qua 24 abr 2024
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Histórias de Hiroshima: Porque nós não repetiremos esse mal

Em 2015, completa-se 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. No último domingo, o nosso grupo de intercambistas foi até Hiroshima, no Parque da Paz, conjunto de monumentos construídos e preservados para lembrar as vidas perdidas na Segunda Guerra Mundial.

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Antiga prefeitura de Hiroshima e quartel da cidade. Parte da estrutura do prédio resistiu ao impacto da bomba e foi preservado como parte do Memorial da Paz (Foto: Luiza Guimarães)

Hiroshima foi alvo da primeira bomba atômica da história da humanidade e esse ataque deixou rastros que permanecem até hoje. Visitamos o Museu da Paz, o Memorial das Crianças, a chama da Paz e o túmulo com as cinzas de mais de 70 mil mortos na explosão.

O Memorial das Crianças

Durante nossa estadia em Hiroshima, conhecemos muitas histórias de pessoas que sofreram com o ataque. A Bomba Atômica não afetou a vida apenas de quem estava na cidade naquele dia, afeta a rotina da cidade, que até hoje controla os níveis de radiação, e afeta a vida de crianças que nem sonhavam em nascer em 1945.

É o caso de Sadako, uma menina diagnosticada com leucemia cujos pais haviam sido vítimas da bomba e a doença veio em decorrência de mutações genéticas causadas pela radiação. Com fé na crença de que dobrar mil Tsurus (pássaros de papel dobrado por meio da técnica japonesa origami) faz um desejo se realizar, ela começou a dobrar os pássaros no hospital. Já havia passado dos mil há muito tempo quando percebeu que não iria melhorar.

Após sua morte, o Memorial das Crianças foi construído no Parque da Paz em sua homenagem e a todos os pequenos que perderam a vida por causa do ataque nuclear. Todos os dias, o Memorial recebe cordões com mil Tsurus de pessoas do mundo inteiro, que dobram os papéis sonhando com um mundo mais pacífico.

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Os mil tsurus que dobramos durante nossa viagem agora estão no Memorial das Crianças, junto a outros milhões. Todos os 26 membros do nosso grupo ajudaram nas dobraduras (Foto: Luiza Guimaraes)

Nosso grupo esteve dobrando Tsurus desde que saímos do Brasil. Dois dias antes da nossa viagem a Hiroshima atingimos os mil. Eles, agora, estão lá no Memorial das Crianças, com nossos votos de que a história de Sadako e de todas as outras crianças nunca mais se repita.

Sem ressentimentos

No mesmo dia conhecemos Yumi, uma senhora de 78 anos que sobreviveu à Bomba Atômica quando estava a caminho da escola. Yumi pediu para não ser identificada, já que sua família não sabe que ela dá palestras sobre o dia do ataque. Esse nome é fictício para que possamos nos referenciar a ela ao logo desta matéria.

Yumi nos contou que não só a sua família, mas muitas outras vítimas da bomba preferem não se identificar. “Ser uma vítima quer dizer que você pode desenvolver um câncer do nada, ou pior, que seus filhos não serão normais”, ela conta.

Hoje, o governo do Japão oferece assistência a todos aqueles que provem ser vítimas da Bomba de Hiroshima. Mas, em 1945, tocar no assunto era ter certeza de que seus filhos não arranjariam casamento. Os japoneses de Hiroshima que migraram para os Estados Unidos então não tinham nem direito a ter seguro de vida.

O ressentimento aos americanos permaneceu forte na cidade por muitos anos. Yumi afirma que só foi aprender a falar inglês depois que o marido morreu, vítima de uma doença misteriosa que lhe tirou a vida de uma hora para a outra, provavelmente alguma sequela da bomba. “Eu resolvi aprender inglês depois daquele dia. Porque eu quero contar minha história para as pessoas, eu acredito que se eu contar minha história em uma língua que muitos entendem vou estar lutando para que um ataque como aquele não se repita”, diz Yumi.

A palestra de Yumi foi exclusiva para nosso grupo e metade dos presentes na sala eram americanos. Depois de contar sua história, ela disse que não guarda mais ressentimentos dos Estados Unidos. “Meu objetivo é evitar que guerras, principalmente as guerras nucleares, jamais voltem a acontecer e o primeiro passo para isso é seguir em frente”, afirma.

A história de Yumi

Durante a palestra, Yumi compartilhou conosco algumas de suas memórias. Confira agora o ponto de vista de uma garota de 8 anos que estava a cerca de 2,6 KM do epicentro da Bomba de Hiroshima, que explodiu a 600 m do chão em cima de um hospital no centro da cidade.

Yumi tinha oito anos e estava a caminho da escola em uma manhã de verão ensolarada como outra qualquer. Seu irmão, que estudava no segundo ano do Ensino Médio já havia saído cedo para o trabalho junto com os outros estudantes. Em época de guerra não havia quem trabalhasse nas fábricas e construções, então as escolas eram obrigadas a ceder seus alunos.

O irmão de Yumi saía cedo de casa porque seu campo de construção era bem longe, do outro lado das montanhas. Ele havia sido transferido do centro de Hiroshima para um vilarejo próximo no início do verão, quando passara do primeiro para o segundo ano.

Yumi caminhava para o colégio ainda lembrando das palavras de despedida do pai: “filha, porque você não fica em casa hoje? Estou com medo de que vá te acontecer alguma coisa na escola”. A menina se desculpou com o pai, mas precisava ir. Estavam todos sonolentos, é verdade, da noite anterior. Os aviões de guerra americanos sobrevoaram a cidade a noite inteira e o alarme para correr para os abrigos soara de tempo em tempo, impedindo todo mundo de ter uma noite tranquila. Mas o bombardeio que todos esperavam não chegara.

Por que Hiroshima fora a única cidade poupada? Todas as suas vizinhas haviam sido destruídas. A guerra já estava quase no fim e o Japão praticamente derrotado. Uma das poucas bases militares que ainda restava estava em Hiroshima, mesmo que bem enfraquecida. Não fazia sentido.

Foi então que, aproximadamente 8:15 da manhã, Yumi viu um clarão que lhe chegou os olhos e foi atingida por uma rajada de vento tão forte que derrubou a menina no chão, desacordada.

“A próxima coisa que eu lembro é de ter acordado desorientada. Olhei em volta e estava como se fosse fim da tarde. Esquisito. Ainda era de manhã. A rua estava coberta por uma poeira branca, as casas e o chão estavam todos incrustados com pequenos cacos de vidro. Eu era criança, não entendia o que tinha acontecido e pensei: que lindo! Vou contar para a minha mãe”.

Yumi resolveu caminhar de volta para a casa, mas mal deu o primeiro passo e a construção de madeira mais próxima entrou em combustão, logo em seguida, todas as outras começaram a pegar fogo espontaneamente.

“Fiquei com medo. Não entendia o que estava acontecendo e fui procurar alguém para me ajudar, sempre caminhando em direção a minha casa. Foi aí que vi as pessoas-fantasma”.

Eram vultos que se arrastavam na poeira, com as roupas, pele e cabelo pegando fogo ou chamuscado. Elas falavam algo sobre uma bomba e imploravam por água. “Um homem veio até mim e me pediu: por favor, estou morrendo de sede, me dê água”, ela conta. “Eu queria ajudar então fui correndo até um poço e peguei um pouco da água para dar a ele. Eu não sabia que não podia dar água”.

O homem vomitou imediatamente, se contorceu e morreu. Yumi pensou que a água do poço estivesse envenenada. “Ele agradeceu a minha ajuda antes de beber. E depois morreu. Só fui descobrir que não podia ter dado água para ele no dia seguinte, quando meu pai reuniu todo mundo na sala de casa e disse: vocês sabem que não pode dar água para os homens-fantasma, certo? Meus irmão sabiam, era óbvio. Eu respondi que sim, também sabia. Nunca contei para a minha família que eu dei água para aquele homem. Fiquei me sentindo tão culpada que tive pesadelos todas as noites até meus quarenta anos, quando aprendi a falar inglês e contei para uma amiga americana. Só contei para ela porque meu pai não fala inglês e não poderia entender se ela dissesse alguma coisa”.

A família de Yumi foi uma das poucas poupadas pela Bomba de Hiroshima. Os únicos que estavam fora de casa na hora do ataque eram ela e seu irmão mais velho, que viu o avião soltando uma única bomba aparentemente como outra qualquer, a caminho do seu campo de trabalho. Se o ataque tivesse acontecido um mês antes, ele teria sido um dos milhares de estudantes que morreram no centro de Hiroshima.

“Minha mãe não acreditou que aquele estrago todo fora provocado por uma única bomba. Ela achou que o bombardeio tinha sido ali do lado de casa. Mas meu irmão disse: foi uma bomba. E foi bem longe daqui, por isso estamos todos salvos”.

Era a primeira vez que uma bomba desse tipo fora utilizada e as consequências são visíveis até hoje.

Na época, ninguém sabia dos perigos da radiação, então muitos sobreviventes que estavam fora da cidade na hora do ataque, entraram em Hiroshima mais tarde em busca de parentes e amigos perdidos. Mulheres grávidas, bebês de colo, agricultores e voluntários para cremar os corpos dos mortos eram maioria. “Quando eles voltaram para casa estavam doentes, com sede, com diarreia. Os bebês foram os primeiros a morrer. Bebês são muito frágeis”, conta Yumi.

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Parque da Paz em Hiroshima é um monumento que pede pelo fim das armas nucleares e pela paz mundial (Foto: Luiza Guimaraes)

Sem saber, essas pessoas se expuseram a altos níveis de radiação e a grande maioria morreu antes do final do ano.

Ao todo, cerca de 140 mil pessoas morreram em decorrência da Bomba de Hiroshima até dezembro de 1945. No túmulo com as cinzas das vítimas, uma mesma inscrição aparece em várias línguas: “Que todas as almas que aqui estão descansem em paz. Porque jamais repetiremos esse Mal”.

Quer saber tudo sobre o especial Janela para o Japão? Leia o texto de apresentação da coluna.

O segundo texto é sobre a tradição de usar Yukata em datas especiais.

 

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