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Argeu chegou no trabalho às sete da manhã, como de costume. Cumprimentou os colegas, mas manteve distância: sempre teve muito medo de se contaminar com o coronavírus. Depois, vestiu o uniforme, colocou as luvas, a máscara, enfiou o boné na cabeça e foi para debaixo do sol. Às nove, pegou os equipamentos e esperou que a equipe da funerária trouxesse seu primeiro “cliente”. Naquele dia, ele trabalhou sem parar até às cinco da tarde. Foram enterradas 18 pessoas no Cemitério do Água Verde, uma média de mais de dois sepultamentos por hora.
Às cinco da tarde, a sirene do cemitério tocou, encerrando os sepultamentos. Depois do sinal, não é permitido enterrar mais ninguém e os próximos mortos precisam esperar até o dia seguinte. Esgotado, Argeu se sentou para descansar. Era um alívio ter vencido mais um dia.
Depois de descartar as luvas, a máscara e os EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), ele lavou os braços, pescoço e rosto com detergente no tanque do cemitério. Trocou de roupa e voltou para casa. Lá, Argeu mora com a esposa, que trabalha na área de saúde e estava em contato direto com contaminados, e com o pai, de 83 anos. Nenhum dos três foi contaminado. Argeu acredita que foi proteção divina.
Ele, assim como outros seis profissionais que trabalham ligados ao serviço funerário de Curitiba, contou sua história de vida ao Jornal Comunicação e descreveu a rotina de trabalho durante a pandemia. Invisíveis aos olhos de muitos, os coveiros e a administração dos cemitérios municipais atuaram na linha de frente contra a covid-19, e têm a profissão honrosa e, muitas vezes, pouquíssimo valorizada de preparar o último adeus dos seres humanos na terra.
Argeu de Souza Carrão, de 52 anos, é um dos 13 pedreiros credenciados que fazem os sepultamentos no Cemitério do Água Verde, os populares coveiros. Seu pai, José, também era coveiro do cemitério, e foi obrigado a se afastar durante a pandemia por determinação da Prefeitura. Todos com mais de 65 anos ficaram restritos à função, por pertencerem ao grupo de risco. Argeu frequenta o cemitério desde a infância, brinca que cresceu entre as covas. Sempre teve o sonho de ser mecânico, estudou para isso, fez cursos no Senai de metalmecânica e boas práticas de alimentação, mas não pôde seguir carreira.
Para que a família não perdesse a credencial para trabalhar no cemitério, alguém deveria continuar o legado de seu José, que já está com 83 anos. Argeu foi o único filho que ficou. “Eu realmente não esperava que esse se tornaria meu meio de vida. Mas essa foi a função que o destino me reservou”, comenta. Embora já trabalhe no cemitério há 13 anos, ele nunca se acostumou com as despedidas. “Não é fácil. Quando a gente vem sepultar uma criança, ou uma avó e avô que deixa um neto. Isso mexe com o emocional da gente, é terrível”, relata, emocionado.
Há quatro anos, em uma semana em que estava de plantão, Argeu sepultou a própria mãe. Há oito meses, enterrou a irmã e o sobrinho. São momentos como esses que fizeram com que ele encarasse seu trabalho com a importância que tem. Ele busca fazer cada sepultamento com carinho, e garantir a dignidade dos cadáveres nos últimos momentos. “Não é porque já se foram que não merecem o respeito. Aquilo ali já foi uma vida. Por isso, busco fazer os últimos momentos com amor. Muitos me dizem que nós fazemos um trabalho nobre. E isso me incentiva”, conclui.
A pandemia, porém, deixou o trabalho que já era difícil ainda mais sofrido. Só em Curitiba, 7.779 pessoas morreram desde março de 2020 devido à covid-19. No ano passado, os cemitérios municipais enterraram 19.669 falecidos, e até 30 de setembro de 2021, foram sepultadas mais 18.129 pessoas. A média antes do coronavírus era de 16.754 mortes por ano, e em 2020, o sistema funerário sepultou quase três mil pessoas a mais, uma média de oito enterros a mais a cada dia. Em 2021, o número tende a ser ainda maior.
Antes, Argeu sepultava em média duas pessoas ao dia. Depois, passou a enterrar 15. Houve semanas em que enterrou pais e filhos, três pessoas da mesma família, em intervalos de dias e horas. O que mais pesou em seu trabalho foi que a Prefeitura afastou todos os pedreiros credenciados com mais de 65 anos, que são boa parte dos prestadores de serviço do cemitério municipal. Isso fez com que o trabalho se concentrasse nas mãos dos poucos coveiros que ficaram.
Argeu sempre terminava o dia esgotado. Durante esses quase dois anos de pandemia, sofreu muito: se emocionou quase que diariamente e chorou com a dor das famílias: “Foi terrível, na verdade. A gente se deparou com cada coisa que não estávamos preparados para lidar, muita morte. E não tem como dizer: ‘Ah, com o tempo eu me acostumei’. Não, aqui essa palavra não existe”.
Seu Ivo Rezende Terras não trabalhou durante a pandemia. Passou os dois últimos anos em sua chácara, em Campo Magro, perto do Morro da Palha. Ele foi um dos pedreiros afastados devido à idade, e não pôde trabalhar no Cemitério do Água Verde, onde atua há mais de 45 anos.
Ivo é parte de uma família que tem íntima relação com o Cemitério. Além dele, outros quatro familiares, todos da família Terras, são coveiros. Seu Nicanor, Antonio, Adilson e Caio também trabalham com sepultamento. A família Terras, em tempos normais, é responsável por 40% dos enterros do cemitério. Além deles, existem apenas oito pedreiros credenciados que podem atuar ali, dentre estes está o Argeu.
A família de coveiros poderia ser ainda maior. Na década de 1980, Ivo tinha um ajudante no cemitério: seu filho. Ele brincava que seria o menino quem o sepultaria quando falecesse. Foi o contrário. O filho faleceu antes mesmo de completar 18 anos.
Na pandemia, ele perdeu o genro, que tinha 58 anos, vítima da covid-19. Ivo não foi ao velório. Continuou na chácara, isolado com a família. Quando os números de infectados pelo coronavírus começaram a aumentar, ele debandou para o refúgio em Campo Magro, e ficou lá com os filhos e a esposa até o começo de outubro de 2021, quando já estava vacinado com duas doses – depois ainda recebeu a dose de reforço – e a Prefeitura de Curitiba permitiu o trabalho dos credenciados com mais de 65 anos nos cemitérios municipais.
Ser coveiro em Curitiba, na maioria dos casos, é herança. Não é fácil conseguir a credencial para trabalhar nos cemitérios, e quem consegue só precisa renovar a licença todos os anos para ter trabalho garantido para o resto da vida. Foi assim para Argeu, foi assim para alguns dos Terras, e foi assim com Alexandre Dias Cardoso, coveiro no Cemitério Municipal São Francisco de Paula.
Ele tem 27 anos, e frequenta o cemitério desde que nasceu. Seu avô começou a trabalhar no São Francisco de Paula em 1976, como servente de pedreiro. Depois disso, conseguiu a autorização para trabalhar como coveiro. Passadas duas décadas, foi o pai de Alexandre quem assumiu o dever. E, aos 17 anos, foi a vez de Alexandre assumir o posto de coveiro. Ele trabalhou junto do pai até pouco tempo atrás, quando o velho foi forçado a se aposentar, devido a uma lesão na coluna.
Alexandre não deixa a morte abatê-lo. É feliz, sorridente e piadista, bem como seu Sebastião da Silva, de 79 anos, coveiro que trabalhou junto da família de Alexandre. Enquanto não têm demandas, os pedreiros descansam em uma casinha ao lado do cemitério, onde guardam os equipamentos. Foi lá que receberam nossos repórteres. Durante nossa conversa, Sebastião ficou ao lado de Alexandre, dava pitacos no meio da entrevista e relembrou a infância e juventude na cidade de Ibaiti, no Paraná. Os dois recheiam o clima fúnebre com risos e hipérboles.
Sebastião acompanhou o desenvolvimento da necrópole, reformou e construiu jazigos com as mais variadas arquiteturas, e atendeu desde as famílias mais ricas – que já pediram que assentasse pedras advindas da Itália – até as pessoas mais simples – dentre elas, padres e freiras do convento, que são sepultados em construções verticalizadas.
Beirando os 80 anos, Sebastião é o coveiro mais antigo do São Francisco, e não pensa em aposentar. Em 2018, foi entrevistado pelo Balanço Geral Curitiba em uma reportagem especial sobre o dia do sepultador, comemorado no dia 1 de novembro. “Sou famoso”, brinca ele. Ele é pai, avô, bisavô e solteiro, como gosta de enfatizar.
Após a entrevista, Sebastião e Alexandre conduziram nossa equipe por um tour no Cemitério São Francisco de Paula, recheado de histórias fantabulosas e divertidas. O São Francisco foi o primeiro cemitério municipal de Curitiba, fundado em 1854, em 1º de dezembro, precisamente 32 anos depois da coroação de Pedro I como imperador do Brasil. Inicialmente, ocupava menos de um quarto da área que ocupa hoje, e apenas dez corpos foram sepultados no então Cemitério Público em seu ano de fundação. Hoje, já são mais de 5.750 túmulos, com mais de 80 mil vidas adormecidas.
Durante a pandemia, porém, a necrópole histórica passou a receber até 22 sepultamentos por semana, superando a média anterior de cerca de oito enterros semanais. Diferente do Cemitério do Água Verde, são poucos os jazigos que ainda são usados pelas famílias no São Francisco. A maior parte do cemitério é formada pelo Centro Histórico, e antes da pandemia, a maior demanda do cemitério era na pintura e reformas de túmulos.
Alexandre contou que, em semanas de plantão durante a pandemia, era ele o pedreiro responsável por fazer todos os sepultamentos durante sete dias. Embora fosse puxado, ele fazia em uma semana o que os coveiros do Cemitério do Água Verde enterravam em um dia.
A pior parte era ver as famílias se despedirem dos entes queridos sem a possibilidade de um velório. “No momento em que a gente faz o sepultamento, as famílias ficam ali. E a gente não podia abrir o caixão para aquele último adeus. Nossa, isso era o mais triste, né? As famílias sofrem muito. E, geralmente, eles contavam as histórias para mim enquanto eu sepultava. Então eu sempre sabia quem era o falecido, a vida dele, do que ele morreu”, relatou.
Hoje, o Cemitério já recebe menos de uma vítima de coronavírus por semana. As coisas já estão praticamente normais para Alexandre, e as únicas mudanças que permanecem são as medidas de segurança. Ele, bem como os pais e a irmã, não foi contaminado pelo coronavírus.
Enquanto Alexandre, Sebastião e outros sete pedreiros atendem as famílias com terrenos no São Francisco, dois profissionais atendem aquelas famílias que não têm terreno em lugar nenhum. Nos cemitérios municipais, a Prefeitura “empresta” gavetas para o sepultamento de pessoas carentes – que não podem pagar por um jazigo ou pedreiro para prestar o serviço – e falecidos indigentes – aqueles cujo corpo não é reclamado por nenhum familiar ou amigo.
Os falecidos passam três anos nas gavetas municipais, e caso ninguém translade o falecido carente ou indigente nesse período, o corpo é exumado da gaveta para dar lugar aos novos mortos. Nesses três anos, a família do cadáver pode levar o corpo para um crematório ou para um jazigo permanente em um dos 24 cemitérios da cidade – além dos cinco municipais, existem outros 19 particulares.
Quem faz o sepultamento dos carentes são os chamados polivalentes. Estes profissionais têm vínculo empregatício com a Prefeitura, são servidores, e além do sepultamento, são encarregados da exumação depois dos três anos enterrados nas gavetas municipais, os gavetões. No São Francisco existem dois polivalentes: O Carlos e o Chico que, curiosamente, também é de Paula, assim como o Cemitério. Eles também trafegam pelos outros cemitérios municipais, fazem exumações e cuidam de toda a manutenção. No total, a equipe de polivalentes da Prefeitura é composta por 12 servidores.
Carlos Alberto Justino de Oliveira, de 51 anos, passou mais de duas décadas fazendo a manutenção do Jardim Botânico antes de ser transferido para o Cemitério. Como polivalente, se acostumou rápido. Aprendeu a ver a morte como um número e como parte do processo natural da vida. “Eu já não ligo muito não”, descreve. “Tem gente que não consegue se adaptar com o serviço, mas eu me acostumei bem. Eu penso assim: ‘É só mais um, como um dia eu também vou ser’”.
E por mais que não sofra tanto com a presença da morte, fazer exumação não deixa de ser um trabalho puxado. Desenterrar um corpo depois de três anos é um processo traiçoeiro, e Carlos nunca sabe o que vai encontrar. Em muitas vezes, ele abre a gaveta e encontra o corpo inteiro, enrolado em plásticos, em um estado de decomposição que não permite exumá-lo. De acordo com o protocolo da Prefeitura, o corpo só pode ser exumado quando estiver devidamente seco e decomposto.
Devido a situações como essa, o equipamento de trabalho dos polivalentes fornecido pela Prefeitura é reforçado. São macacões, máscaras e luvas especiais. “E fazer exumação é uma coisa puxada emocionalmente, porque eu sempre me deparo com situações muito desconfortantes”, conclui.
Durante a pandemia, a necessidade de contar com gavetas disponíveis para os carentes aumentou. Por consequência, as exumações também aumentaram. No Cemitério da Zona Sul houve dias em que foram exumados dez corpos para que novos falecidos pudessem ocupar suas vagas. Carlos exumava dezenas de corpos, e dias depois já não tinha mais gavetas disponíveis para sepultamento, e lá ia ele outra vez.
Nos 25 anos que passou na Prefeitura, Carlos nunca imaginou que trabalharia com cemitérios, muito menos conhecia a importância do trabalho cemiterial. “Imagina se não existisse quem trabalha com morte, né? A logística por trás da coisa é muito complicada, mas as pessoas não sabem disso, não valorizam muito não”.
“Tudo aquilo que se relaciona com morte é tabu. Então toda profissão relacionada à morte faz parte do tabu. As pessoas preferem só ter contato com o sistema funerário no momento em que precisam dele. E por isso não conhecem o Mase, o agente funerário, o sepultador”, explica Clarissa Grassi, a chefe do Departamento de Serviços Especiais da Prefeitura, o Mase.
Durante a pandemia, o Mase se uniu à Secretaria da Saúde e à Epidemiologia da Prefeitura para formular os novos protocolos de sepultamento. Antes, cada cadáver passava pelo Instituto Médico Legal (IML), que fazia o Serviço de Verificação de Óbito (SVO) e emitia a Declaração de Óbito. Na pandemia, os óbitos não-violentos não passavam mais pelo IML, e era o próprio hospital quem fazia a constatação do óbito.
Para evitar a contaminação, os falecidos pela covid-19 já deixavam o hospital devidamente ensacados, e o corpo não era mais exposto em momento algum. Isso acontecia com todas as pessoas que faleciam antes do vigésimo primeiro dia após a infecção pelo coronavírus. Somente depois dessa data o corpo poderia ser exposto em velório. Os velórios também foram regulamentados pelo Mase com limite de público e de horário.
As novas medidas, necessárias para resguardar funcionários do Mase e os próprios familiares do falecido, fizeram com que muitos não tivessem a oportunidade de dar o último adeus a um ente querido. Em 9 de abril deste ano, Clarissa velou o pai, vítima da covid-19, no vigésimo dia de contaminação. Ela não viu o pai antes, durante ou depois que foi contaminado. O velório foi com o caixão fechado, e ela não pôde ver o rosto dele pela última vez.
“O cumprimento desse protocolo à risca foi o que evitou o colapso funerário que vimos em outras cidades por aí. Mas é triste, é doloroso, porque o luto da pandemia não é visual, você não vê o falecido, e não sente, não toca pela última vez. Dá a impressão de que a morte não aconteceu”, explica Clarissa.
O serviço funerário evitou o colapso, mas viu a demanda aumentar exponencialmente. Funcionários do Mase que pertenciam ao grupo de risco foram afastados, e o corpo de servidores ficou ainda menor. Clarissa brinca que o Mase está na contramão do restante da sociedade: enquanto todos estavam em quarentena, o serviço funerário trabalhava mais do que nunca. Agora, com a queda dos números da covid-19 no Brasil, todos os setores da sociedade voltaram à ativa, e a demanda do Mase diminuiu.
Com a diminuição da demanda, o serviço funerário cai no esquecimento outra vez. Os profissionais da morte, porém, seguem trabalhando diariamente para manter Curitiba funcionando. Como Clarissa aponta, serviço funerário é serviço essencial. “A morte não é o fim, e um corpo não espera. Por isso o serviço funerário está sempre trabalhando, é 24 horas. Parece que não, mas morte também é saúde pública”.
Este material é resultado de uma produção integrada, durante o primeiro semestre letivo de 2021, entre quatro disciplinas do curso de Jornalismo da UFPR: Laboratório de Jornalismo II (prof. Hendryo André), Laboratório de Radiornalismo I (prof. Rosângela Stringari), Laboratório de Telejornalismo I (prof. Elson Faxina) e Laboratório Multimídia de Jornalismo (prof. José Carlos Fernandes).
PRODUÇÃO
GABRIEL TASSI
KÁSSIA CALONASSI
EDIÇÃO FINAL
CATHERINE GREIN
EDUARDO MAGALHÃES OLIVEIRA