Frida Kahlo, Lygia Clark, Niki de Saint Phalle. Esses são alguns nomes que fizeram história na arte, tanto pelo seu talento, quanto pelo fato de serem mulheres. Maria José Justino, diretora da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP), lançou no dia 16 de maio, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, seu livro “Mulheres na Arte. Que diferença isso faz?”, em que aborda a história e a influência feminina na arte. Em uma entrevista ao Jornal Comunicação, Maria José fala sobre seu livro e sobre a questão de gênero no mundo artístico.
Jornal Co:::unicação: Como surgiu a ideia de escrever o livro “”Mulheres na Arte. Que diferença isso faz?”?
Maria José Justino: Esse livro é o resultado da pesquisa de pós-doutorado que fiz na École des Hautes Études et Sciences Sociales, em Paris, onde trabalhei com o Dr. Jacques Leenhardt, diretor da École, e a quem tenho a honra de ter o prefácio assinado. O ponto de partida foram as poéticas de Frida Kahlo, Maria Martins, Niki de Saint Phalle, Lygia Clark e Maria Cheung. Ao dar prosseguimento à pesquisa, dei-me conta de três coincidências: eu estava trabalhando com cinco mulheres, as obras escolhidas estavam associadas ao corpo e esse corpo, em todas elas, era o corpo feminino. Essa descoberta despertou um interesse pela artista-mulher e pelos feminismos. Cheguei à conclusão de que para a mulher-artista, o corpo é fundamentalmente um espaço expressivo e que “a rebelião do corpo é também da imaginação”.
Co:::unicação: Como o corpo é tratado nesses trabalhos?
Maria José: Se o corpo é o alvo da arte contemporânea – chegando mesmo a se constituir em forte movimento: Body Art –, ele é obsessão na mulher-artista. As artistas exploram o corpo como corpo violentado, corpo fetiche, corpo erótico, corpo mutilado. Sempre o corpo como tensão. Há uma forte simbologia no uso do corpo pelas mulheres-artistas. O corpo acusa a subversão da mulher-artista, e esta explora tanto o corpo feminino como o masculino, de certo modo invertendo as polaridades: inversão do uso do corpo da mulher na tradição da história da arte (de modelo ela passa a sujeito) e a exploração do corpo masculino erotizado pela mulher. O corpo é trabalhado como expressão tanto da repressão quanto da liberação, tanto como resistência quanto como subversão.
Co:::unicação: O que seria o “olhar feminino” sobre a arte?
Maria José: Creio que essa pergunta nos conduz a levantar muitas outras: há uma diferença do fazer artístico entre a mulher e o homem? São fundamentais as relações de gênero para a produção artística? Entre nós, brasileiros, esse debate não tem encontrado terreno fértil. Justiça seja feita, há grupos estudando a mulher e gênero, muitos na sociologia, história e antropologia (sobretudo o núcleo PAGU, em Campinas), mas ainda muito pouco sobre a mulher-artista. Creio que é possível falar em “feminino” na arte, mas que independe de gênero. Um homem pode ter um olhar feminino e vice-versa. Essa questão remete ao debate sobre gênero. E gênero, como bem refletiu Judith Butler (Gender Trouble), não deriva do sexo físico, não tem uma origem, gênero surge como a organização social da diferença sexual. Portanto, se há um olhar feminino, tanto pode ser da mulher quanto do homem.
Co:::unicação: Apesar do “olhar feminino” não ser dependente do gênero, há algum tema recorrente na arte feita por mulheres?
Maria José: Devo admitir que temas como a sexualidade, a maternidade, o estupro, o erótico, a violência doméstica são recorrentes na mulher-artista. Também recorrentes são os materiais frequentemente utilizados, como bordado, rendas, utensílios domésticos; ou um imaginário de fantasias, desejos, fobias, como a exploração de baratas na obra de Lygia Pape (Caixa de Baratas, 1967) ou ainda as Chiennes de garde e as chamadas bad girls na exploração da raiva, do erótico, da pornografia, recorrendo ao uso de sangue (menstruação, parto, estupro), de performances de masturbação, mutilação, etc. Esse imaginário tem possibilitado obras extraordinárias que conseguem equilibrar discurso político com poética.
Co:::unicação: O que a arte ganha com artistas femininas?
Maria José: Creio que a maior contribuição das mulheres na arte pode ser medida pela qualidade de suas poéticas. Pensadoras como Hanna Arendt, Simone de Beauvoir, Rosa Luxembourg, Aracy Amaral e tantas outras são indicativos das contribuições que as mulheres vêm inscrevendo na história. Acredito, e o livro tenta mostrar, como o exercício artístico de mulheres indica a rejeição de todas elas ao determinismo biológico e social. Todas elas abrem portas para o mundo da arte. A imersão em suas poéticas, cujo fio condutor foi a investigação do sentido possível de uma assinatura “feminina” na produção artística, nos levou à compreensão de que a arte extrapola a questão sexual, já que identidades e diferenças estão presentes tanto no universo feminino quanto no masculino. Embora a ausência forçada da mulher na história, que lhe roubava a atuação artística, ainda não tenha sido de todo resolvida, o fato é que hoje, numa época em que a dualidade masculino/feminino é questionada até na sua gênese biológica, ser mulher não é mais o determinante. O que importa hoje, fruto das conquistas que as mulheres alcançaram, especialmente pelo movimento feminista, é o que cada artista, com o corpo que tem, pode pôr na pauta da contemporaneidade. A qualidade não tem sexo, ela faz a diferença.
Co:::unicação: Qual é a maior dificuldade encontrada para as mulheres que decidem entrar para o mundo da arte?
Maria José: Hoje eu diria que as dificuldades são as mesmas enfrentadas por qualquer artista, independentemente de gênero: os desafios do mercado e do sistema da arte. Nem sempre os mais talentosos ocupam as primeiras fileiras. Há todo um jogo que envolve qualidade, relacionamentos (com museus e galerias) e, diria mesmo, até sorte. No passado, sim, a mulher enfrentou barreiras violentas. A história da arte tem sido seletiva, sexista, como diria Griselda Pollock. Durante muito tempo, a mulher esteve atrás do palco, ocupando o segundo plano. O que não significa estar fora da história. O livro se refere a essa mulher esquecida na história, ausente nos registros. Há exceções: mulheres que chegaram a frequentar os ateliês particulares, mas só quando contavam com as benesses do pai ou do marido. O respeito pela profissional só ocorre a partir das conquistas dos movimentos feministas.
Co:::unicação: O preconceito em relação às mulheres tem diminuído ou aumentado no meio com o passar do tempo?
Maria José: Não há como responder a essa pergunta de forma absoluta. Desconhecemos a situação das mulheres em vários pontos geográficos do planeta. Mas podemos afirmar que a categoria “mulher” não é única e universal, mas situada em um tempo, em uma cultura, ou seja, masculino e feminino são conceitos construídos no interior das normas de ordem social. As identidades são frutos dessa dialética. O sujeito cognoscente reestrutura, reconceptualisa a partir da experiência. Nessa postura, trata-se de investigar como os fenômenos são criados e mostrar como se cristalizam em essências, ou seja, desconstruir o preconceito.