Produção: Eric Rodrigues e Clarissa Freiberger
Agendada para o primeiro domingo de outubro, a eleição para o Conselho Tutelar se tornou um assunto recorrente nas mídias sociais e promete aumentar a participação popular. Ao contrário dos anos anteriores, a edição de 2023 apresenta uma alta adesão de candidatos que se identificam com a extrema-direita e os valores conservadores. Já a ala progressista, na sua maioria, entra na disputa com a perspectiva de ser um freio e contrapeso para um possível avanço da ala fundamentalista.
Longe dos holofotes da mídia convencional e desconhecida de uma grande parcela da população, a eleição para função reserva quatro anos de mandato para eleitos. Ao assumirem a vaga, os servidores atuaram como uma ponte entre a sociedade civil (pais, filhos e escolas) e os poderes do judiciário na fiscalização e cumprimento das normas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), documento promulgado em 1990 com validade em todo o território nacional.
Com votação aberta para toda a comunidade que tenha mais de 16 anos, o referendo utiliza as urnas eletrônicas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mesmo tendo todas as características das eleições comuns, o pleito tem um condição distinta e crucial para o debate: o voto é facultativo. E tal condição é uma das pautas que movimenta as mídias sociais alimentadas por um país dividido e que, de acordo com analistas, coloca o sufrágio deste ano em outro patamar.
Por meio das redes sociais, parlamentares bolsonaristas e apoiadores do ex-presidente indicam candidatos que se baseiam nos costumes. Nas publicações, os cabos eleitorais abordam temas vinculados aos valores conservadores, como a ideologia de gênero, liberação das drogas, doutrinação nas escolas, aborto e entre outros. As postagens têm alcance expressivo, justificada pelo empenho nas redes dos eleitores de Jair Bolsonaro, assim como ocorreu durante o mandato do ex-Presidente.
Na direção oposta, a ala progressista teve que buscar compreender a funcionalidade, a atribuição e o grau de relevância do setor. Assim, a grande parte das postagens apresenta um contexto do referendo, seguido de uma convocação coletiva para impedir o triunfo conservador. O movimento de conscientização, que era mais orgânico, ganhou força graças às manifestações de personalidades e influenciadores.
O Conselho Tutelar como um campo de disputa de poder
Segundo Maria Tarcisa Silva Bega, professora titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o conselho tem sido um instrumento de disputa de poder desde 2012, quando os agentes foram reconhecidos como servidores, o que os garantia o direito de remuneração, e expandiu-se nas últimas eleições, sobretudo em 2019.
“Os grupos conservadores já ocuparam espaços na eleição de 2019. Eles estão tentando ampliar o espaço, combinando toda uma pauta de costumes com a liberal. O que a gente está vendo agora é o terceiro turno da eleição presencial passada, a qual deu a vitória para o Lula. Do meu ponto de vista, é uma batalha anunciada, não é uma coisa nova, é a repicagem do processo de polarização”, disse a professora.
Além do ingresso massivo das alas conservadoras e radicais, Maria Tarcisa ressalta os danos causados pelo conflito ideológico na educação pública. “Os conselhos tutelares atuam em conjunto com as escolas, as quais são espaços institucionais e laicos, que não devem ser pautados por premissas conservadoras ou revolucionárias, mas sim pelo princípio do estado democrático de direito.”
Apesar da adesão conservadora parecer uma novidade, o interesse no órgão é uma bandeira defendida pelas igrejas neopentecostais há tempos. A Igreja Universal desponta a divulgação deste tipo de conteúdo. No artigo “Conselho Tutelar: é nosso dever participar” de 2019, a entidade explica como os conselhos atuam, acusa a mídia de violar os direitos das crianças com conteúdos inapropriados e afirma que, na função, “é importante ter pessoas com valores e princípios morais e que, acima de tudo, tenham compromisso com Deus”.
Sobre esta interação, Maria Tarcisa aponta que o discurso adotado pelas igrejas fundamentalistas foi apoiado por familiares que, antes do bolsonarismo, consideravam estas perspectivas relevantes sob a ótica dos valores cristãos. A utilização desse tipo de abordagem foi uma alternativa de ingresso onde a política encontrava resistências, mas que ganhou força no campo político com o surgimento do bolsonarismo. De modo que, atualmente, não é possível separar essa relação nas próximas eleições do Conselho Tutelar, bem como nas próximas eleições municipais ou gerais.
Olhar de dentro para fora
Embora a repartição seja um objeto de disputa entre políticos e autoridades, há relatos de servidores de que o setor está sucateado e que o ofício enfrenta dificuldades burocráticas. Um servidor curitibano, que preferiu se manter anônimo por temer represálias, descreveu o sistema e a estrutura do Conselho Tutelar local precarizado, de forma que os agentes trabalham sobrecarregados e sem capacidade de fiscalização efetiva.
Além disso, o servidor entrevistado enfatiza a necessidade de aprimorar a estrutura básica da rede de proteção social para ter uma melhora significativa na qualidade do serviço e do ambiente de trabalho, uma vez que, por enquanto, é praticamente impossível supervisionar e executar o serviço com precisão e êxito.
Para se ter uma ideia do dilema, ele menciona que as unidades administrativas atendem, em média, uma população de 200 mil habitantes. O que não está conforme a proporção mínima proposto na Resolução nº 139, de 17 de março de 2010 pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que estima que caberá aos Municípios e ao Distrito Federal criar e manter Conselhos Tutelares, observada, preferencialmente, a proporção mínima de um setor para cada cem mil habitantes.
Questionado sobre o aumento de interesse dos conservadores e radicais na disputa, o agente, que está envolvido com o órgão há décadas, diz que percebe uma maior articulação dos fundamentalistas cristãos nessa eleição. Entretanto, não acredita que isso seja o principal problema, mas sim numa provável cooptação das prefeituras e dos fundamentalistas. Considerando que se trata de um referendo democrático, acredita que a prefeitura precisa aumentar a divulgação do pleito, tornando-o, de fato, uma campanha de apelo popular e menos restrita.