Desde que Vladimir Putin anunciou a invasão militar na Ucrânia (24/02) com o objetivo de proteger as pessoas do “abuso e genocídio do regime de Kiev”, os dois países travam, além da luta armada, uma guerra paralela de narrativas. A declaração do presidente russo reforça uma guerra no campo da comunicação, que envolve táticas de desinformação e disputas na mídia.
Em discurso oficial, Putin criticou a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para o leste europeu, o que afetaria a segurança da Rússia, e os “crimes sangrentos” cometidos pelo governo ucraniano contra civis russos. Também chamou o bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos de “império de mentiras”.
No mesmo dia, o presidente norte-americano, Joe Biden, afirmou que as intenções do governo russo não se limitam à Ucrânia. “Putin quer reestabelecer a antiga União Soviética”, disse. Ao mesmo tempo, o mandatário ucraniano, Volodymyr Zelensky, fez um pronunciamento com tom emotivo, alertando que seu povo “irá se defender, não atacar”.
Guerra de narrativas
As falas dos líderes fazem parte de uma batalha de narrativas. Uma guerra paralela, que é amplificada pela desinformação no mundo digital. Segundo o professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, mestre em Ciência Política e doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Renan Colombo, a desinformação não é um fenômeno novo. Mentiras sempre estiveram presentes na história, inclusive em cenários de conflito.
Durante a Guerra Fria, ele cita, havia uma disputa de desinformação em massa entre Estados Unidos e União Soviética. Os soviéticos, por exemplo, chegaram a difundir nessa época a teoria conspiratória de que os americanos criaram o vírus HIV para matar negros e homossexuais. Já os americanos, sob o macartismo, viviam o período do “medo vermelho”. A propaganda anticomunista mostrava mitos de uma União Soviética obsoleta, improdutiva, com altos índices de suicídio e que, ao mesmo tempo, controlava até a mente da população.
“O que é novo é a capacidade de disseminação que as redes sociais trouxeram. Se a Guerra Fria tivesse sido disputada em um contexto digital, certamente teríamos muito mais desinformação registrada”.
Renan Colombo, professor e pesquisador
Segundo ele, períodos de conflito como o que acontece hoje no leste europeu são marcados pela propagação de mentiras que inflam narrativas. A Rússia tem expertise em desinformação, com um histórico recente de interferência em outros países, como na eleição de Donald Trump, em 2016, e nas eleições francesas do ano seguinte.
Desinformar para invadir
Durante a anexação da Criméia, em 2014, também houve divulgação em massa de distorções pelo governo russo. Uma história falsa amplificada pela mídia russa de que um menino havia sido crucificado por forças ucranianas gerou comoção e motivou cidadãos dos dois países a se envolverem na guerra, ainda no início. Os conflitos na fronteira duraram oito anos e deixaram 15 mil mortos.
Agora, o governo russo acusa a Ucrânia de ser um regime neofascista e denuncia uma suposta produção de armamento biológico financiada pelos Estados Unidos. Com isso, Putin indica que o país vizinho é uma ameaça e que o ataque é necessário.
De fato, há grupos fascistas ucranianos militarizados que combatem separatistas e fazem atentados. O Batalhão de Azov é uma milícia neonazista que foi incorporada pelo Estado. A tropa lutou de forma voluntária na guerra da Criméia, em 2014, e hoje integra a Guarda Nacional da Ucrânia. Porém, os partidos de extrema-direita não conseguiram assentos no parlamento do país na última eleição, em 2019. E o presidente Zelensky fala russo e tem origem judaica.
Não há evidência sobre genocídio e fabricação de armas biológicas na Ucrânia.
Desinformar ao invadir
A dificuldade de verificação de fatos e a velocidade de difusão de informações aumentam o número de mentiras sobre a guerra divulgadas nas redes e na mídia.
O rumor do fantasma de Kiev, o piloto ucraniano que teria abatido seis aviões russos, foi compartilhado pelo ex-presidente da Ucrânia Petro Poroshenko e considerado verdadeiro. Imagens e vídeos falsos foram postados nas redes exaltando o herói. Um desses vídeos mostra a cena de um jogo.
Outras fake news também foram confirmadas por figuras públicas. Um bombardeio à torre de TV em Kiev teria destruído o memorial aos judeus executados em Babi Yar, na Segunda Guerra Mundial. Não é verdade, o local não foi afetado. Zelensky usou o boato para argumentar contra Putin.
O ucraniano também alertou que um acidente nuclear no Complexo de Zaporíjia, que sofria ofensiva russa, poderia ser mais grave que Chernobyl. “Alertamos o mundo inteiro para o fato de que nenhum outro país, exceto a Rússia, disparou contra usinas nucleares […] Se houver uma explosão, é o fim de tudo. O fim da Europa”, disse. Especialistas desmentiram as afirmações e a Agência Internacional de Energia Atômica disse que os reatores não foram danificados.
Cobertura da imprensa brasileira
No Brasil, alguns veículos analisam Zelensky de forma simplista. De acordo com Colombo, “temos uma parte da imprensa encantada, talvez, com a personalidade do Zelensky, com o fato de ele ser um orador muito bom, por conta do histórico como ator, e em alguns momentos me parece haver erro de interpretação ou de enfoque a respeito do que essa figura representa”.
Já para o mestre e doutorando em Ciência Política na UFPR, Acácio Vasconcelos Telechi, falta na imprensa brasileira uma visão própria sobre o conflito. Segundo ele, é verdade que parte da cobertura reproduz uma interpretação ocidental. “É uma guerra de discursos”, diz.
Putin, alerta o pesquisador, deseja que a Rússia volte a ser uma grande potência, como foi a União Soviética, mas existem distorções na afirmação de que há uma tentativa de se tornar um país socialista de novo. “Pega-se um pouco de verdade e a distorce para fazer um argumento”, explica.
Sobre os argumentos e justificativas dos países, Telechi reconhece que há “fundos de verdade em todos os lados”. Uma das defesas pró-Rússia é o questionamento da hipocrisia do ocidente sobre a invasão de países. Embora isso não justifique a guerra, é um fato que os Estados Unidos e a Otan se envolveram em lutas armadas após o fim da Guerra Fria. São exemplos os conflitos nos Balcãs, na década de 1990.
A ocupação do Iraque, em 2003, foi um evento muito similar ao conflito na Ucrânia se forem levadas em consideração as motivações baseadas em narrativas distorcidas.
Combate à desinformação
Segundo Colombo, o ocidente articula estratégias preventivas e consegue frear as narrativas de Putin. “Os mecanismos de combate à desinformação estão mais estabelecidos e solidificados do que em 2016, quando a Rússia contaminou a eleição americana”, diz.
O jornalismo profissional, as agências de checagem de fatos, telejornais e o controle exercido pelas plataformas de redes sociais formam um aparato que enfraquece a desinformação digital sobre a guerra e combate a narrativa russa. “Existem erros cometidos pela imprensa, ainda mais em uma cobertura diária de guerra. A pressão é muito grande para, num período muito curto de tempo, se entender e explicar fatos muito complexos para as pessoas. E no exercício cotidiano do jornalismo pode haver equívocos de informação e interpretações errôneas da realidade”, frisa.
“Mas ainda tenho a sensação de que isso é algo colateral, de certa forma inerente à prática jornalística, que não é tão nocivo e, ao mesmo tempo, não tão deliberadamente falso quanto o que se encontra em peças de desinformação”, completa.