Província, cárcere e lar: para Caetano Galindo, “ser curitibano é um inferno”

A literatura curitibana não se encerrou com a morte de Leminski ou de Dalton. Curitiba continua sendo a terra natal de escritores talentosíssimos, e também o berço de iniciativas de fomento à leitura e escrita que deveriam servir de exemplo para o resto do país.

Mas, para compreender esse novo momento da cena literária da capital, é preciso antes perguntar se faz mesmo sentido falar de uma “literatura de Curitiba”, como se houvesse uma unidade estética, temática ou emocional que amarrasse esses escritores sob um mesmo guarda-chuva.

Para Caetano Galindo, escritor, tradutor e professor do Departamento de Letras da UFPR, essa ideia é, no mínimo, questionável:

“Eu tenho muita dificuldade com esse discurso de que tal escritor é relevante porque vem dessa cidade. Ou de que o conjunto da literatura produzida por pessoas dessa cidade tem uma característica fundamental ou coerente por ser dessa cidade. Eu não sei exatamente se isso é verdade. E, no caso de Curitiba, talvez seja uma meta-inverdade. Talvez a literatura produzida aqui seja tipicamente curitibana justamente por não ser tipicamente curitibana.”

Reprodução: Cobogo

Com isso em mente, é importante enxergar a literatura contemporânea feita em Curitiba como algo plural e diverso. De Giovanna Madalosso a Cristóvão Tezza, passando pelo próprio Caetano Galindo, cada autor possui estilos, temas e modos de estar no mundo completamente distintos. Não há uma única Curitiba literária — há muitas.

Ainda assim, é inegável que o lugar de origem marca profundamente um escritor. A geografia molda a sensibilidade, o clima infiltra-se na linguagem, a cidade aparece nos dilemas e nos modos de olhar.

Para Caetano Galindo, ser curitibano é um dilema de difícil resolução:

“Ser curitibano é complicado, ser curitibano não é fácil, ser curitibano é um inferno. E escrever sobre esse nosso inferno talvez seja nossa maneira de tentar entender o que é isso.”

Coletivos literários

Algumas das iniciativas mais louváveis surgidas em Curitiba nos últimos anos nasceram de coletivos literários, espaços horizontais onde a escrita circula, cresce e transforma a comunidade. Dois exemplos se destacam: o Marianas e o Toma Aí Um Poema.

O Marianas reúne escritoras e pesquisadoras feministas que, além de produzirem, publicarem e discutirem literatura, também trabalham para visibilizar autoras curitibanas e paranaenses, seja por meio de zines, revistas, eventos ou debates. É um coletivo que entende literatura como política dando voz a quem, historicamente, ficou à margem.

O Toma Aí Um Poema, por sua vez, leva poesia para fora dos círculos tradicionais. Começou como um projeto digital e hoje é uma das plataformas mais importantes de divulgação poética do país, reunindo vídeos, leituras, performances e uma grande comunidade de leitores. É uma curadoria viva, que conecta Curitiba ao Brasil e o Brasil ao mundo, transformando a cidade num polo de circulação de poesia contemporânea.

“Eu vejo que, hoje, as pessoas que estão publicando se conhecem mais; elas têm uma relação de rede. Então aquela ideia de que um escritor ou uma escritora são figuras isoladas, com uma publicação que traça um caminho totalmente autônomo, hoje é diferente. Vejo que as pessoas se frequentam mais — nesses eventos, nesses saraus”, afirma Luci Collin, escritora curitibana e vencedora do Prêmio Jabuti de Poesia.

Foto: Amarildo Henning / Reprodução: Biblioteca Pública do Paraná

Além disso, a quantidade de feiras culturais realizadas na cidade torna Curitiba um terreno fértil para manifestações literárias. Eventos como a Feira Mamute, a Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná e o Festival da Palavra provam isso, reunindo públicos diversos e fortalecendo a circulação de autores locais e nacionais.

“Acho que o futuro já está acontecendo nesse sentido. A gente não está fazendo um investimento agora visando que, num médio ou longo prazo, esses novos nomes possam ter uma expressão. Nós já temos essa expressão. São várias redes que já se formaram e encontraram uma reverberação importante, não só no cenário local, mas também no cenário nacional”, destaca Luci Collin.

A escritora também destaca a importância de iniciativas do poder público, como as Casas de Leitura e o projeto Curitiba Lê, na formação de um público leitor na cidade. Para Luci, esses programas ajudam a criar contato cotidiano com a literatura e ampliam o acesso ao livro.

Foto: Valdecir Galor/SMCS Reprodução: Prefeitura de Curitiba

Ao mesmo tempo, ela enxerga a necessidade de ações mais duradouras, voltadas especialmente para famílias e crianças, com foco em ampliar a circulação de livros e fortalecer uma cultura de leitura que ultrapasse os espaços institucionais e se espalhe pela cidade inteira.

Para descobrir um pouco mais sobre o tema e as novas possibilidades da literatura na cidade, confira entrevista realizada com Bárbara Tanaka, fundadora da livraria e editora Telaranha, conduzida pela repórter Vitória Smarci:

Não esquecer os clássicos

Para pensar uma Curitiba literária no futuro, é essencial não esquecer daqueles que vieram antes. Neste contexto, a editora Todavia relançou a obra de Dalton Trevisan em 2025, com edições modernas e pensadas para um público mais jovem, que normalmente não teria contato com a obra do autor. 

Fabiana Faversani, herdeira da obra de Dalton, conta: “O Dalton mudou de editora poucos meses antes de morrer porque ele sabia, pelos demonstrativos de venda e pela própria repercussão no mercado, que os livros já não chegavam mais. Não eram mais indicados em vestibulares, não despertavam interesse lá fora, vários títulos nem sequer eram reeditados.”

Desde então, as vendas duplicaram, Dalton voltou a cair no vestibular e vários novos contratos de tradução foram fechados, um movimento que recoloca o autor no circuito nacional e internacional. Parte desse novo fôlego passa pelo cuidado quase artesanal que acompanha a coleção da Todavia. “O Dalton guardou um acervo gigantesco ao longo de toda a vida, e eu quis trazer parte disso ao final de cada volume da Todavia: anotações, cartas, notícias que ele usou como base para contos. É um jeito de mostrar os bastidores da criação e aproximar ainda mais o leitor da obra”, explica Fabiana Faversani.

Também é possível destacar a peça Daqui Ninguém Sai, que estreou no Festival de Curitiba de 2025. Fabiana conta que a montagem da peça — feita logo após a morte de Dalton — foi intensa e emocionalmente difícil, mas extremamente recompensadora. Eles tiveram apenas três meses para escolher textos, adaptar, ensaiar e estrear, num processo que ela descreve como “beirando ao trauma”, já que tudo aconteceu imediatamente após a perda do autor, que aconteceu em 9 de dezembro de 2024.

Foto: Annelize Tozetto / Reprodução: Portal Fringe

Apesar das dificuldades, a peça foi um sucesso de público, inclusive entre os jovens. “A gente recebeu escolas da periferia, foram mais de 1.200 alunos que em vários dias visitaram”, conta Fabiana.

Não existe só uma Curitiba. Na cabeça de cada pessoa que ousa vagar por estas ruas cinzentas, cruéis e amaldiçoadas, nasce uma imagem distinta da cidade — alguns, aliás, provavelmente discordam por completo da visão descrita aqui. E com seus escritores não poderia ser diferente.

A Curitiba de Dalton não é a de Leminski, que não é a de Galindo, que não é a de Madalosso, que não é a de Karam. E assim por diante, infinitamente. Para mim, há uma beleza quase sádica nisso: um material inesgotável para pensar e repensar minha própria experiência, encarcerado nesta província que tantas vezes parece sufocar.

Apesar disso — ou talvez exatamente por isso — aqui encontro um lar. E ele se torna mais suportável quando lembro de todos esses gênios que já caminharam pelas mesmas ruas que eu caminho todos os dias. A literatura curitibana, na minha visão, é o que me mantém são dentro dessa prisão de mentiras e metáforas sem fim. Do Simbolismo às reedições de Dalton, que jornada fascinante. Mesmo que, no fim, nada disso faça tanto sentido assim.

O que faz desta cidade onde nasceu a Lava Jato, desta cidade que deu mais votos a Plínio Salgado do que a Juscelino Kubitschek em 1955; desta cidade que oferece calçadas de granito aos moradores do Batel e balas de borracha aos miseráveis do extremo sul — o que faz deste maldito lugar um lugar tão fascinante?

Na singela opinião deste que vos fala, a resposta é só uma: seus livros.

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