Brasil Insustentável
Confira outras reportagens da série Brasil Insustentável, que aborda o papel
do poder público e desafios para o Brasil a partir de 2023
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A cabeleireira e tatuadora Jéssica de Aguiar Binotti, de 26 anos, moradora do município de Serra (ES), é uma das mulheres que tiveram dificuldade para implantar o Dispositivo Intrauterino (DIU) durante a pandemia. Ela começou o processo para inserir o método contraceptivo pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em novembro de 2020 e concluiu apenas em abril de 2021. “Consultar com a médica demora mais ou menos um mês. Depois, tem que fazer o preventivo, que demora o mesmo tempo para ficar pronto. Aí você marca outra consulta para mostrar o exame e ainda precisa de mais uma para colocar o DIU”, conta. Nesse meio-tempo, o desafio foi tentar não ficar grávida. Ela acredita que o cenário de crise sanitária contribuiu para a situação.
Os dados reforçam a impressão de Jéssica: no Brasil, a disponibilidade de DIUs e também de laqueaduras caiu mais de 40% em 2020 em comparação ao ano anterior, segundo um levantamento do jornal O Globo, com base no DataSUS, fator que impactou na distribuição desses métodos contraceptivos no país.
A realidade global não foi muito diferente, já que cerca de 12 milhões de mulheres em 115 países perderam o acesso aos serviços contraceptivos durante a pandemia, resultando em quase 1,5 milhão de gravidezes indesejadas, de acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Segundo o órgão, uma razão para isso é a sobrecarga nos sistemas de saúde globais, que foram forçados a desviar recursos dos serviços de saúde reprodutiva, além das restrições impostas pelo coronavírus e do consequente medo das mulheres de se deslocarem até as unidades para obter os contraceptivos.
Em um dos maiores hospitais universitários do Brasil, os desafios trazidos pela chegada da covid-19 foram perceptíveis. A ginecologista Fernanda Schier conta que havia um ambulatório de reprodução humana no Hospital de Clínicas da UFPR, em Curitiba, mas o espaço foi fechado durante a pandemia e não houve inserção de DIUs ambulatorialmente por mais de um ano. Segundo a médica, as unidades de saúde também poderiam realizar o procedimento, porém, a maioria delas concentrou-se no tratamento de problemas respiratórios no período.
Quando se iniciou a retomada das atividades, após a queda no número de infecções pelo coronavírus, as pacientes que queriam inserir o DIU com sedação não tiveram a oportunidade, mesmo tendo convênio ou disponibilidade para pagar pelo procedimento. “Isso ocorreu porque os locais que realizam a implantação com sedação foram proibidos de utilizar os anestésicos, já que eles ficaram em falta devido às entubações por conta da covid-19”, revela a ginecologista.
Além desse problema, houve dificuldade no controle dos métodos contraceptivos que já haviam sido implantados. O DIU de cobre, disponibilizado pelo SUS, por exemplo, precisa estar bem posicionado no fundo do útero: caso contrário, explica a profissional, não funciona. “É preciso fazer a avaliação. Na pandemia tivemos dificuldade para realizar esses controles. Muitas pessoas não conseguiram acesso”.
Para a especialista em saúde coletiva e secretária executiva nacional da Rede Feminista de Saúde (RFS), Ligia Cardieri, essas dificuldades de acesso à contracepção também evidenciam um problema estrutural de desigualdade social.
Além disso, os desafios que prejudicaram o acesso aos métodos contraceptivos durante a pandemia, principalmente pelo SUS, impactam negativamente a garantia dos direitos reprodutivos – que, segundo a definição do Ministério da Saúde, são os direitos de as pessoas escolherem, de maneira livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos e em que momento de suas vidas.
Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos é, inclusive, um dos pontos elencados no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 da ONU, que envolve a conquista da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas. “Isso deveria ser, na prática, uma questão de escolha e não uma imposição às mulheres. É um direito fundamental”, reforça Ligia Cardieri.
Você pode conferir quais são as etapas de aplicação do DIU pelo SUS na reportagem a seguir, produzida por Marina Anater e Chananda Lipszyc Buss.
Em um cenário no qual o Estado não consegue garantir de forma plena o acesso a métodos contraceptivos, surgem iniciativas para tentar amenizar esse problema. É o caso do Saúde das Manas, criado pelo Fundo de População da ONU e o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems/PA).
O projeto nasceu com o objetivo de fortalecer o sistema de saúde local e atender mais de 80 mil mulheres em idade reprodutiva residentes em sete municípios do Arquipélago do Marajó (PA), apoiando a promoção e a continuidade dos serviços de saúde sexual e reprodutiva durante a pandemia. Isso inclui, por exemplo, a distribuição de métodos contraceptivos para mulheres que não podem se deslocar para adquiri-los. Trata-se de uma dentre as muitas iniciativas de entidades que buscam solucionar problemas que o Estado não enfrenta de maneira completa, como explica Ricardo Vanzin Silveira no artigo Constituição jurídica das organizações não-governamentais.
No que diz respeito às políticas públicas de garantia dos direitos reprodutivos, um dos grandes avanços no Brasil, segundo Ligia Cardieri, foi a Lei do Planejamento Familiar (Lei 9.263) de 1996, que define o direito do casal, do homem e da mulher de saber quais são os métodos contraceptivos e escolhê-los. Porém, na realidade, além de não terem acesso a esses métodos, muitas pessoas sequer conhecem a existência de alguns deles. A cabeleireira e tatuadora Jéssica Binotti, por exemplo, não sabia que o SUS oferecia a implantação do DIU e só descobriu ao conversar com uma amiga. Há, portanto, falta de informações sobre todos os serviços que são disponibilizados pela rede pública de saúde.
Os atuais representantes políticos não têm incluído tais problemas como prioridades em suas agendas. “Nesses últimos quatro anos, o governo tem nos dado sustos todas as horas. Há muito desrespeito com as mulheres, dificultando direitos já garantidos, como a proteção contra a violência sexual”, afirma Cardieri.
Ela reforça a importância de algumas ações pontuais e práticas, como retirar a necessidade de autorização do cônjuge para a realização da laqueadura e reduzir a idade mínima. A proposta foi aprovada pela Câmara dos Deputados, mas ainda precisa do aval do Senado para ser implementada.
Além disso, a especialista defende a disponibilização, no SUS, do Implanon, um implante anticoncepcional que serve como uma alternativa às pacientes com restrição ao estrogênio – hormônio presente em algumas pílulas anticoncepcionais – ou ao DIU. “Acho que é uma reivindicação nossa [das mulheres] que ele seja disponibilizado, ainda que isso seja feito por etapas. Porque o SUS não tem condição hoje de bancar tudo. E, aos poucos, vai se testando e fazendo melhores análises”, afirma.
Você pode conferir mais detalhes sobre o acesso aos direitos reprodutivos no Brasil no podcast produzido por Raíssa Trevisan.
A série de reportagens Brasil Insustentável foi produzida durante o primeiro semestre letivo de 2022 nas disciplinas Laboratório de Jornalismo II – web e impresso (Hendryo André), Laboratório de Radiojornalismo I (Rosângela Stringari), Laboratório de Telejornalismo I (Vinicius Carrasco) e Laboratório Multimídia de Jornalismo II (Criselli Montipó).
PAUTA
LARA MAOSKI
MARIA EDUARDA VELOSO
TEXTO
CHANANDA LIPSZYC BUSS
REPORTAGEM EM VÍDEO
MARINA ANATER
CHANANDA LIPSZYC BUSS
REPORTAGEM EM ÁUDIO
RAISSA TREVISAN
EDIÇÃO FINAL
ISABELA STANGA
ISADHORA SANTA CLARA
BRUNA EDUARDA RUDNICK
VITOR HUGO BATISTA