sex 29 mar 2024
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A personificação da luta e da resistência

Conheça um pouco mais sobre a arte drag e sua importância para a representatividade LGBTQIA+

Por Emerson Araujo, Jully Ana Mendes e Thiago Fedacz Anastacio

Pabllo Vittar, Gloria Groove e Lia Clark. Chega a ser quase impossível que algum brasileiro nunca tenha ouvido nenhum desses nomes. Grandes artistas da música brasileira atual, os três compartilham uma mesma paixão além da música: a arte drag. Por definição, drag queen é um termo inglês usado para se referir a um personagem feminino interpretado, em parte das vezes, por um homem. Em suma, são personagens criados por artistas performáticos que se travestem, fantasiando-se de forma cômica ou exagerada com o intuito artístico.

Porém, ser drag vai muito além de simplesmente se vestir com roupas extravagantes. Segundo Thiago Soares, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) e do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a performance de drag queens e kings colabora com o entendimento acerca dos papéis de gênero na sociedade:

“[A arte drag] é importante porque ela nos ajuda a brincar com a natureza do gênero que é fundamental para que a gente possa reconhecer como parte de uma dinâmica da cultura. Talvez ela nos ajude a entender que o gênero na verdade é um jogo que a gente joga o tempo inteiro”

Thiago Soares, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) e do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Soares também ressalta que um dos eixos centrais que permeiam a arte drag é a performance, e explicou como a exploração de outras manifestações artísticas é significativa para ela:

“A drag faz parte de uma história dos estudos de performance e das artes performáticas. A arte é um ambiente propício para que essas personagens possam exercitar sua prática e exercitar a formulação dos seus corpos. Toda essa dinâmica é fundamental. […] Tanto a arte quanto a música são formas muito importantes para que as artistas manifestem suas estéticas, diferenças e singularidades.”

Thiago Soares, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) e do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Soares também ressalta que um dos eixos centrais que permeiam a arte drag é a performance, e explicou como a exploração de outras manifestações artísticas é significativa para ela:

Confira a entrevista com Thiago Soares para mais detalhes sobre a Arte Drag.

Arte de existir e resistir

Carlos Eduardo, 33 anos, ou melhor, Hellen Werneck, já trabalha com a arte drag há 15 anos. O seu primeiro contato com o universo das personificações se deu em 2005, quando gostou muito de um show realizado por artistas montados. Depois disso, começou a se montar por brincadeira, até que o hobby se tornou uma profissão. Em 2015, após fazer um show durante sua festa de aniversário, o dono da casa gostou do trabalho e pediu a ela para fazer outro sozinha. A partir daí, Hellen Werneck se tornou mais do que um personagem.

O nome não veio do nada. A artista conta que é muito fã da humorista Tatá Werneck. Por isso o sobrenome. Já Hellen partiu de um gosto particular, é um nome que considera bonito.

Apesar do glamour da profissão, há pedras no caminho. Hellen conta que, principalmente na época em que começou a se montar, por volta de 2006, grupos skinheads ameaçavam aqueles que fossem diferentes. A artista conta que andar pelas ruas era perigoso: “A gente não tinha liberdade para sair e ser quem somos que nem é hoje. Minhas amigas apanharam, eu apanhei, e não era uma surra qualquer, era bem tenso”, relata.

Hoje a situação é melhor, mas ainda é preciso lidar com a desvalorização da profissão. De acordo com a artista, não há casas de show em Curitiba que abram espaço para drag queens como era até a alguns anos atrás. Há a crença de que as artistas se montam por diversão, não levando o trabalho a sério. A montagem do figurino, a elaboração da maquiagem e a incorporação da personagem são ignorados por muitas pessoas, o que contribui para uma visão simplista do trabalho realizado. O que resta é atuar em eventos fechados: “O pessoal de Curitiba gosta muito da arte drag, mas infelizmente não tem nenhuma casa aqui que abra espaço para mostrarmos o nosso trabalho”, conta.

Apesar das dificuldades que a profissão traz, Hellen não pretende sair dos holofotes, pelo menos não por agora. Uma pausa é necessária, visto que atuar na arte drag por mais de 15 anos cansa um pouco. Mas a artista conta que o ramo artístico é algo interiorizado nela: “Eu nasci pra isso, nasci para estar no palco, para estar em foco”, afirma. Ela confessa que durante a pandemia tentou experimentar novas áreas, mas trabalhar com o que gosta a faz não querer mudar de ramo.

A arte já proporcionou momentos bons e ruins a ela. A fez ser agredida por aqueles que não a compreendiam, mas a agraciou com um público de milhares. Dores e amores da profissão. Mas o que realmente importa é não esquecer que a arte é uma importante arma na guerra contra o preconceito.

Hellen Werneck conta o que é arte drag para ela.

Um exemplo dentro e fora das noites

Harion Nonato dos Santos, 35, sempre foi muito tímido quando saía nas noites curitibanas. Pouco acostumado com a interação social, resolveu certa noite participar de um evento “invertido”, no qual “homens se vestiam de mulher e mulheres se vestiam de homem”, e foi assim que conheceu e se apaixonou pelo mundo das drag queens. Inicialmente, criou a personagem Natália e durante três anos tentou mostrar o brilho dela pela capital paranaense. Sem muito sucesso, o dono de uma das antigas baladas de Curitiba aconselhou Harion a criar uma nova personagem. Desta vez, a ideia era ser uma drag com uma personalidade mais de tia, que vai para a balada com os sobrinhos e se diverte a noite inteira. Foi aí que nasceu a tão conhecida Martha Barelli, também chamada pelos mais próximos de “Mamma”.

A Mamma logo que chegou fez sucesso por onde passava. Com seu brilho e seu carisma, Martha aos pouco foi conquistando seu espaço nos grandes eventos de Curitiba. Após nove anos com essa nova personagem, hoje, Harion se sustenta financeiramente com os eventos que participa e toca como DJ. Mas a estrada para chegar até esse ponto não foi nem um pouco fácil. O artista relata que por muitas vezes e até hoje, o preconceito e a falta de reconhecimento atrapalham muito o seu trabalho como drag queen. Em um tom crítico e bem humorado, Harion cita a frase: “Consuma não paga peruca. Consuma não paga maquiagem”, se referindo ao fato de diversas casas noturnas acharem viável contratar as artistas com consumação dentro do estabelecimento. O artista relata que apenas para roupas e maquiagem, o custo médio noturno é de R$ 200 a R$ 300, fora todo o gasto com transporte e alimentação.

Com ou sem dinheiro no bolso, Martha Barelli nunca tirou o sorriso do rosto. Com sua personalidade de tia e seu acolhimento com os clientes do estabelecimento, Mamma começou a criar relações com todos à sua volta. O artista conta que convive diariamente com pessoas LGBTQIA+ que estão completamente sozinhas, sem apoio dos amigos, dos familiares e que veem a Mamma como uma mãe adotiva, que acolhe e aconselha sempre que elas precisam. Essa amizade criada faz com que Martha receba inúmeros presentes e mensagens de apoio nas suas redes sociais, a motivando cada vez mais a seguir na sua carreira.

Além da participação nas noites, Harion também mostra o valor da sua personagem fora das casas noturnas. O artista conta que participa ativamente em uma ONG chamada Associação Paranaense da Parada da Diversidade (APPAD). Além de todas as ações sociais realizadas pela instituição que tentam ao máximo prevenir mortes e suicídios entre a comunidade LGBTQIA+, a ONG também trabalha diretamente na prevenção das DSTs, o que a torna uma das instituições escolhidas para auxiliar na pesquisa da vacina experimental para a cura do HIV. O artista também participa da Mesa Diretora do Grupo Dignidade, que comanda a Marcha da Diversidade do Paraná.

Harion entende que ser uma drag queen não é apenas se fantasiar e ir curtir as noites. Ser uma drag queen é ser uma artista e cumprir o seu papel acolhedor dentro da sociedade: “Você precisa viver a arte drag. Expressar amor, carinho, abraçar quem ninguém quer abraçar, aconselhar quem ninguém quer aconselhar, ser amiga de quem precisa”. Mesmo com todas as dificuldades e falta de apoio, o amor pela profissão e a esperança de mudar a vida das pessoas que precisam, nos mostram que precisamos de muito mais “Marthas” na nossa sociedade.

Catherine Plothow
Estudante do curso de Jornalismo da UFPR.
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Estudante do curso de Jornalismo da UFPR.
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