Brasil Insustentável
Confira outras reportagens da série Brasil Insustentável, que aborda o papel do poder público e desafios para o Brasil a partir de 2023
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O primeiro caso do novo coronavírus no Brasil foi confirmado pelo Ministério da Saúde no dia 26 de fevereiro de 2020, quando um homem de 61 anos, recém-chegado de uma viagem da Itália, foi internado em São Paulo. Em 12 de março, um dia depois da Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar pandemia da covid-19, ocorreu a primeira morte decorrente da doença no país: Rosana Aparecida Urbano, uma diarista de 57 anos.
Apesar de os índices de internação e de mortes estarem em queda por causa das vacinas, especialistas apontam que a covid-19 se destaca das outras doenças por não ter um começo, um meio e um fim definidos. Cada indivíduo reage de maneira diferente ao vírus, apresentando diferenças desde a manifestação dos sintomas até o processo de recuperação.
A assistente administrativa Ana Julia Brasil Fraiz, de 21 anos, se contaminou com o vírus da covid-19 no começo de 2022, e conta que não teve sintomas durante o período de infecção. Teve problemas apenas depois. Ela ainda comenta que faltam informações sobre o que acontece depois da recuperação. “Todo mundo pensa que a covid-19 é como uma gripe, mas ninguém fala sobre esses problemas que vêm depois”, relata.
O pós-covid pode ser pior do que os dias de infecção pelo vírus. A designer Victoria Ribeiro Soares da Rocha, de 22 anos, passou por momentos complicados no começo deste ano. Em janeiro, a jovem contraiu covid-19. Os sintomas foram aqueles amplamente conhecidos e que se confundem com o de um resfriado comum: febre e tosse. No entanto, Victoria teve um agravamento de faringite bacteriana, o que impossibilitou a ingestão de alimentos sólidos.
Após alguns dias do diagnóstico, a designer imaginou que tudo voltaria ao normal e que o pior havia passado. O que aconteceu foi o contrário: passou a ir frequentemente ao hospital, começou a ter dificuldades para respirar e para sentir o gosto dos alimentos.
Victoria descobriu que a doença a havia prejudicado mais do que imaginava. O pulmão esquerdo não estava funcionando da mesma forma que o direito e as células pulmonares ficaram sensíveis. Tudo isso fez com que a vida da jovem fosse alterada. A bombinha de ar passou a fazer parte dos objetos que a acompanham no dia a dia e viagens para o hospital tornaram-se parte da rotina.
Além das mudanças físicas, a designer passou por alterações no modo de enxergar a doença. Mesmo com a liberação do uso de máscara em locais abertos e fechados em Curitiba e a diminuição no número de internações e mortes pela doença, a jovem intensificou as restrições de convívio social devido à sensibilidade do pulmão. Ela destaca que a vida passou a ser vista de uma outra forma: “Você começa a enxergar um dia de cada vez, entender que a vida não é o amanhã, mas o agora”, conta.
Já Mariane Aurélia da Rocha, de 32 anos, é professora e teve covid-19 duas vezes, a primeira em fevereiro de 2021 e a última em janeiro deste ano. Assim como Victoria, Mariane também teve falta de ar e fadiga. A situação foi mais grave durante a infecção: a profissional precisou ficar internada por 12 dias no hospital devido à baixa saturação. Na segunda vez que teve a doença não apresentou sintomas.
O cansaço e a dor de cabeça persistente se tornaram parte do cotidiano. A professora conta que antes de contrair o vírus era uma pessoa ativa, que fazia exercícios todos os dias, mas que agora isso mudou.
A dificuldade no processo de aprendizagem também foi um problema que notou. A professora, que também é estudante do curso de Matemática da Universidade Federal do Paraná (UFPR), relata que demora mais para aprender e que a rotina agitada de trabalhar e estudar se tornou difícil: “Agora tenho que ir trabalhar durante o dia, e ir para a faculdade à noite e tem sido muito cansativo. Eu vejo que não tenho a mesma disposição de antes”, conta.
Tanto Victoria quanto Mariane têm outra coisa em comum: ambas acreditam que as sequelas da covid-19 não são tão amplamente divulgadas pela mídia. A designer comenta que há a ilusão de que a doença tem um começo, um meio e fim, o que, na realidade, não é bem assim. “Muita gente tem a ilusão, eu também tive, de que depois que você tem aquela primeira fase da doença você está curada, mas às vezes é pior”, conta Victoria.
Mariane, assim como a designer, acredita que as pessoas estão perdendo o medo do vírus, o que pode ser prejudicial. “Eu vejo que hoje as pessoas estão lidando como se fosse uma ‘gripezinha’, mas mesmo que peguem e não morram podem ter sequelas. Faz um ano e dois meses que peguei e ainda tenho”, afirma a professora.
Para algumas pessoas, os problemas trazidos pela covid-19 não terminam após o tempo estimado de recuperação. Em alguns casos, os sintomas podem se estender por dias, semanas e até mesmo meses. De acordo com um estudo feito pela Universidade de São Paulo (USP), 60% dos pacientes que contraíram o novo coronavírus apresentavam algum tipo de sequela.
É importante que seja feita uma diferenciação entre o que se conhece como “pós-covid” (ou covid longa) e sequelas da covid. As sequelas se referem aos casos graves da doença. Nesse cenário, o paciente foi hospitalizado e desenvolveu complicações durante o processo de recuperação. Um exemplo disso são as lesões pulmonares que podem acontecer enquanto o indivíduo está infectado e que, em alguns casos, persistem por muito tempo.
O pós-covid, porém, funciona de forma diferente. Ele se refere à persistência de sintomas que surgiram durante o tempo de infecção ou que vieram depois dele. Tosse contínua, cansaço e dor de cabeça são exemplos de sintomas comuns no pós-covid.
A lista de sintomas para a covid longa é extensa e ainda está sendo atualizada. Insônia, dor de cabeça, tosse, fadiga, dor no peito e no estômago, perda de cabelo, alterações na pressão, dor de garganta, ansiedade, depressão, náusea, diarreia e febre são apenas alguns deles.
Segundo a professora de infectologia da UFPR Sonia Mara Raboni, só se chegou a um certo consenso do que configura um quadro de covid longa recentemente. De acordo com ela, a persistência dos sintomas por mais de quatro semanas pode ser considerada uma situação de alongamento da doença.
A especialista ressalta que a persistência dos sintomas é mais frequente em mulheres acima dos 40 anos. No caso das sequelas, homens acima dos 70 anos são mais propensos a desenvolvê-las, visto que o grupo de risco tem mais chances de chegar ao estado grave da doença.
Para a pneumologista do ambulatório pós-covid do Hospital de Clínicas (HCH-UFPR), Lêda Rabelo, os quadros clínicos mudam junto com a prevalência das variantes do vírus. “Todas as variantes têm características clínicas próprias. Eu, observando casos desde março de 2020, percebo que quando a prevalência da variante mudava a manifestação clínica era alterada”, afirma.
Os casos de persistência de sintomas como fadiga, dor de cabeça e dificuldade para respirar já eram bastante abordados de forma geral. Mais recentemente, novas descobertas têm sido feitas sobre os efeitos neurológicos do vírus no organismo. De acordo com Raboni, publicações atuais mostram que a doença afeta o sistema nervoso central. “Parece haver lesões na barreira hematoencefálica, que separa o cérebro do resto do organismo. Sempre que há o risco de lesionar essa barreira é possível que haja manifestações neurológicas”, explica.
De acordo com uma pesquisa publicada pela revista internacional Nature, há alterações cerebrais em pacientes que tiveram a covid-19. O estudo foi feito a partir de informações de 785 participantes adultos, entre 51 e 81 anos, que atenderam aos critérios de avaliação. Dentre os resultados obtidos, observou-se a perda de massa cinzenta, prejuízos na região responsável pelo olfato e redução do tamanho global do cérebro. A pesquisa ainda mostra que 80% dos pacientes que tiveram o caso grave da doença tinham uma incidência maior de sintomas neurológicos.
De acordo com dados da OMS, de março de 2022, a pandemia fez aumentar em mais de 25% os casos de ansiedade e depressão ao redor do mundo. Segundo a pesquisa, crianças e mulheres têm sido os mais afetados.
O isolamento social, problemas econômicos e o medo da perda são alguns dos fatores relacionados ao problema. Porém, no caso de pessoas que tiveram a doença, há a chance de que o vírus possa ter sido o responsável pelo surgimento ou agravamento do quadro de depressão e ansiedade.
Lêda Rabelo afirma que os problemas neurológicos são os de maior impacto em pacientes que foram infectados pelo vírus: “Grande parte das queixas estão relacionadas ao sistema nervoso central, que são: maior incidência de ansiedade e depressão, alterações do sono e alterações cognitivas”, destaca.
A psicanalista Vânia Cazzo, de 44 anos, teve a doença três vezes. Dentre os problemas como perda de olfato e paladar, ela relata que teve dificuldades para realizar hábitos comuns, como a leitura: “Minha parte neurológica está mais lenta, principalmente quando vou ler. Textos que eu lia rapidinho, agora, para seguir o raciocínio, preciso dar uma parada e ler de novo”, destaca.
A psicóloga Camille Saraiva conta que tem percebido uma grande demanda de pacientes com ansiedade e depressão: “Parece que as pessoas precisam muito mais conversar, com uma certa urgência. Há muito mais pessoas com ideias suicidas, de que não é porque acabou o isolamento que todos os problemas foram resolvidos”, conta.
A pesquisa da OMS ainda destaca que o grupo das mulheres foi um dos mais afetados pela pandemia no quesito de saúde mental. Saraiva, que trabalha atendendo mulheres vítimas de violência, conta que houve um aumento considerável na procura por atendimento por parte desse público: “Não só de violência física, mas mental e sexual também. Nós já atendemos muitos casos antes da pandemia, mas durante esse período tem crescido bastante”, diz
Mais informações sobre o impacto das sequelas da covid-19 na saúde mental podem ser encontradas no episódio a seguir do programa Sã e Salvo, produzido pela repórter Izabela Morvan, que contou com a participação de Lêda Rabelo e Sonia Mara Raboni:
Com o início da pandemia em 2020, o governo precisou pensar em políticas públicas para a diminuição do contágio e atendimento dos infectados. Medidas para tratar as sequelas da covid e a covid longa, porém, não foram tão amplamente divulgadas.
Uma das ações pensadas para esse grupo se encontra no Projeto de Lei nº 5.026, de 2020, do deputado Célio Silveira (PSDB-GO). A proposta foi a primeira a discutir assistência aos pacientes prejudicados pela covid-19 mesmo após a alta hospitalar. Na justificativa, o documento afirma que a ocorrência de sequelas, principalmente as neurológicas, é comum.
Incorporado a tal proposta, o Projeto de Lei 1.487, de 2021, do deputado Altineu Côrtes (PL-RJ), visa alterar a lei 8.742, de dezembro de 1993, incluindo pessoas com sequelas da covid-19 ao grupo que teria acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), garantido hoje a pessoas idosas e deficientes. Dessa forma, seriam estabelecidos novos protocolos de atendimento elaborados com base em evidências científicas, assim como novos programas de assistência à saúde.
Outro apensado à proposta de 2020 é o Projeto de Lei, Nº 2.369, do deputado Nivaldo Albuquerque (Republicanos-AL), que versa sobre a criação de um programa de tratamento para pacientes com síndrome de covid longa e ainda prevê estímulo a pesquisas sobre o pós-covid.
Por fim, o Projeto de Lei Nº 901, de 2021, do deputado federal Zeca Dirceu (PT), também anexado à proposta inicial, propõe a reabilitação de pessoas que possuem sequelas decorrentes da covid-19, assim como o acesso a medicamentos necessários para o tratamento.
Além do atendimento ao público, o projeto auxilia no fornecimento de dados quantitativos ao Ministério da Saúde como forma de regulação. Na justificativa da proposta, é reconhecido o caráter multissistêmico que o vírus apresenta, o que pode ocasionar no prejuízo de diversas funções corporais. A PL destaca, ainda, os diversos problemas que a doença acarreta e a necessidade de maiores investimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) para tratar da questão.
Zeca Dirceu defende que é de responsabilidade do Estado oferecer medidas de combate às sequelas da covid. “É obrigação do governo federal criar políticas públicas nacionais para tratar de doenças que existam ou que surjam”, declara. O projeto, assim como os apensados, estão em tramitação e aguardam votação na Comissão de Seguridade Social e Família com parecer favorável.
No Hospital Angelina Caron (HAC), localizado em Campina Grande do Sul, na Região Metropolitana de Curitiba, há um atendimento especializado voltado para pessoas que tiveram complicações da covid-19. O plano terapêutico trabalha de forma multidisciplinar, uma vez que os efeitos do vírus no corpo atingem os mais variados órgãos.
O programa funciona desde o final de 2021, e abriu recentemente 300 vagas para o tratamento de reabilitação. São 20 sessões de terapia com até 22 consultas gratuitas, e oferece atendimentos nas áreas de Fisiatria, Neurologia, Ortopedia, Cirurgia Torácica, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional, Fisioterapia, Enfermagem, Educação Física e Assistência Social. Para iniciar o tratamento, o paciente passa por uma triagem, para avaliar quais os tratamentos necessários.
A médica coordenadora do programa, Chiara Crema, destaca que a abordagem do centro de reabilitação está ligada a uma série de complexidades. “Nós tentamos sempre alcançar a máxima funcionalidade do indivíduo de acordo com a situação dele. Por isso, temos que realizar uma abordagem ampla que pode acarretar em diversas estratégias para conseguirmos ajudar aquela pessoa”, conta.
A covid e os problemas acarretados por ela atingem diretamente os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) dentro não só do cenário brasileiro, mas mundial. O mais afetado é o terceiro, relacionado à saúde e bem-estar. A pandemia, bem como as consequências dela se apresentam como um novo desafio a ser vencido e uma nova preocupação para o poder público. Dentre os pontos levantados dentro o objetivo, o oitavo se destaca:
Como demonstrado pelo recente estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 50,2% das pessoas diagnosticadas com covid-19 apresentaram a síndrome da covid longa. Segundo a pesquisa, mesmo as sequelas consideradas leves podem interferir na qualidade de vida da população. Esses índices indicam que a covid-19 é um problema que deve perdurar ainda por tempo indeterminado. Dessa forma, os interesses das forças públicas, alinhados às iniciativas de pesquisadores da área da saúde têm se mostrado o melhor caminho para tratá-lo.
A série de reportagens Brasil Insustentável foi produzida durante o primeiro semestre letivo de 2022 nas disciplinas Laboratório de Jornalismo II – web e impresso (Hendryo André), Laboratório de Radiojornalismo I (Rosângela Stringari), Laboratório de Telejornalismo I (Vinicius Carrasco) e Laboratório Multimídia de Jornalismo II (Criselli Montipó).
PAUTA
CATHERINE GREIN
EDUARDO MAGALHÃES
LETICIA BARBOSA RIBEIRO
REPORTAGEM EM ÁUDIO
IZABELA MORVAN
TEXTO
THIAGO FEDACZ
EDIÇÃO FINAL
KASSIA CALONASSI
GABRIEL TASSI LARA
BRENO ANTUNES
VITOR HUGO BATISTA