Brasil Insustentável
Confira outras reportagens da série Brasil Insustentável, que aborda o papel do poder público e desafios para o Brasil a partir de 2023
Confira outras reportagens da série Brasil Insustentável, que aborda o papel do poder público e desafios para o Brasil a partir de 2023
Luciana Maciel atuava como assessora executiva em uma empresa privada de Curitiba quando o Ministério da Saúde regulamentou os critérios de isolamento e quarentena devido à declaração de pandemia de covid-19. Dois meses depois do início das medidas de enfrentamento contra a doença, Luciana foi demitida e teve de retirar a filha, de seis anos, da escola privada onde estudava.
Embora tenham se passado pouco mais de dois anos desde que a pandemia do novo coronavírus foi declarada – doença que já infectou 515 milhões de pessoas e matou mais de 6,2 milhões em todo o mundo, segundo dados do Our World In Data – ainda é possível se deparar com os efeitos provocados pela doença. O setor da educação, por exemplo, que está atrelado à economia, foi diretamente afetado pelo desemprego e por dificuldades em relação ao ensino remoto.
As instituições de educação básica, formada por três grandes etapas – educação infantil, ensino fundamental e médio –, passaram a enfrentar uma sobrecarga em um momento complexo. A corrida de pais e tutores para matricular os filhos em instituições públicas devido à crise econômica causada pela covid-19 se assemelha, de alguma forma, ao desespero dos consumidores que foram às para fazer estoque de alimentos quando a pandemia foi declarada. A situação gerou preocupações.
A ida de alunos de escolas particulares para a rede pública ficou evidente nos últimos dois anos. O fator que mais contribuiu para esse cenário foi o desemprego, situação vivenciada de perto por Luciana Maciel. Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o índice de população ocupada (indivíduos que trabalham pelo menos uma hora completa remunerada ao dia), que atingiu 94,5 milhões de brasileiros em janeiro de 2020, teve uma queda de 15% no primeiro trimestre da pandemia.
O desemprego foi apontado como uma das principais causas do fechamento em massa de creches privadas nos últimos dois anos, o que sobrecarregou o já exaurido ensino público, mais especificamente as instituições que comportam estudantes com idades entre zero e nove anos.
De acordo com o Censo Escolar realizado pelo Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa (Inep), divulgado em janeiro de 2022, o Brasil perdeu mais de 2,5 mil unidades destas instituições entre 2020 e 2021, período de auge da pandemia do novo coronavírus. Tal cenário provocou uma redução de 9% no total de crianças matriculadas nas creches e 6% nas pré-escolas.
Segundo a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), creches são destinadas a crianças de zero a três anos de idade, e as pré-escolas para o público com idade entre quatro e seis anos.
Apesar da queda do percentual de matrículas realizadas, a rede pública paranaense de ensino continua recebendo o maior número de crianças. Segundo o Inep, em 2021 o índice de matrículas efetuadas na educação infantil em instituições públicas e estaduais alcançou 82,1%.
A reportagem a seguir, produzida pelas repórteres Deyse Carvalho e Luiza Mattos, expõe dados sobre o cenário alarmante que tem preocupado pais e professores ao longo dos últimos dois anos.
Apontado como um dos principais efeitos do fechamento das instituições de ensino privadas no país, o desemprego será um obstáculo entre os desafios para os governantes até 2026. O Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV IBRE), por exemplo, projeta que a insatisfação da população em relação às altas taxas de desempregos enfrentadas nos últimos dois anos de pandemia e nos próximos anos deve acompanhar o mandato presidencial.
O aumento na taxa de desemprego no país, que recuou de 11,4% para 9,3%, de acordo com dados coletados nos dois últimos trimestres pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é resultado das demissões em massa que aconteceram no auge da pandemia e continuam ocorrendo, embora o indicativo tenha sofrido uma estabilidade nos primeiros três meses do ano frente ao trimestre anterior, segundo dados do Pnad Contínua.
Segundo um levantamento feito pela consultoria IDados, a partir de números coletados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua de 2021, o número de brasileiros demitidos por hora foi de 1,4 mil.
Luciana Maciel faz parte desta estimativa, já que foi demitida logo no início da pandemia. De acordo com ela, a justificativa para a demissão foi “por integrar o grupo de empregados da empresa há menos tempo”. Responsável por uma criança matriculada em uma escola privada, a assessora precisou repensar a rotina dela e da filha.
Devido à formação em administração, Luciana conta que conseguiu permanecer em casa e manter sua filha na mesma instituição por um certo período. “Sempre fui muito regrada na minha gestão financeira e pude manter uma reserva financeira que permitiu eu me dedicar por um ano e meio na educação da minha filha, ajudando-a no ensino remoto”, afirma a executiva.
A mãe ainda relata que, mesmo recebendo ofertas de emprego, preferiu acompanhar de perto o desenvolvimento escolar de sua filha, também motivada pela incerteza que a pandemia instaurou.
A situação incomum da administradora que, diferente da maioria dos pais, pôde acompanhar de perto a escolarização da filha em formato remoto a permitiu conhecer melhor o dia a dia da sala de aula das instituições privadas.
Após cerca de um ano e meio acompanhando o ensino da filha, Luciana foi admitida em uma nova empresa e decidiu, apesar de ter encontrado um novo emprego, transferir sua filha de uma instituição privada para uma pública. De acordo com ela, tudo foi analisado antes de a decisão ser tomada. A principal preocupação da administradora era encontrar uma escola onde as condições se assemelhassem às já conhecidas por sua filha.
“Mapeei as escolas perto da minha casa e fui ver o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica de cada uma. Procurei conhecer a estrutura física da escola e ouvi a comunidade. Eu sabia que teria mudanças, mas busquei minimizá-las em relação ao ambiente”, conta.
Após a pesquisa, ela matriculou sua filha na Escola Municipal Ricardo Krieger, localizada no bairro Boa Vista, em Curitiba. A instituição, segundo a administração municipal, possui turmas de educação infantil e ensino fundamental. Além disso, oferece aulas de informática voltada à pesquisa e desenvolvimento de habilidades por meio de softwares pedagógicos. A escola ainda conta com dez salas de aula e espaços exclusivos para aulas de arte e ciências, além de laboratório de informática e quadra coberta.
Com em média 25 alunos por sala de aula, contrastando com os oito alunos em sua antiga escola, a rotina de estudos da filha de Luciana mudou drasticamente. A menina passou a fazer parte do supergrupo com mais de 140 mil alunos atendidos pelas 415 unidades de ensino da rede municipal de Curitiba.
A transição entre as instituições de ensino não foi uma experiência vivenciada somente por Luciana e sua filha. A mãe aponta que, no círculo social dela, a pandemia afetou principalmente os pais divorciados, que tiveram de transferir os filhos para a rede pública. A evasão dificultou a formação de turmas da antiga escola de sua filha, que neste ano não conseguiu oferecer a turma do 3º ano do ensino fundamental.
A nova realidade da filha da executiva trouxe uma nova perspectiva para o crescimento da menina, que atualmente está no 3º ano do Ensino Fundamental I. “É algo positivo porque ela vê que não vive numa bolha. Ela consegue transitar num mundo de crianças com muito dinheiro e crianças mais simples. Eu faço questão de deixar minha filha ciente desses lados para que ela não cresça com uma mentalidade única”, explica Luciana.
Mesmo com a experiência positiva de sua filha em uma nova escola, Luciana não pretende manter a menina na rede pública após o término do Ensino Fundamental I. Ela afirma que pretende transferir a menina para a rede privada novamente devido à sobrecarga nas instituições públicas.
A migração de alunos das escolas particulares para as instituições de ensino público pesou ainda mais no segundo ambiente, que é um sistema que já se via sobrecarregado. Durante a pandemia, o ensino remoto nas instituições públicas foi realizado por meio da combinação de aulas televisionadas e atividades disponibilizadas nas escolas periodicamente.
As aulas da TV Escola Curitiba foram ofertadas nos canais 9.2 e 4.2 da TV aberta. Os materiais complementares eram preparados em parceria com os professores de cada unidade de ensino com os Núcleos Regionais de Educação. Os pais e responsáveis tinham acesso às atividades a cada quinze dias e as buscavam nas próprias escolas.
Durante certo tempo, essa foi a rotina de João Lucas, de 7 anos. Segundo a mãe do menino, a contadora Nataly Brito, os conteúdos ofertados pelo CMEI (Centro Municipal de Educação Infantil) em que ele estava matriculado “não acompanhavam o currículo esperado para sua série”.
Após a conclusão do ensino pré-escolar, os pais de João o transferiram para uma escola da rede privada, onde afirmam ter notado diferenças em relação aos professores e aos alunos matriculados, além dos materiais disponibilizados aos estudantes. Tais diferenças, relata Nataly, ficaram mais evidentes no momento em que a irmã de João, a Maria Flor, de quatro anos, começou a estudar em uma escola da rede privada: “A Maria Flor não teve esse problema. O corpo da escola já estava mais preparado, e as crianças, mesmo pequenas, conseguiam prestar atenção na aula”.
Nataly e o marido, apesar de terem percorrido trajetórias diferentes durante a formação acadêmica, visto que ela estudou em escolas privadas e federais e ele, somente em instituições públicas, debateram sobre melhores opções em relação à educação dos filhos. A opção de manter os filhos em uma escola da rede pública, no entanto, logo foi descartada e ambos foram matriculados em um local privado. “A gente conseguiu patrocínio para os dois. Mas se não fosse o caso, iríamos procurar escolas particulares mais baratas que a que eles estudam hoje”, explica Nataly.
Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é garantir à população uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade, além de promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. Tal cenário exposto acima vai ao encontro de um dos ODS, que estima, até 2030, garantir que todas as meninas e todos os meninos tenham acesso a um desenvolvimento de qualidade na primeira infância, cuidados e educação pré-escolar, de modo que eles estejam prontos para o ensino primário. Diante dos dados apresentados, é possível afirmar que tal objetivo será cumprido até a data estipulada?
Os problemas encontrados pelos pais de João e Maria Flor no ensino público também são apontados e questionados por outros responsáveis. A diminuição no número de matrículas atrelada à sobrecarga do ensino básico, no entanto, tem movimentado pouco o poder público quando o assunto é encontrar soluções. Nos últimos dois anos, apenas um Projeto de Lei sobre o tema foi apresentado em 2021 ao Congresso Nacional. De autoria do deputado federal Neucimar Fraga (PSD-ES), o Projeto de Lei 1351/21 ainda tramita na Câmara de Deputados. Se sancionado pelo Presidente da República, irá modificar as responsabilidades entre estados e municípios em relação à educação pública descrita na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Pelo texto, os estados passarão a cuidar dos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano) e do ensino médio. Hoje, os estados priorizam o ensino médio, mas podem atuar em parceria com os municípios. Os municípios manterão, segundo o PL, a educação básica e os anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º ano).
Em relação à sobrecarga, o autor do projeto diz que o objetivo das mudanças é acabar com a pressão sobre os municípios no financiamento da educação pública. Durante a discussão, o parlamentar citou dados do Censo Escolar de 2020, que apontaram que a rede escolar municipal é formada por 107,9 mil escolas, contra 29,9 mil escolas da rede estadual.
“Os dados são claros em comprovar a significativa desigualdade na responsabilização da garantia da oferta da educação básica no Brasil, sobrecarregando os municípios”, disse Fraga.
Para saber mais sobre a situação da sobrecarga no município de Curitiba, confira a rádio-reportagem produzida pela repórter Camila Lima:
O projeto foi analisado pela Comissão de Educação e a relatora da proposta, a então deputada federal Bia Cavassa (PSD) votou contra o texto e argumentou que “o projeto em análise propõe uma radical mudança nas responsabilidades pela oferta da educação básica pública. A redivisão prevista implicaria, em curtíssimo prazo de três anos, se considerados os dados levantados pelo Censo da Educação Básica de 2020, a redistribuição, das redes estaduais para as municipais, de 1,7 milhões de matrículas nos anos iniciais do ensino fundamental e, das redes municipais para as estaduais, de 5,1 milhões de matrículas nos anos finais desse nível de ensino”.
A relatora também disse que tais modificações propostas pelo deputado resultariam em complexa realocação do corpo docente das instituições. De acordo com ela, em 2020, o país contava com 95 mil professores das redes estaduais atuando nos anos iniciais e 329 mil das redes municipais lecionando nos anos finais.
O projeto agora deve ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.
A série de reportagens Brasil Insustentável foi produzida durante o primeiro semestre letivo de 2022 nas disciplinas Laboratório de Jornalismo II – web e impresso (Hendryo André), Laboratório de Radiojornalismo I (Rosângela Stringari), Laboratório de Telejornalismo I (Vinicius Carrasco) e Laboratório Multimídia de Jornalismo II (Criselli Montipó).
PAUTA
CAMILA LIMA
GUILHERME LARA
TEXTO
DEYSE CARVALHO
REPORTAGEM EM VÍDEO
DEYSE CARVALHO
LUIZA MATTOS
REPORTAGEM EM ÁUDIO
CAMILA LIMA
EDIÇÃO FINAL
ANA CRISTINA GOMES DA SILVA
CAMILA LIMA
GUILHERME LARA
VITOR HUGO BATISTA