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qui 10 abr 2025
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“Encantado” retorna aos palcos com a força da misticidade ancestral brasileira no Festival de Curitiba

Durante o espetáculo de Lia Rodrigues, mais de uma centena de cobertores coloridos ganham vida no Teatro Guaíra

“Encantado”, espetáculo parte da Mostra Lúcia Camargo, ganhou os palcos nos dias 1 e 2 de abril. A performance foi criada pela Lia Rodrigues Companhia de Dança para estrear na 50ª edição do Festival d’Automne, realizado em dezembro de 2021. Ao contrário de outros artistas convidados para os chamados retratos, obras que costumam revisitar a trajetória dos criadores, Rodrigues convidou 11 bailarinos do Centro de Artes da Maré, coletivo sediado em uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, para dar vida a “Encantado”. Não apenas uma resposta sensível ao cenário político brasileiro da época, o espetáculo é também uma celebração das experiências humanas, atravessadas pela misticidade e ancestralidade do sagrado brasileiro. 

A pele que se transforma

Dançarinos dão forma aos cobertores estendidos pelo palco. Foto: Lina Sumizono 

Os 140 cobertores foram comprados do Mercadão de Madureira, na Zona Norte do Rio, estampados com cores vibrantes, estampas variadas de flores, tigres e peles de onça. Os dançarinos os estendem pela extensão do palco e então logo deixam de ser cobertores. Tornam-se o solo que sofrem ondulações; transformam-se em animais. São extensão do corpo, são pele. “A gente entra nu para vestir aquela pele de cobertor e saímos desprendidos dessa viagem”, explica a dançarina Valentina Fittipaldi. Através da expressividade corporal dos bailarinos mareenses, os tecidos ganham movimento e simbolismo, transformando o palco em um espaço onde imagens, afetos e memórias dançam. 

Encantamento em meio à crise 

Cenas do espetáculo remontam rodas cerimoniais ritualísticas. Foto: Lina Sumizono

“Como tirar o ser humano do centro do mundo e reconhecer outras formas de vida?” — A pergunta, feita por Valentina, ecoa como ponto de partida para Encantado. Inspirada pelas cosmologias afro-indígenas, a obra evoca os “encantados” — entidades que transitam entre céu e terra, transformando paisagens naturais em territórios sagrados. Essas forças misteriosas, ancestralmente conectadas à natureza e hoje ameaçadas pelo avanço da devastação ambiental, são o fio condutor da criação. 

No palco, os bailarinos se metamorfoseiam em figuras híbridas ao som de cantos do povo Guarani Mbya, da aldeia Kalipety, localizada no território indígena Ténondé Porã. A trilha reforça o chamado ao encantamento em meio à crise planetária do contexto de criação da performance: em 2021, o cenário político brasileiro era marcado por uma escalada de ameaças aos direitos indígenas, impulsionada por ações e discursos do governo federal.  

Os cantos presentes na trilha foram entoados durante a Marcha dos Povos Indígenas contra o Marco Temporal, realizada em Brasília no ano de criação do espetáculo. Versos como “Caminhemos sem impedimentos / Vamos respeitar a força dos grandes Guarani Mbya / Fazer ouvir nosso canto” ecoam no palco como forma de resistência e afirmação cultural. 

A “serpente cósmica”, como referência a dançarina Valentina à corrente de cobertas que se forma ao longo do espetáculo, faz analogia também a ancestralidade indígena. Considerada simultaneamente deus e deusa da floresta segundo a cosmologia do povo Huni Kuina, a jiboia é um símbolo central nas práticas espirituais, rituais e danças dessa etnia amazônica. Não só a jiboia, como as demais imagens criadas em Encantado — corpos que emergem e desaparecem sob cobertores coloridos, paisagens que se transformam e gestos que oscilam entre o humano e o mítico — reforçam o diálogo com os saberes ancestrais e as cosmologias indígenas, que propõem outras formas de existência, para além da lógica ocidental e antropocêntrica.  

Ficha técnica

Repórter: Luiza Yasumoto

Edição Final: Alana Morzelli

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