ter 19 mar 2024
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Análise: Adoráveis Transgressões é transar no teatro ou a peça onde as ratazanas latem 

Da Selvática Ações Artísticas, o cabaré do Festival de Curitiba é uma das grandes peças da Mostra Lúcia Camargo 

Começa como uma festa. Plateia e palco dançam um disco regado a vodka no pátio do teatro Zé Maria, tudo de graça — fora o ingresso. É o coquetel das loucas. De repente, um barulho agudo. As atrozes estão no chão. Aos poucos, levantam-se, fazem uma dança conjunta que remete visualmente a um anjo do antigo testamento e se escondem como ratazanas pelos porões da casa-teatro. Goliarda, a mordoma, leva todo mundo pra dentro. A plateia entra pelo palco com cuidado para não esbarrar na cenografia, desce as escadas e escolhe seus assentos. Começa o cabaré telenovelístico camp latino-soviético. A peça, exibida na sexta-feira (31) e sábado (01), foi um dos primeiros espetáculos da mostra Lúcia Camargo a ter os ingressos esgotados. 

Dividida em três atos, a peça conta a história de uma família supostamente tradicionalesca, um testamento, uma dupla de dedetizadoras ladras e uma viagem intergaláctica. Não é de entender. É pra sentir o prazer de assistir um espetáculo onde cada expressão é pensada para fazer gritar por dentro. A encenação é desconstruída, atores são trocados, dublados, reviravoltas acontecem sem compromisso com a lógica. A razão formal é a explosão, barulho de apocalipse. Todo mundo quer passar a mão no Pai Prosorov.

O primeiro capítulo é Tchékhov, literalmente. “As três irmãs” estão todas lá. Macha, Irina e Olga repensam a vida no interior provinciano, idealizando a fuga em direção a Moscou. Cai a neve, o terror toma a cena. O teatro assiste uma sequência avassaladora e parcialmente inexplicável de mortes, que dita os termos e as intenções da peça em abordar o bizarro associado à sexualidade, corpo e gênero — o que fica evidente em todos os elementos do espetáculo selvático, baseado nas obras de Copi e Leonarda Glück, com dramaturgia de Renata Pimentel e direção de Gabriel Machado e Ricardo Nolasco.

Adoráveis Transgressões é a peça que debate relações de trabalho, que defende a cachorra Laika como o primeiro homem a pisar na lua e que encena uma personagem rata transmorcega intolerante à lactose. Crítica e humor se complementam em absurdo e real. É a peça onde tudo que é sólido se desmancha no ar e se materializa de volta em pequenos objetos em formato de pêssegos e berinjelas que flutuam pelo teatro.

Foto por Annelize Tozetto

Por fim, Adoráveis Transgressões é arte erótica. Não por ser um cabaré orgiástico, mas por colocar pra jogo um teatro sensorial, do tesão, do humor, das formas, dos sons e dos cheiros. A busca pelo sentido não fica para trás, mas a peça desafia a interpretação ao propor um discurso onde não há, por excelência, “espaço para a totalidade e universalismos”. Como escreve Renata Pimentel no texto que abre o guia da peça, “abrem-se as portas, vãos e orifícios de toda sorte às sensibilidades menos puras e mais contamináveis”.

Trinta e um de março de 2023 entra para a história como mais um dos místicos momentos que fez neve em Curitiba, e também como o dia que uma peça bárbara estreou no teatro Zé Maria.

31° Festival de Curitiba

O Festival de Curitiba, que começou no dia 27 de março e vai até 9 de abril, conta com mais de 350 atrações e cerca de 2 mil artistas. Um dos maiores festivais de artes cênicas da América Latina, tem como lema “O festival para todos” na sua 31° edição. Como espelho das transformações sociais, a curadoria das mostras apresenta programação diversa, com representatividade em temáticas, artistas e públicos. Os ingressos chegam a R$ 80 e são vendidos de forma presencial e on-line. Confira a programação oficial.

Francisco Camolezi
Estudante de jornalismo na UFPR
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