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“Além de serem poucos e de não ter o suficiente para todas nós, a qualidade deles [dos absorventes] era horrível. As que tinham muito fluxo cortavam o lençol, a toalha, as camisetas, para fazer forro para a menstruação, porque não tinha outra opção” — diz, em depoimento, a egressa Amália Cristina, ex-detenta do sistema prisional de Piraquara entre os anos de 2012 a 2013.
Em 24 de setembro, o Projeto de Lei n° 4.968, criado pela deputada federal Marília Arraes (PT-SE) em 2019, foi sancionado pelo Senado sob a relatoria da senadora Zenaide Maia (Pros-RN). O ato normativo visava instituir o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, assim como alterar a Lei nº 11.346/06, com o objetivo de estabelecer a presença de absorventes higiênicos femininos como item essencial em cestas básicas entregues pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Entretanto, no dia 7 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro vetou dois artigos do Projeto de Lei, o primeiro e o terceiro, que previam a distribuição gratuita de absorventes higiênicos e estabeleciam a lista de beneficiárias: estudantes de baixa renda, matriculadas em escola da rede pública; mulheres em situação de rua ou demais situações de vulnerabilidade extrema, presidiárias e mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa. Bolsonaro justificou que a decisão foi tomada devido à falta de uma fonte de custeio.
No entanto, o argumento foi tido como infundado, já que o texto aprovado previa duas fontes de custeio. O documento ressalta que o projeto seria financiado pelos recursos destinados ao SUS e, no caso das presidiárias, viria dos recursos ao Fundo Penitenciário Nacional. Questionado sobre isso, o presidente alegou que os absorventes não constam na lista de medicamentos essenciais do SUS e que a lei não prevê o uso de recursos do Fundo Penitenciário Nacional para o fim descrito no artigo.
A ação produziu revolta em massa. Através da hashtag #LivreParaMenstruar, figuras políticas e celebridades nacionais se posicionaram nas redes. Em post no Instagram, a atriz Cláudia Raia afirmou:
Em resposta ao veto, a autora da proposta, Marília Arraes, disse que a atitude do presidente comprova mais uma vez sua misoginia: “Bolsonaro mostra que não tem nenhum pingo de sensibilidade com as mulheres. Ele deixa claro toda a sua misoginia com esse veto. Não podemos nos calar, pois estamos tratando da vida, da dignidade de milhares de mulheres. Esse veto é um atentado contra todas nós”. Ainda no fim do mês passado, Marília disse pretender derrubar o veto no parlamento e espera, por meio do projeto, beneficiar cerca de 5 milhões de mulheres em situação de vulnerabilidade, que incluem estudantes de bairros periféricos e detentas.
O retorno social sobre o veto foi tão amplo que repercutiu até mesmo fora do país. O jornal diário britânico The Guardian noticiou o veto de Bolsonaro, e o americano The Washington Post relatou que a ação “desafia os esforços globais para tornar os cuidados menstruais menos onerosos”. A onda de indignação atingiu até mesmo a capital da França. Na embaixada do Brasil em Paris, um grupo de brasileiras instalou um varal de absorventes, em 10 de outubro, com frases em alusão ao ciclo menstrual.
Devido à repercussão ocasionada pelo veto, a temática saiu das sombras, dando origem a estudos e pesquisas que comprovam como a desigualdade de saúde íntima é abrangente no país — em maio deste ano, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) publicaram um relatório que, segundo as instituições, “traça um panorama alarmante da realidade menstrual vivida por meninas brasileiras”. No documento, foi analisada a saúde íntima de 15,5 milhões de brasileiras entre 10 e 19 anos. Os dados apontam que cerca de 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiros; 900 mil não têm acesso à água canalizada; 6,5 milhões não possuem redes de esgoto em casa e mais de 4 milhões de meninas não tem à disposição algum requisito mínimo de higiene, como água e sabão — mas uma realidade ainda mais triste é a de que esse dilema não nasceu ontem, ele se arrasta por anos, ganhando uma atenção especial apenas agora, inclusive no Paraná.
A temática se torna ainda mais ignorada quando as afetadas são mulheres que se encontram longe de nosso campo de visão. Marginalizadas, exclusas por muros altos de blocos de concreto, são obrigadas a se conformar com o completo descaso de direitos básicos. Essa foi a realidade que Amália Cristina, de 51 anos, encontrou nas penitenciárias de Piraquara, onde passou de junho de 2012 a agosto de 2013: 9° Distrito, CT1 e PSE. Em depoimento cedido à equipe do Jornal Comunicação, Cristina detalhou que, por muitas vezes, os absorventes eram cortados ao meio antes de serem entregues às detentas. Caso contrário, não seria o suficiente para todas.
Ainda sobre a situação higiênica degradante das mulheres privadas de liberdade da Penitenciária Feminina de Piraquara — situação que se agravou ainda mais com a pandemia e a consequente proibição de visitas presenciais dos familiares das detentas — no ano passado, em matéria ao Jornal Plural, a jornalista Jess Carvalho trouxe a público alegações de que os absorventes entregues às presas tinham o prazo de vencimento marcado para 2018, dois anos antes.
A matéria serviu como alerta para que a dignidade e saúde íntima das presas paranaenses fossem valorizadas. Em entrevista com Jess, a jornalista detalhou que, até o momento, acompanha o desenrolar da situação. Segundo ela, houve significativo avanço desde a publicação da reportagem, resultante da preocupação da comunidade e o engajamento de ONGs, coletivos e demais iniciativas do estado.
A melhora em relação à higiene íntima das detentas é ressaltada por Juliana Heindyk, coordenadora estadual de políticas para mulheres encarceradas do Departamento Penitenciário do Paraná (Depen-PR). Atualmente, as mulheres das unidades carcerárias do estado recebem a cada 30 dias um kit de higiene composto com produtos essenciais, como xampus, papel higiênico e absorventes. No entanto, nem todos esses itens são pagos pelo governo — os condicionadores, por exemplo, só são disponibilizados graças à doação de ONGs e igrejas que entregam os produtos em galões, posteriormente fracionados em frasquinhos para a entrega.
Na região metropolitana de Curitiba, um grupo de voluntários se destaca nessa luta: O Coletivo Igualdade Menstrual, um projeto que foca em oferecer recursos para mulheres em situação de vulnerabilidade social e que já arrecadou mais de 20 mil absorventes para comunidades carentes e penitenciárias.
Em entrevista, a fundadora do coletivo, Adriana Bukowski, contou que, no começo, ao procurar o poder público, não encontrava nenhum dado ou censo em relação à pobreza menstrual no estado, o que dificultava muito o combate. Foi quando percebeu a magnitude do problema.
Para ela, o tema é menosprezado, não só nas políticas públicas, mas em todo lugar. É invisibilizado pela sociedade e “tudo que é invisível para a sociedade, é para o poder também”.
“O maior problema nas penitenciárias é o acesso a itens extras. Elas recebem um pacote e, se precisarem de mais, não têm como comprar. Também não têm acesso à internet ou a um médico para tirar dúvidas sobre o próprio corpo”, acrescenta Adriana.
Além das doações de coletores menstruais, o Coletivo também tem levado palestras sobre educação menstrual e o funcionamento do corpo feminino às detentas que, segundo Adriana, sempre possuem dezenas de dúvidas e aproveitam cada segundo.
Segundo a teoria do garantismo penal de Luigi Ferrajoli, é da essência do Direito Penal garantir a preservação de direitos fundamentais básicos das detentas. Assim como é dever dos estabelecimentos prisionais oferecer produtos de higiene pessoal aos privados de liberdade. A proposta aprovada também obriga as penitenciárias femininas a reservarem espaço físico necessário ao conforto e ao atendimento de saúde das presas.
Em debate sobre a lei na Câmara, a deputada federal Carmen Zanotto (PPS-SC) destacou que as pessoas que cumprem pena, por estarem confinadas em um só local, são mais vulneráveis a enfermidades e epidemias. Essas doenças, ressaltou a relatora, podem ser combatidas com higiene pessoal adequada: “A saúde pública, que é dever do Estado, abrange medidas e políticas para a prevenção de doenças”.
Aqui no Paraná, o governador Ratinho Júnior sancionou, em 27 de setembro, a Lei 20.717/2021, que tem como objetivo combater a pobreza menstrual em todo o estado. A lei visa garantir meios seguros e eficazes na administração da higiene íntima das pessoas que menstruam. No entanto, apesar de a lei estar em vigor, o governo estadual se isenta da distribuição de absorventes para detentas, segundo a jornalista Jess Carvalho. De acordo com a pesquisa que realizou, quem assume essa função no Paraná são instituições do terceiro setor.
As especificidades de gênero são ignoradas dentro das penitenciárias, o que torna o dilema estrutural. Nana Queiroz, no livro Presos que Menstruam (Editora Record, 2015), aponta que o estado esquece que as mulheres precisam de absorventes, por exemplo, e que necessitam de papel higiênico para duas necessidades fisiológicas em vez de uma.
No livro, a jornalista trata sobre o tabu que é falar sobre os presídios femininos ao redor do país. As mulheres são esquecidas pelo próprio sistema carcerário que as trata como homens. A elas são oferecidos os mesmos auxílios que aos prisioneiros do sexo masculino, ignorando a diferença de gênero e necessidades extras.
Queiroz explica que, em alguns presídios, é oferecido um pacote pequeno de absorventes para o ciclo menstrual, os quais, conforme muitas detentas relataram, não são suficientes para aquelas com fluxo maior. Em casos extremos, quando falta absorvente durante a menstruação, detentas improvisam usando miolo de pão como absorvente interno.
Mesmo com todos esses dilemas, Adriana Bukowski, do Coletivo Igualdade Menstrual, ainda tem esperança de mudança. Segundo ela, a questão da pobreza menstrual dentro e fora dos presídios é um problema multidimensional a ser resolvido por um conjunto de ações da sociedade junto ao estado.
Para Adriana, é possível erradicar essa situação ao ter uma distribuição segura e eficaz de absorventes em conjunto com um saneamento básico de qualidade e da educação menstrual para todos na sociedade. Isso é um trabalho da sociedade civil, privada e pública.
Nós entramos em contato com o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem-PR) a respeito das inspeções que o órgão realiza nas penitenciárias femininas do estado. Em nota, eles nos disseram:
“Além das inspeções, temos projetos em andamento para avaliar e buscar melhorar a situação da saúde das mulheres detidas no Paraná, incluindo assim, a situação da pobreza menstrual. Nossa última inspeção foi realizada no início desse ano, mais precisamente em fevereiro, por esse motivo, não possuímos dados atualizados sobre a saúde íntima das detentas. No entanto, nossa próxima inspeção, a maior do ano, está agendada para dezembro e parte dos dados será atualizado a partir desse momento”.
Este material é resultado de uma produção integrada, durante o primeiro semestre letivo de 2021, entre quatro disciplinas do curso de Jornalismo da UFPR: Laboratório de Jornalismo II (prof. Hendryo André), Laboratório de Radiornalismo I (prof. Rosângela Stringari), Laboratório de Telejornalismo I (prof. Elson Faxina) e Laboratório Multimídia de Jornalismo (prof. José Carlos Fernandes).
PRODUÇÃO
GABRIELA GORGES
JÉSSICA BLAINE
LORENZZO GUSSO
EDIÇÃO FINAL
LETÍCIA RIBEIRO