comunidade é um dos argumentos utilizados pela Prefeitura Municipal de Campo Magro para o despejo das famílias.
Com o estudo realizado pela UFPR, todas as áreas de risco foram mapeadas. Sabendo disso, as lideranças se prontificaram a realocar as famílias que estavam construindo em áreas de dolina para outros terrenos. O local marcado com potencial risco ficou reservado apenas para pequenos projetos, como hortas e atividades que não estimulem a formação da cratera. “Então eles [que buscam a reintegração do terreno] pegam bastante nisso. Só que eles não vieram aí analisar, não vieram ver se realmente tem alguém morando em cima de dolina”, afirma Valdecir, também conhecido como Val.
Um dos cuidados mais importantes é manter a preservação do lençol freático em Campo Magro. A cidade fica em cima do Aquífero Karst, uma reserva de água subterrânea presente em vários municípios do Paraná, entre eles, Campo Largo, Almirante Tamandaré, Itaperuçu, Rio Branco do Sul e Colombo. Locais sem saneamento básico, com esgoto a céu aberto, são grandes causadores de poluição nas águas subterrâneas. Felizmente, graças à organização na ocupação, isso não acontece.
Como uma ocupação ecológica, os meios de tratamento do esgoto na Nova Esperança também caminham junto com o meio ambiente. O sistema escolhido é uma fossa ecológica. Como regra na ocupação, todas as casas precisam adotar esse tipo de fossa. O sistema de tratamento é feito com: pneus, que criam uma câmara de fermentação; caliças, que ajudam a filtrar a água negra; pedra brita, onde as bananeiras se enraízam; areia, que ajuda na filtragem; terra, onde plantas colocadas e dutos de inspeção, que ajudam a aliviar a pressão de gases formados dentro da fossa.
“Eu já participei de muitas ocupações, mas eu considero a maioria como invasão, porque invasão é quando não há um corpo de liderança ali coordenando, quando cada um diz ‘esse aqui é meu lote’ e faz uma medida maior que o normal. Agora ocupação não, ocupação já tem pessoas por trás orientando para não ter injustiça, para não ter covardia, e para que o terreno não acabe pendendo para o lado de comércio de terra”, conta Val, líder da Nova Esperança, militante do Movimento Popular por Moradia (MPM).
O Movimento Popular por Moradia está presente na ocupação desde o primeiro dia, foi ele o responsável pela organização comunitária que se estabeleceu no local. São as lideranças do movimento as responsáveis pelas famílias ocupantes e pela intermediação entre os moradores e o poder público.
Após quatro meses de ocupação, a comunidade Nova Esperança se organizou em 11 setores. Cada setor tem entre 80 a 120 famílias, o que representa cerca de 300 a 600 pessoas. Para dar conta de coordenar tantos moradores e restaurar o terreno abandonado por anos, o MPM se organiza em três coordenadores gerais, seis lideranças e 14 chefes de setor.
Cada chefe de setor fica responsável pela administração de 80 famílias, podendo ser duas pessoas caso o número de famílias seja ultrapassado. Os chefes são responsáveis pela fiscalização, gestão e organização das reuniões semanais, onde são expostas as necessidades dos moradores e apresentados os projetos que estão sendo desenvolvidos na comunidade.
Então, a dinâmica de gestão da ocupação se desenvolve da seguinte maneira: o setor “A” possui um chefe. Qualquer problema que aconteça naquele território e o responsável não consiga resolver deverá ser encaminhado para as lideranças da ocupação. Caso as lideranças também não consigam solucionar, o assunto é levado para a direção do MPM.
“A gente vê que uma comunidade organizada se desenvolve mais rápido, depois de criados os 11 setores, nós começamos a trabalhar nas estruturas que estão aqui e direcioná-las para salas de aula, biblioteca, padaria e cozinha. Em um mês nós criamos todos esses espaços”, ressalta Valdeci.
Além de contar com chefes de setores e lideranças, a Nova Esperança também possui uma série de regras e diretrizes, responsáveis por auxiliar na convivência e manter o processo organizativo.
Confira as regras gerais que devem ser cumpridas por todos os moradores:
Ainda sobre a auto-organização dos moradores, a professora e pesquisadora em direitos territoriais, planejamento e políticas urbanas, Daniele Regina Pontes, destaca que a atuação estatal é omissa no território. “Do ponto de vista comunitário e dessa ausência do Estado, os moradores acabam cumprindo papéis que são estatais, ou seja, possuem uma disposição que outras populações de média e alta renda não têm”, diz.
A pesquisadora afirma também que esse é um ponto importante para reconhecer o que significa produção e construção de cidade para essas pessoas, principalmente quando o próprio poder público se omite.
“Ocupação é sempre um fenômeno na questão de juntar pessoas, se você não fechar as porteiras, em questão de um mês já chega de 3 a 4 mil pessoas”, destaca Val. O líder e militante complementa: “Então, se surgir uma nova ocupação, as pessoas vão desesperadas atrás, porque o sonho de quem não tem é ter a sua casinha, seu cantinho para chamar de lar”.
No Brasil, o número de pessoas que não possuem um lugar para chamar de lar vem aumentando com o passar dos anos, especialmente com o agravamento da crise econômica na chegada da covid-19. De acordo com o estudo Déficit habitacional do Brasil – 2016-2019, produzido pela Fundação João Pinheiro, as análises do estado do Paraná já indicavam, antes do início da pandemia, uma grande demanda por moradia.
Os estudos do ano de 2016 demonstravam que o déficit habitacional paranaense estava estimado em 240.090 moradias, sendo 60% vinculadas ao aumento excessivo do aluguel. Em 2019, esse número subiu para 247.153, sendo 61,4% decorrentes da impossibilidade de pagar aluguel.
Com a chegada da pandemia, o déficit habitacional em Curitiba e Região Metropolitana foi ampliado ainda mais, especialmente para as famílias de baixa renda que já sofriam com o ônus dos aluguéis. O estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas, no primeiro trimestre da pandemia, mostra que a população mais pobre foi a que mais sofreu com a pandemia, visto que a sua renda média caiu de R$1.118 para R$ 893 por mês.
Outro levantamento realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas constatou que somente nos primeiros meses de 2021 a cidade de Curitiba apresentou um aumento de 5,2% no valor do aluguel, a maior alta entre todas as capitais analisadas. Com a elevação do preço dos aluguéis e a queda na renda das populações mais pobres, em menos de um ano muitas pessoas se veem sem lugar para morar.
As famílias que chegaram à comunidade Nova Esperança realizaram um cadastro junto ao Movimento Popular por Moradia. No documento deixam nome completo, telefone e explicam cada situação. As histórias correspondem ao que mostra os números: com a pandemia, muitas famílias perderam condições de moradia.
De acordo com o último cadastramento realizado na ocupação, entre os meses de setembro e outubro de 2020, o território reuniu 1,5 mil famílias. A partir da análise dos dados sobre os responsáveis de famílias, constatou-se que há um pouco mais de pessoas do gênero masculino (52%) do que feminino (48%). Além disso, também foram observadas questões como nacionalidade, faixa etária, estado civil, escolaridade, religião e classificação das situações de renda domiciliar.
Andar pelas ruas e conversar com os moradores da Nova Esperança é conhecer as diferentes culturas, que vivem em um mesmo espaço. Isso acontece pela quantidade de pessoas migrantes dentro da ocupação. Somente a quantidade de imigrantes haitianos chega a quase 1,8 mil. Além disso, ainda ocupam em terrenos alguns venezuelanos e cubanos. Isso sem contar a quantidade de pessoas migrantes que vieram de diferentes estados do Brasil.
Todas as pessoas que chegam à ocupação fazem parte do déficit habitacional de Curitiba e Região Metropolitana, que, ainda de acordo com os dados da Fundação João Pinheiro, já atinge 84.104 domicílios. São pessoas vivendo em situações irregulares e que não conseguem comprar uma moradia própria ou pagar aluguel. Para os imigrantes isso se acentua ainda mais. Por não serem do Brasil, os obstáculos para a conquista de uma moradia são dobrados.
Quando chegam aqui, a comunicação se torna o fator mais limitante. Por não falarem português, contam com a ajuda de outros imigrantes que já estão mais habituados à língua. Além disso, sofrem com o racismo e a xenofobia. Wilzort Senatus é estudante de Agronomia na UFPR e presidente da União da Comunidade – Estudantes e Profissionais Haitianos (UCEPH). Mora na Nova Esperança há seis meses e auxilia aqueles que chegam até ele. “As maiores demandas que temos aqui: acesso à educação, documentação, criação de currículo, doação de cobertores e comida, entre outros auxilios”, conta Wilzort.
Quando o assunto é habitação, as dificuldades permanecem. “Pro imigrante é difícil alugar um espaço. O proprietário desconfia se você vai pagar, mesmo que você mostre de onde vai tirar dinheiro. Muitas vezes o imigrante não consegue provar”, relata Senatus. Quando conseguem um local, muitas vezes não conseguem uma renda suficiente para pagar o aluguel. Isso os leva até as ocupações.
Muitos refugiados haitianos da Nova Esperança vieram de outras ocupações. Alguns deles pagavam aluguel para morar em ocupação na região do Sabará. Sabendo que o MPM estava formando uma nova comunidade no município de Campo Magro, alguns refugiados foram em busca de um terreno. Os que conseguiam um espaço para construir iam convidando mais e mais haitianos, a fim de fortalecer a comunidade imigrante. Assim passaram a constituir quase um terço de toda a Nova Esperança.
Cléia Alves da Costa, conhecida como Dona Crô, não migrou de país, mas sim de estado. Ela é de Manaus, Amazonas, e já está na ocupação há um ano e quatro meses. Em sua cidade natal trabalhava como comerciante, ofício que ainda realiza dentro da comunidade. Na Nova Esperança, os moradores são incentivados a fortalecer (comprando e vendendo) nos comércios que se espalham pelos setores. Muitos ali, como a dona Crô, sobrevivem daquilo que vendem nas barraquinhas de doce, sorveteria, lanchonetes, entre outros comércios.
A amazonense veio com a filha, genro e dois netos (de 12 e 16 anos) até União da Vitória, no Paraná. Eles se mudaram devido às oportunidades de trabalho que o genro havia conseguido na região. A oferta de trabalho acabou não indo para frente e motivada pela sobrinha, que já morava na Nova Esperança, ela e a família recalcularam a rota a caminho da ocupação. “Quando eu cheguei, em junho de 2020, já tinha bastante gente. Passei quase dois meses ali no alojamento, dentro das salas. A gente trazia a cama ou eles conseguiam por doação”, conta dona Crô.
Ela sempre gostou de morar em Manaus, mas não tem vontade de sair da Nova Esperança e voltar para lá. Hoje o que ela deseja é construir uma casa, já que conquistou um terreno na vila. Dona de um pequeno comércio, vende doces, salgados, alimentos essenciais e bebidas. A Barraquinha da Crô, como diz a fachada, faz sucesso entre as crianças que a todo momento param pra comprar alguma coisa. “Aqui é bem tranquilo, a gente não vê briga, vivemos bem, graças a Deus”, relata.
“Eu falo para todo mundo que não vejo a minha vida em outro lugar. Aqui eu tenho a oportunidade de ganhar um terreno para a minha mãe e o meu filho. Se regularizar eu fico, se não regularizar, eu fico também”, afirma o morador da Nova Esperança, Patrick Henrique Ramos de Jesus.
O sentimento de pertencimento é intrínseco à maioria dos moradores da comunidade. Muitos já iniciaram a construção das casas, abriram negócios e veem o território como um novo lar. Contudo, o terreno que antes abrigava a Fazenda Solidariedade se encontra em meio a um conflito fundiário complexo e pouco confortável para os ocupantes.
Como dito anteriormente, o terreno em Campo Magro foi doado por particulares à FAS, em 1984. Em 2012, três anos após o encerramento das atividades no local, a área foi cedida pela prefeitura de Curitiba, via Outorga Permissão de Uso de Imóveis, tendo como permissionário o estado do Paraná. A outorga foi concedida a título precário pelo prazo de 20 anos, permitida a prorrogação da vigência por consenso das partes.
Portanto, embora a ocupação esteja localizada no município de Campo Magro, ela é de propriedade do município de Curitiba, mas está cedida em comodato ao Estado do Paraná. Então, o litígio existente hoje acontece entre o governo do Estado e as pessoas que estão ocupando a área.
Em busca de compreender a situação do local e considerar as condições de moradia existentes na área, o Ministério Público do Paraná procurou a Universidade Federal do Paraná (UFPR) para solicitar um estudo sobre a viabilidade, ou não, da permanência dos moradores.
“No estudo a gente procurou identificar os limites entre a ocupação e as potenciais áreas de risco para os moradores. É possível aproveitar o terreno com moradia? Se sim, em quais condições isso é possível?”, explica Daniele Pontes, pesquisadora do Ceppur. “Essas são as perguntas que a gente tenta responder, mas para isso precisamos considerar questões ambientais, geológicas e a legislação existente”, conclui.
Os pesquisadores trabalharam com dados secundários e levantamentos preliminares do território, devido à pandemia da Covid-19 que impedia a atuação no local de ocupação.
No entanto, os professores afirmam que, atualmente, pelo próprio zoneamento, sem mexer na legislação atual, já se poderia regularizar em torno de 150 famílias, considerando um parcelamento de lotes de 2.000 m².
Confira os pontos centrais abordados no estudo:
Visando um consenso entre as partes envolvidas, surge a Comissão de Mediação de Conflitos Fundiários, criada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR) e, no caso específico do Nova Esperança, atua na mediação com o poder público.
“Nós tentamos encontrar uma solução de consenso, para ver se a área vai ser desocupada, se for o caso, quando e como. Para isso, precisamos saber a história dessas pessoas, para que, em uma eventual desocupação, elas tenham para onde ir”, conta o desembargador e coordenador da Comissão, Fernando Prazeres.
Desde o início da ocupação, a Comissão esteve na Nova Esperança três vezes. Além das visitas também foram realizadas diversas audiências virtuais, espaços onde os coordenadores atuam tentando sensibilizar o poder público, mas nunca pressionando as decisões judiciais.
Para Fernando Prazeres, do ponto de vista estritamente jurídico, a situação não é confortável para quem ocupa a área. Existe uma sentença determinando a reintegração e o despejo, provavelmente, vai acontecer uma hora ou outra — salvo se encontrarem uma solução para as famílias, seja no próprio local ou em outro.
“Dentro do quadro que existe hoje, é muito difícil encontrarmos uma solução de consenso para a situação. A permanência das famílias no local está fora de cogitação tanto do ponto de vista do Estado do Paraná, quanto de Campo Magro”, enfatiza o desembargador.
A advogada Daisy Ribeiro, que acompanha a comunidade na ONG Terra de Direitos, destaca que a defesa tem questionado o Estado acerca da necessidade de pensar alternativas para a regularização fundiária do terreno, principalmente diante de um cenário de absoluta crise social.
Até o momento, a Nova Esperança já sofreu três tentativas de reintegração de posse. No entanto, os despejos e remoções estão suspensos até o dia 31 de janeiro por meio da Lei 14.216/2021, também conhecida como PL Despejo Zero.
A lei é uma conquista da Campanha Despejo Zero que, além da suspensão das reintegrações, traz medidas como a obrigatoriedade de realização de audiência, de mediação e conciliação e também a realização de inspeção judicial, ou seja, a visita do juiz à comunidade para conhecer a realidade dos moradores.
A Campanha foi lançada em julho de 2020 e, desde então, reúne mais de 100 organizações que atuam contra a remoção forçada de famílias de suas moradias. De acordo com os números mais recentes da mobilização, o Brasil somava, em outubro de 2020, 123,2 mil famílias ameaçadas de despejo, o que representa um aumento de 32% em relação ao levantamento do último mês de agosto.
Ainda de acordo com esses dados, o Paraná é o quarto Estado com maior números de despejos, com 1.656 famílias despejadas e 3.270 ameaçadas de remoção. De acordo com o Plano Estadual de Habitação de Interesse Social (PEHIS), realizado pela Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohapar), o estado possui um déficit habitacional estimado em 322 mil casas, das famílias que aguardam atendimento de programas habitacionais, 85% possuem indicador de renda até três salários mínimos.
“Eu tenho fé que a gente vai encontrar uma solução boa para a situação da Nova Esperança, principalmente porque existem muitas famílias estrangeiras. Essas pessoas não podem ser simplesmente despejadas, elas não têm uma referência de outro território nacional”, completa o coordenador da Comissão de Mediação de Conflito Fundiário.
A Procuradoria-Geral do Estado (PGE), que representa os interesses do governo, se manifestou formalmente por meio de Nota Oficial e relatou que ação com pedido de reintegração de posse foi ajuizada pelo Estado do Paraná em junho de 2020.
“Houve audiência de tentativa de conciliação na data de 17.06.2020, na qual foram instituídos compromissos para os ocupantes, para o Estado do Paraná e para o Município de Campo Magro, gerando a suspensão da ordem de reintegração. Alguns dias depois os ocupantes descumpriram os compromissos assumidos em audiência, razão pela qual foi requerido o levantamento da suspensão da ordem de reintegração de posse ao juízo, o que foi deferido”, destaca a nota.
Posteriormente, ao deferimento da ordem de despejo, a defesa dos ocupantes interpôs recurso de apelação ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Atualmente, o processo judicial está sob responsabilidade do Centro de Conciliação do Poder Judiciário (Cejusc) para análise sobre a viabilidade de conciliação no que tange à desocupação da área.
A PGE se manifesta ainda afirmando que “não existe interesse por parte do Estado do Paraná na permanência dos ocupantes no imóvel, que é público”. Ainda segundo a nota, o acompanhamento e acolhimento das famílias é obrigação do município de Campo Magro e da União, restando ao Estado do Paraná apenas o providenciamento do cadastro das famílias para programas habitacionais.
A prefeitura de Campo Magro se omitiu de comentar o processo e a Fundação de Ação Social não retornou aos questionamentos da redação.
Lideranças do MPM, da Nova Esperança e advogados populares da Terra de Direitos buscam alternativas para a permanência das famílias no terreno ocupado. A permanência dessas pessoas ali depende das ações do Estado para uma possível regularização fundiária. Se a desocupação desse terreno for decidida judicialmente, o Estado precisa fornecer moradia digna para essas famílias. Até o momento nenhuma proposta concreta foi oferecida à comunidade.
“Eu pretendo continuar aqui na comunidade. Mais tarde pretendo construir outra casa, ou aumentar essa, porque só duas peças é pouco”, conta a aposentada Sueli Rosa Andrade, de 67 anos. Dona Sueli, como é conhecida, planta verduras, legumes e cultiva plantas no terreno padrão de 200 metros quadrados da comunidade. Ao lado da horta, um barril com o fogo sempre aceso, onde ela e o filho esquentam a água, inclusive para o banho. Ela e a dona Crô não são as únicas a ter planos para um futuro dentro da Nova Esperança.
Marcia Regina, dona de brechó na ocupação, tem esperança de que continue morando na casa que levantou e trabalhando no brechó que construiu. “Aqui é uma delícia. Sofremos na chuva? Sim, isso aqui vira um barreiro, mas não tem dinheiro que pague. Nossa, eu torço muito e peço a Deus que a gente ganhe, nem que seja para a Cohab e a Cohapar regularizar, assim pagamos e legalizamos bonitinho”, desabafa.
Para Fernando Prazeres, desembargador do TJPR, as chances de permanência das pessoas no local são mínimas, mas acredita que haverá ao menos uma solução para as famílias. “Não adianta encostar um caminhão, colocar as famílias em cima e despejar na estrada, como já vimos acontecer. Isso não resolve nada, pode resolver o problema de forma imediata, mas cria outro a longo prazo”, explica. Valdecir, um dos líderes, é peça-chave na organização da ocupação. Ele acredita que essa organização é essencial e mostra que a comunidade tem condições de permanecer e conquistar o espaço. “O poder tá com o povo. Só precisa que haja espaços para entrar e fazer acontecer, fazer o sonho da casa própria acontecer”, afirma.
Este material é resultado de uma produção integrada, durante o primeiro semestre letivo de 2021, entre quatro disciplinas do curso de Jornalismo da UFPR: Laboratório de Jornalismo II (prof. Hendryo André), Laboratório de Radiornalismo I (prof. Rosângela Stringari), Laboratório de Telejornalismo I (prof. Elson Faxina) e Laboratório Multimídia de Jornalismo (prof. José Carlos Fernandes).
PRODUÇÃO
MAYALA FERNANDES
LUCAS DANIEL
EDIÇÃO FINAL
CATHERINE GREIN
EDUARDO MAGALHÃES OLIVEIRA
ISABELA STANGA