Luísa Elena* (20) não acha mais que é culpada. Em uma época de sua vida, chegou a considerar que não era apenas vítima, mas alguém que, de alguma forma, pudesse ter gerado aquela situação. Sofreu violência sexual quando tinha 7 anos, por pessoas próximas a ela. O sentimento não podia ser pior. “Sentia-me suja, impura”, revela.
Ela conta que, após do ocorrido, passou por dois processos bem distintos em sua vida. O primeiro, de bastante resguardo e até invisibilidade. “Não queria chamar atenção”, conta. Depois, passou a querer se auto afirmar e se desenvolver como menina. Desejou muito a mudança e o reestabelecimento psicológico. “Se eu quero, eu consigo”, repetia sempre, como um mantra.

E é nessa força de vontade que acredita a psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba Denise Moreti. Ela afirma que, para amenizar os danos emocionais de uma mulher que sofreu violência sexual, é possível trabalhar essas questões através de atendimento psicológico especializado, como a terapia. “A mulher abusada sofreu um trauma. Para ter qualidade de vida e melhores condições em seus relacionamentos ela precisa ser acolhida e ouvida com respeito e dignidade”, sustenta Denise.
“Muitas mulheres se fecham, se escondem, tem vergonha de se abrir, mas é importante que o façam. Elas podem procurar ajuda na unidade de saúde mais próxima de suas casas”, acrescenta a psicóloga.
“Passo por cima disso todos os dias”, comenta Maria Olívia* (24), vítima de violência sexual aos 23. Ela afirma que a mulher que passou por esse tipo de violência convive com a questão diariamente e é levada a achar que se trata de algo normal. Para denominar esse cenário, há o termo “Cultura de Estupro”.
“A culpa deve ser da mulher, por se vestir de determinada forma ou se portar de um jeito específico”, diz Maria Olívia. Para ela, o maior exemplo dessa cultura do estupro, aconteceu enquanto registrava queixa do crime. “E o que você estava fazendo lá?”, foi a pergunta feita por um policial.
Sociedade da Casa Grande
Para o sociólogo e especialista em violência Pedro Bodê, a agressividade é uma prática de uma sociedade firmada na Casa Grande, que procura resolver seus conflitos a partir do uso da força. Hoje, esse comportamento violento está presente nas relações entre pais e filhos (castigo físico) e também entre maridos e mulheres, por exemplo.
No caso particular da violência sexual, de acordo com Bodê, trata-se de um costume que aponta para a impunidade: o violador é protegido e a mulher sente-se desamparada. Nesse cenário, a mulher que sofreu violência é transformada em possível algoz. Segundo ele, essa transformação é um fenômeno social baseado em uma sociedade machista e sexista. Há ainda um sentimento de vitimização, que é visto como errado.
“É a realização máxima da dominação masculina”, comenta o sociólogo. Apesar de tudo, mesmo sendo uma situação tétrica e tenebrosa, ele é esperançoso com relação a mudanças. “Questões que envolvem cultura e comportamento, como essa, não são mudadas a curto prazo, mas pautar esse assunto é muito importante. O debate precisa ser realizado e discutir não significa banalizar”, completa Bodê.

Reverter a situação
A fotógrafa e blogueira Cláudia Regina ajudou a expandir a discussão. O seu artigo “Como se sente uma mulher” tornou-se famoso na internet (mais de 600 mil visualizações em apenas dois dias) e ajudou a expandir o debate sobre o que ela chama de “sentimento feminino em situações de violência urbana”.
“Carros que passavam mais devagar do meu lado (…) eu só ouvia uma voz masculina: ‘gostosa!’ (…) Sei que para homens é difícil entender como isso pode ser violência. Nós mesmas, mulheres, nos acostumamos e deixamos pra lá. Nós nos acostumamos para conseguir viver o dia a dia.”
- Trecho do artigo “Como se sente uma mulher”, de Cláudia Regina
Ela comenta que a melhor forma de oprimir é fazer com que a própria vítima não perceba a opressão. Para Claúdia, deve-se ter cautela na hora de falar em “culpados”. A melhor designação não é essa, mas sim “responsáveis”. Apesar de tudo isso, ela acredita que é possível mudar esse cenário de violência. “Podemos reverter a situação: assim como ela foi criada por nós, ela pode ser ‘descriada’”, diz a blogueira.
Cláudia crê que a discussão não deve ser feita de forma desassociada de outros tipos de desigualdade e opressão, como a de gênero ou a racial, mas que devem vir juntas. “O debate nunca para. Meu texto sendo compartilhado no Facebook é só mais um pedacinho de luta dentre tudo o que os movimentos de minorias fazem em todos os meios de comunicação, políticos e sociais”, encerra.
*As fontes preferiram não se identificar.