A polêmica sobre as biografias está acirrada. De um lado, os jornalistas defendem o direito – supostamente inalienável – à liberdade de expressão. Do outro, grandes nomes da música brasileira, como Chico Buarque e Caetano Veloso, se recusam a deixar revelar ao público seus erros na juventude, protegem com garras de aço a privacidade de suas vidas tão públicas e não permitem nem toleram que alguém ganhe dinheiro à custa de seus já lucrativos nomes. A crítica a eles é tão óbvia que parece clichê: como é que pessoas que foram exiladas, presas e caladas pela censura ousam censurar?
“No cabo de guerra entre a liberdade de expressão e o direito à privacidade, muito cuidado é pouco”, defende-se Caetano em sua coluna no jornal O Globo, em 13/10. Certamente, esse impasse é complicado. Afinal, de acordo com o artigo 20 do Código Civil, lei 10406/02, “(…) A exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.” Ou seja: os cantores estão indiscutivelmente amparados pela lei. Porém, se legalmente eles estão com razão, moral e pessoalmente a decisão deles de entrarem nesse cabo de guerra é questionável.
Em um país com um histórico de ditadura como o Brasil, tal violação aos direitos da imprensa deveria ser visto como inadmissível. Afinal, não se pode proibir alguém de expor o que seria resultado de anos de pesquisa honesta, a menos que tais informações fossem de algum modo caluniosas, ofensivas ou degradantes – e esse veredicto só pode ser dado em julgamento, onde ambas as partes sejam ouvidas de forma igual. Parece um tanto repressor que os biografados possam simplesmente impedir que uma obra seja sequer escrita, sem ter como saber qual seria a linha que os escritores adotariam ou quais fatos seriam ou não incluídos.
Se biógrafos vão ganhar dinheiro sobre os biografados é irrelevante; o trabalho de recolher informações, documentos, velhas notícias e depoimentos e organizá-los em ordem cronológica já é um trabalho notável e digno de recompensa, tanto quanto qualquer outro livro, coletânea ou notícia produzido.
A solução que está sendo defendida por muitos, inclusive pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, é permitir a publicação desses livros. Caso o biografado detecte alguma irregularidade que considere inadequada, é seu direito garantido pela Constituição processar o autor. Parece lógico e coerente, mas esses músicos não querem nem cogitar.
A principal pergunta a ser feita não é se os autores têm direito de publicar seus livros – em uma sociedade democrática como a que pretendemos ser, não há espaço para um impasse tão absurdo. A pergunta a ser feita é o que mudou nesses últimos 30 anos que transformou militantes pela liberdade de expressão em repressores dela. Seriam os vestígios do governo militar tão fortes em nosso subconsciente que legitimam esse absurdo? Ou a ganância desses ex-revolucionários superou e manchou suas histórias de vida – muito mais do que uma simples biografia poderia manchar?
Quanto ao motivo que guiou a decisão de Chico, Caetano, Roberto e companhia, não há como determiná-lo sem conhecê-los pessoalmente. O verdadeiro medo é que essa comoção seja sintomática de uma sociedade que considera vaidades tolas mais importantes do que décadas de luta pelo direito de publicar, cantar, argumentar, gritar sobre tudo – inclusive sobre vaidades tolas. Assim que essa mutilação da liberdade for legitimada, é o sinal de que, enfim, o Brasil superou e esqueceu suas lutas passadas e está pronto para cair na mesma armadilha de novo.