sex 03 maio 2024
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Mães atípicas: a sobrecarga do cuidado

No Paraná, Shirley, Linda, Daiane e Gisele são mulheres com maternidades que se entrelaçam em um único ritmo: o da luta incansável pelos filhos

Produção: Joana Tápea, Marina Anater, Paula Bulka Durães e Thiago Fedacz

É tempo de dança. Em um sábado frio em Fazenda Rio Grande, região metropolitana de Curitiba, mais de 80 mulheres se movem em sincronia e chamam a atenção do Sol. Quando menos se espera, o calor está impregnado na pele e no ambiente inteiro. 

Algumas dessas mulheres têm um filho, outras têm mais, algumas trabalham fora, outras dependem do Estado e da comunidade para ter o que comer. Algumas poucas são casadas e deixam seus filhos com alguém de confiança, outras trouxeram eles consigo. Dessas vivências distintas, algo as une como uma só: a maternidade atípica.

O termo não é tão bem conhecido, mas é bem simples de entender. São mulheres, mães cujos filhos têm um desenvolvimento que foge do esperado, do típico, do padrão de normalidade, como nos casos das deficiências físicas ou mentais. O normal aqui cabe apenas para exemplificar, pois não figura como uma realidade — cada desenvolvimento é singular. 

Porém, estamos falando sobre mulheres, mães de filhos portadores de neurodivergências, que variam em sua natureza. Elas dançam para celebrar este momento raro, em que podem olhar para si mesmas e abraçar outras com histórias que se interligam com as suas em vários pontos em comum.

Prazer, eu sou uma mãe de uma pessoa com deficiência

Shirley

No meio dessa festa, Shirley Ordônio, 47, puxa outras mulheres para a roda. A energia sempre a acompanha, parece sorrir para a vida, essa mesma que colocou tantas dificuldades em seu caminho. Sua trajetória como mãe atípica começa em Curitiba (PR), treze anos atrás, numa gestação gemelar que não ia bem. 

Aos quatro meses, teve que pedir licença do trabalho como consequência da descoberta de uma Transfusão Feto Fetal (STFF), uma doença na placenta que acomete o desenvolvimento de um dos fetos em detrimento do outro. No caso das bebês da Shirley, Letícia recebia este fluxo de sangue contínuo, enquanto Camila estava em sofrimento fetal. Camila passou inclusive por uma vasodilatação cerebral para prover os nutrientes necessários apenas para os órgãos vitais. “Ela estava lutando dentro do meu útero pela vida”. 

A decisão pela cesárea veio às 28 semanas de gestação, aproximadamente seis meses e meio. As duas meninas, ao nascer, já foram internadas na UTI neonatal, perdendo peso rapidamente. Letícia, inclusive, foi entubada assim que deixou o útero. Este período de instabilidade durou três meses até a alta – as duas tiveram paradas cardiorrespiratórias. “Foi bem em um dia que o meu marido não conseguiu estar lá comigo, eu fiquei no meio das duas incubadoras, olhando de uma para a outra e aí o coraçãozinho delas parou”. Nessa altura, a realidade das gêmeas se inverteu: Camila saiu sem sequela alguma do hospital, enquanto Letícia teve uma paralisia cerebral e, futuramente, também enfrentaria os diagnósticos de autismo e epilepsia. 

Um ano e oito meses antes do nascimento das meninas, Shirley enfrentava outra gestação, a do Leonardo. “Praticamente eu tive trigêmeos, o que afetava diretamente o lado financeiro e profissional, sempre fui workaholic [risos]”. Foi justamente pelo trabalho que a paulistana veio parar em Curitiba. Em quinze dias conheceu o atual marido e, desde então, nunca mais voltou a morar na terra natal. Publicitária e administradora de formação, é enérgica e bastante ativa politicamente.

Linda

E essa energia também faz parte da Linda Franco, 45, que emana uma docilidade intrínseca em seus gestos e movimentos. Ela está em tudo, todo lugar, ao mesmo tempo: da pista de dança, para o salão de eventos, para a cozinha. Conversamos com ela pela primeira vez numa videochamada, às vésperas dos 21 anos do nascimento Gabriel. “Essa semana está sendo bem puxada. Neste domingo, 7 de maio, o meu filho faria aniversário. 

Linda é mãe do Gabriel, que faleceu aos 15 anos de idade, mas também é mãe do Diego, de 27 anos, e da pequena Sofia, de 11. Durante as primeiras internações, já estava grávida da caçula, uma razão para viver. “Quando um filho morre, uma parte de nós também se vai, mas tive que continuar pela Sofia”. A luta contra a doença durou oito anos, até que o menino veio a óbito.

A síndrome do Gabriel é a mesma do filme de 1992, “Óleo de Lorenzo” – genética, rara, degenerativa e incurável, ligada ao cromossomo sexual X. “É uma doença que chamamos de erro inato do metabolismo. De maneira simples, está faltando uma enzima e com isso o organismo não consegue metabolizar um lipídio corretamente, e isso resulta em uma série de alterações no cérebro”. Quem explica é o neuropediatra André Luiz do Carmo, que vai nos acompanhar durante toda a reportagem, exemplificando as questões mais técnicas dos diagnósticos e o papel da comunidade médica.

A Adrenoleucodistrofia (ADL) danifica permanentemente a substância branca do cérebro e prejudica as glândulas adrenais. Como consequência, “a criança vai perdendo os movimentos, fica irritada, perde a capacidade de se comunicar. E, como é uma doença progressiva, invariavelmente leva ao óbito em alguns anos”. Os casos mais graves acometem o sexo masculino, justamente por estes serem portadores de apenas um cromossomo X. 

O que auxilia a amenizar os efeitos catastróficos da doença é um transplante de medula precoce e bem sucedido. A dificuldade no diagnóstico do Gabriel e a rápida progressão da doença impediram com que ele tivesse essa oportunidade.

Depois da morte do menino, Linda tornou-se uma ativista pelos direitos de outras Pessoas com Deficiência (PcD), predominantemente crianças e jovens com síndromes e doenças raras, além de promover o acolhimento de outras mães atípicas assim como ela. Uma dessas mães com quem cruzou foi Daiane Kock, 36, pedagoga, que estava desassistida após a sucessão de diagnósticos do seu filho Guilherme. 

Daiane

Daiane não conseguiu estar presente no sábado, em Fazenda Rio Grande, pois deu à luz a poucos meses à Catarina, que ainda necessita de sua atenção constante. Mãe de três, ainda adolescente engravidou pela primeira vez, e aos 24 teve o Guilherme, cujo pai abandonou-os pouco tempo depois. Na sala de parto, o filho foi reanimado e levado também para a UTI neonatal. “Durante esse tempo, não pude encostar nele, não consegui amamentá-lo e o hospital não tinha os equipamentos necessários para realizar os exames que ele precisava”. 

Quando o menino recebeu alta, ninguém explicou à Daiane o que aconteceu. Com o resultado de uma ressonância, uma primeira resposta veio. “Ele havia sofrido um Acidente Vascular Cerebral (AVC) na artéria média esquerda, acima da orelha, afetando uma porcentagem significativa do cérebro do lado esquerdo, ainda durante a gestação”, explica. A consequência foi uma paralisia cerebral, posteriormente autismo e crises epilépticas. “Existe o risco constante de eu pôr meu filho na cama hoje e amanhã ele não acordar, por conta da epilepsia”. 

Porém, a descoberta mais surpreendente foi que Guilherme sofre de uma síndrome genética que provavelmente teria ocasionado este AVC, a homocistinúria. Esta doença também é um erro metabólico que afeta a produção de uma enzima, chamada cistationina beta-sintase (CBS), uma alteração no cromossomo 21.

A diferença é que o menino é um caso ainda mais raro da doença, já que é a única pessoa no mundo registrada em que a homocistinúria não se manifesta de forma usual. “O Guilherme é o primeiro paciente catalogado que tenha a doença genética, mas que a manifesta de maneira distinta. Por exemplo, ele tem uma cavidade compatível com glaucoma, uma condição comum da síndrome, mas não tem glaucoma, muito menos necessita de uma dieta restritiva como outras crianças”.

Essa gama de diagnósticos distintos que atingiram a Letícia, filha da Shirley, e o Guilherme, filho da Daiane, são chamadas comorbidades e são “transtornos bastante comuns”. A paralisia cerebral é causada por uma lesão cerebral e o cérebro não é uma coisa isolada. Então, algumas  lesões levam a outras situações, como a epilepsia, por exemplo, por motivos que a comunidade médica conhece ou ainda desconhece”, explica o neurologista.

Daiane tem os cabelos de fogo. Essa intensidade das madeixas faz parte de sua personalidade também: é enérgica, bem humorada e não foge à luta pelos direitos do filho pré-adolescente. Junto com Shirley e Linda, faz parte da Aliança Paranaense de Doenças e Síndromes Raras.

Linda, Shirley e Daiane são amigas unidas pela luta em comum pelos direitos dos filhos.
Foto: Acervo Pessoal

Gisele 

Longe dessa rede de apoio, em Guaratuba, litoral do Paraná, Gisele Travassos, 42, não consegue se livrar de uma angústia que a consome: o medo do tempo. A irmã é cadeirante desde o nascimento e o filho Giovanni, de 14 anos, foi diagnosticado com autismo e deficiência intelectual. “E fico pensando como será na minha ausência? Na ausência do pai, quem vai cuidar dele?”.

Cristã e bastante ligada com a igreja, abdica de si mesma pelo Giovanni, que agora enfrenta o duro período da adolescência, sem saber onde se encaixar. Mais tarde, teve a Cecília, que foi bem aceita pelo irmão.

Mas o desejo de ser mãe foi um caminho tortuoso. A descoberta da endometriose – doença que afeta o revestimento do útero – trouxe a dificuldade para engravidar. “Olha, Gisele, ou você faz uma fertilização ou fica à vontade de Deus”, esse foi o recado do médico que a atendeu. A fertilização in vitro não foi uma opção por dificuldades financeiras. Então, após seis meses de tentativas, o positivo veio naturalmente. A gestação foi tranquila e sem preocupações, mas as alterações do Guilherme começaram a se manifestar com um ano de idade.

O luto antes mesmo da morte

Na jornada da maternidade atípica, uma das fases mais desafiadoras é o diagnóstico. Reparar que há algo de diferente com seu filho nem sempre é tão fácil. Linda comenta que foi na escola que os primeiros sintomas do Gabriel ficaram perceptíveis. Já para Shirley, que estava em licença maternidade e que tinha a outra gêmea com quem comparar, foi mais evidente: “O diagnóstico da Letícia veio com 8 meses, depois de eu perceber que ela não segurava o pescoço igual a Camila. A Letícia tinha um olhar mais disperso”.

Notar as adversidades nos filhos é apenas o primeiro passo de um processo que normalmente é longo e carregado de angústia. O neuropediatra André comenta que é frequente o descrédito e a dúvida. “As mães percebem as alterações dos seus filhos e já chegam ansiosas, porque já foram em outros profissionais que não encontraram respostas, e também porque os familiares falaram que elas devem estar ficando loucas. E aí a gente reafirma que o que elas estavam vendo está correto, e que aquilo tem uma significação.”

Linda, que viu o comportamento de seu filho mudar rapidamente, sentiu na pele a descrença relatada pelo médico. “Conversar com o pai do Gabriel foi um processo difícil. Quando eu ia comentar os sintomas ele dizia, ‘você está procurando doença’, sabe? Eu ouvi muitas coisas no início. Fui muito desacreditada.”

Voluntárias formam uma rede de apoio no Café para Mães Atípicas, em Fazenda Rio Grande. Na foto, a mãe de Linda Franco.
Foto: Joana Tápea

Nós somos uma só 

No primeiro momento o tempo de aceitação se faz presente. O positivo no exame indica uma nova vida sendo gerada ali. Duas vidas dividirão o mesmo espaço, o mesmo ar. Mãe e filho compartilham por nove meses inteiros, sem finais de semanas,  férias, folgas, ou privacidade, a mesma casa, o mesmo ventre. As dúvidas, incertezas e medos pairam pelo ar durante toda a gravidez e segue-se assim depois dela.

Apesar do vínculo do cordão umbilical ser uma dança a dois, a maternidade em si não é, ou pelo menos não deveria ser. A responsabilidade e a luta de criar e educar uma criança deveria ser um trabalho em equipe, mas essa não é a realidade de grande parte dos lares do Brasil. Segundo dados do IBGE, 12,2 milhões de mães chefiam seus lares sem qualquer ajuda seja ela financeira ou emocional dos pais. Esse dado é ainda mais alarmante ao se pensar na realidade da maternidade atípica.

O abandono parental nas famílias de pessoas com deficiência é ainda maior. Segundo a pesquisa realizada pelo Instituto Baresi, no ano de 2012, 78% dos maridos de famílias com doenças raras abandonam seus lares, deixando os filhos aos cuidados integrais das mães. Algumas dessas mulheres conseguem contar com pessoas ao seu redor para compartilhar a sobrecarga do dia a dia, mas não é a realidade todas. 

Daiane foi abandonada pelo pai de seu filho Guilherme, após o diagnóstico. O medo da solidão e as incertezas com o futuro não desgastaram a necessidade de se reerguer. Hoje, após se casar novamente encontrou no amor e na cumplicidade uma importante rede de apoio. Dividindo as sobrecargas do presente e as incertezas do futuro com o marido e a filha, ela consegue agora cultivar um espaço e tempo para o autocuidado.

“Só consigo ter a minha vida porque tenho pessoas que dividem as tarefas comigo. Entendo que nem todas as mães conseguem isso. Então, se eu não tivesse minha filha mais velha, que me ajuda muito, e se não tivesse meu marido, que abraçou as crianças e trata todos igualmente, não conseguiria ter minha vida.”

A romantização em torno da maternidade interfere diretamente na saúde mental das mulheres. Em uma sociedade machista, o papel da mãe está diretamente conectado ao cuidado com o outro, fazendo com que qualquer iniciativa para o cuidado próprio se torne um ato egoísta. Para a psicóloga Mariana Bonnás pequenos passos podem ajudar as mães atípicas a começarem a praticar o autocuidado, esquentar o próprio prato de comida pode ser um deles. O que no entendimento geral é necessidade básica da vida, comer seu alimento quente, para essas mulheres acaba se tornando luxo, justificado pela falta  de tempo e apoio. 

“Ela pode procurar pequenos momentos em seu dia e pequenas coisas, como o exemplo da comida quente, para começar a se cuidar aos poucos. Não adianta também dizer para ela mudar tudo de uma vez. É melhor que ela comece aos poucos e, depois de um tempo, perceba a diferença que isso faz em sua vida. Então, ela pode se perguntar: “O que mais posso mudar agora?” afirma Mariana. 

O dia a dia das terapias, fisioterapias, exames e  consultas são atividades recorrentes  na maternidade atípica. Muitas dessas mães encontram suas redes de apoio nos corredores dos hospitais, nas cadeiras de quarto e nas longas horas nas salas de espera. A troca de experiência e a similaridade nas trajetórias, unem essas mulheres no processo de acolhimento e na luta por políticas públicas de inclusão para seus filhos.    

Linda encontrou nos corredores dos Hospital Pequeno Príncipe a possibilidade de ajudar outras mães atípicas, assim como ela. “Antes, eu era apenas uma mãe, e para ser bem sincera, eu me sentia como uma coitadinha. Eu estava sofrendo muito devido a todo o processo. Mas por conta disso, os médicos me chamavam para conversar com outras mães que estavam resistindo em realizar procedimentos médicos. Eu colocava a minha própria dor de lado e ia lá conversar com elas, mostrando a importância da qualidade de vida para seus filhos”. De toda empatia e perseverança surgiu o projeto “Troca-troca Entre Mães Especiais”, que tinha como objetivo auxiliar as mães e familiares de crianças especiais com materiais e informações que pudessem promover uma melhoria de vida para essas famílias.

É na luta por direitos para seus filhos que as histórias dessas três mulheres se encontram. Daiane, Shirley e Linda são amigas e fazem parte da Aliança Paranaense de Doenças e Síndromes raras. Para Shirley a troca de experiência e apoio de outras mulheres é fundamental para o fortalecimento da trajetória de luta. 

“A gente tem um momento de concha, um momento em que todas nós, até as lideranças mais atuantes nos fechamos na nossa concha para nos fortalecermos, para depois voltarmos mais forte e continuar a batalha. E aí enquanto a gente está  na nossa concha sempre vem uma mãe conversar e temos esse apoio. Porque a gente consegue fazer essa troca com pessoas que têm a mesma experiência”. 

Gisele mora mais distante dessa rede de amizade, aproximadamente 130 km  separam Curitiba da cidade Guaratuba no litoral do Paraná. Com a falta de grupos de maternidade atípica para trocar experiências, Gisele conta com o apoio do marido e da mãe. “Além das dificuldades financeiras, os pais também enfrentam desafios psicológicos. Ter uma rede de apoio adequada é crucial, e sou grata por ter duas pessoas em quem posso contar. No entanto, é angustiante saber que algumas mães não têm esse apoio. Essa questão é bastante complexa e envolve diversas lutas enfrentadas pelos pais”, afirma Gisele.

Mas não é só a troca de experiências que configura uma rede de apoio, mas sim um trabalho em equipe que perpassa todas as esferas da sociedade. Políticas públicas de inclusão e proteção são essenciais para promover a qualidade de vida dessas famílias. A escola também desempenha um enorme papel de apoio para essas mães, dividindo a sobrecarga e o tempo do cuidado. Para Mariana Bonnás pequenas atitudes também são importantes para o apoio dessas mães.

 “Vamos imaginar uma mãe que mora num prédio, um vizinho que, quando ele vai descer com o lixo, bate na porta dela e fala: ‘Tem lixo aí pra descer?’ Parece uma coisa tão pequena, só que para uma mãe que tem um filho que depende dela e que ela teria que descer com esse filho para tirar o lixo, alguém passar lá na casa dela e pegar faz toda a diferença. Você pode ajudar com outras pequenas coisas, seja falando: ‘Ai, eu estou indo no mercado, está precisando de alguma coisa, quer que eu compre para você?’ E seja também mandando uma mensagem para essa mãe, perguntando como ela está.” 

Quando nascem as mães

O que é ser mulher? Uma pergunta curta que possibilita uma grande reflexão. Ser mulher não se resume a ter uma vagina. É preciso um olhar mais aprofundado, se atentando a fatores que vão além da biologia e tratam mais de aspectos identitários, sociológicos e culturais.

Apesar de todas as questões complexas que circulam o significado de ser mulher, uma delas se apresenta como um divisor de águas na vida de muitas. Ser mãe também pode significar uma sobreposição, um apagamento ou até mesmo uma reformulação no que é ser mulher. A vida se torna mais complexa e as prioridades se modificam. Apesar das alterações bruscas, a vinda do tão esperado filho também é símbolo de recomeço e de alegria. Shirley conta que a chegada do filho significou a abertura de um universo até então desconhecido: 

“Quando o Leonardo veio, um mundo novo se abriu. Foi um presente. Mas tem uma coisa engraçada, sabe. Toda mãe fala que quando fica grávida já sente um amor. E eu não tinha isso. Foi interessante porque eu me questionava ‘será que eu tenho alguma coisa errada?’ A minha mãe falou: ‘O dia em que você estiver amamentando o seu filho, o dia em que você pegar ele no colo e ele te olhar, você vai entender o que é esse amor’. E eu lembro muito bem da cena, quando ele abriu os olhinhos para mim… Foi então que me apaixonei por ser mãe”, conta.

Apesar da chegada do filho ser sinônimo de realização, também simboliza um novo empenho para a vida dessas mulheres. Ao falarmos de maternidade atípica, então, os obstáculos na pista de corrida que é a vida se tornam cada vez maiores e difíceis de lidar: “E ser mãe especial é uma luta diária mesmo, sabe? Cuidar do seu filho muitas vezes requer entender o que ele quer” afirma Gisele, mãe do Giovanni. 

As dificuldades vão além dos cuidados que são necessários, como a rotina de ir aos mais diversos especialistas para entender as particularidades do filho. As mães atípicas precisam se encontrar na nova realidade. “Eu larguei muitas coisas. A faculdade foi apenas uma delas. Abandonei o trabalho e abandonei quem eu era. Foi como se eu fosse um vaso que foi jogado no chão e se quebrou em milhares de cacos que voaram para longe. Eu tive que recolher, colar e entender onde cada pedacinho se encaixava para reconstruir esse vaso novamente. Ao longo dos dias, fui reunindo forças para colar um pedaço no outro. É claro que eu não sou mais a mesma pessoa, porque quando algo se quebra e é reconstruído, não é mais igual”, desabafa Daiane.

O abalo psicológico e a ausência do autocuidado também são resultado da maternidade pela qual essas mulheres passam. O abandono da vida que conheciam antes acontece não por uma escolha consciente, mas por uma necessidade que demanda mais atenção. Com isso, o que fica é a saudade: “Sinto falta de poder investir em mim mesma, seja fazendo atividade física, comprando roupas ou realizando tratamentos. Acredito que a maioria das mães colocam seus filhos em primeiro lugar, e eu também faço isso. É como se meu filho fosse parte de mim”, conta Gisele.

Alinhada com a reconstituição de quem essas mulheres são, a culpa é uma forte aliada. Sair para tomar um café com as amigas ou realizar uma caminhada se tornam atividades difíceis. Para algumas delas, diversão é sinônimo de pecado, de descaso com o filho que precisa de cuidados em casa. Não há mais uma pessoa ali, uma mulher, mas sim uma mãe: “Às vezes me convidavam para sair. Não posso, convida outro dia. Não posso, não posso, não posso. Não posso. A pessoa acha que você está mentindo. Já aconteceu de eu estar pronta, com maquiagem e cabelo feitos, para ir à formatura de uma amiga e aí, na hora de sair, o Guilherme começa a ter uma crise”, relata Daiane.

As mudanças na vida dessas mães também é reflexo de uma tentativa de entender não somente elas mesmas, mas os seus filhos e as dificuldades particulares que cada um enfrenta. Daiane ingressou no curso de Pedagogia, no qual se especializou em questões como alfabetização e deficiência intelectual. “Quando o Guilherme era pequenininho, [o curso] me ajudou a entender de uma forma mais literal quem era o meu filho. Eu não tenho e não tinha fé que Deus iria curar o meu filho. Sempre achei que ele teria uma deficiência e que eu precisava melhorar isso de qualquer forma. Então, [a Pedagogia] me ajudou a categorizar as coisas, principalmente na parte cognitiva”, diz. Hoje, Daiane auxilia famílias que têm crianças com deficiência nas escolas. 

Dois anos após o nascimento do filho, Gisele também cursou pedagogia. A partir da graduação, o entendimento dela sobre como trabalhar com uma criança autista foi aperfeiçoado. “Foi nesse momento que comecei a entendê-lo melhor e isso foi de grande valor pra mim”, conta.

Mesmo com todas as dificuldades e mudanças um tanto quanto bruscas na vida dessas mulheres, o tempo as ensinou a olharem para elas mesmas de uma nova forma. Esse novo sentimento do ser, e da lembrança de que antes de serem mães são mulheres, se torna um importante aliado. “Nenhuma mãe precisa ser mãe 24 horas por dia. Levei isso para a minha vida desde então, e tento não me culpar quando quero sair um pouco e ficar sozinha, pois as mães também precisam disso”, afirma Gisele.

Para Linda Franco, a maternidade simboliza um legado. Após a morte do filho Gabriel, a ativista não parou de lutar por uma maior atenção do poder público por direito de mães atípicas. O trabalho que desempenha nasce a partir do amor e não há a menor chance de ser interrompido por vontade própria: “Tem gente que fala ‘Linda, você deveria parar com tudo isso, você mal se dá conta’. Mas esse trabalho diário, que ocupa manhã, tarde e noite, é o que eu amo fazer”, assume. 

Mães na “linha de frente”

A maternidade atípica também é uma motivação pelo o que lutar. Ao deixar o consultório da médica que constatou o AVC do Guilherme, Daiane passou dias no quarto, sem tomar banho, sem comer, totalmente incapaz de processar a dor que estava sentindo.

O segundo passo foi se enfurnar na frente do computador em busca de respostas. “Passei noites e dias estudando tudo o que podia, até que encontrei estudos no Canadá e enviei e-mails para universidades ao redor do mundo, procurando entender o que havia acontecido com meu filho.” Foi neste momento que Daiane encontrou na web o blog da Linda, “Gabriel Pollaco”. Entrei em contato com ela, estava no Hospital Pequeno Príncipe com seu filho internado naquele dia”. Deste acolhimento, surge uma Daiane ativista. 

Já dentro da Aliança Paranaense de Doenças e Síndromes Raras, uma das reivindicações atuais, segundo Daiane, é garantir que os espaços de saúde tenham psicólogos à disposição para atender as mães logo após o diagnóstico ou para, ao menos, auxiliar o médico nesta conversa. Mas não para por aí, a sua trajetória é repleta de manifestações políticas e rebeldes.

Guilherme, aos seis meses de idade, foi diagnosticado com um tipo raro de epilepsia, a Síndrome de West, e começou a apresentar espasmos intensos. Quando o menino completou três anos de idade, Daiane passou a medicá-lo com óleo de maconha. “Foi a primeira vez na vida que meu filho ficou três dias sem ter convulsões”. A busca pela legalidade da droga, fez com que batesse na porta pelos direitos do filho. “Eu fui para Brasília dormir na frente da Anvisa para eles liberarem o óleo da cannabis”.

O Projeto LIA – Lazer, Inclusão e Acessibilidade, fundado pela Shirley, surge de um passeio pelo parque. Letícia era invisível para as outras crianças e pais e aquilo incomodou-a profundamente. Foi quando Shirley teve a ideia de levar a filha no balanço. “Eu tirei as almofadas da cadeira de roda, coloquei-a e a empurrei. Foi a primeira vez que ela deu aquela gargalhada, a primeira vez que eu ouvi a voz dela. E quando ela fez isso, as crianças olharam porque foi uma coisa muito grandiosa”.

Shirley brinca com a filha Letícia em um brinquedo inclusivo.
Foto: Acervo Pessoal

Desde então, o projeto busca incluir brinquedos inclusivos em todos os parques públicos que puderem atingir. “Fui para o fórum dos direitos da pessoa com deficiência, eles me encaminharam para um grupo em que conheci outras mães, como a Daiane, ficamos  muito amigas desde então. E, lá neste fórum, o projeto começou a se desenvolver”. Durante esse processo, escreveu até uma carta de próprio punho para a presidenta Dilma Rousseff. 

Para que a ação fosse aderida em Curitiba, foi necessário mudar o código de postura da cidade, um processo que levou quatro anos ao todo, segundo Shirley. O primeiro espaço verde a receber as doações foi o Passeio Público. Hoje, os brinquedos inclusivos estão funcionando também em outros pontos da cidade, como no Parque Barigui e no Parque São Lourenço. O LIA ultrapassa fronteiras atualmente. “Tem reportagem na  Austrália, no Reino Unido. Recebi um dia uma foto da Palestina com brinquedos inclusivos, uma mulher de burca falava em inglês: ‘O seu projeto chegou aqui’”.

Outra discussão é pela aprovação do fraldário acessível. “É muito difícil, porque todos os trocadores são para bebês e a minha filha tem 13 anos, então já teve situações que eu tive que tirar a minha blusa, forrar o chão de um banheiro público e deitar ela ali”. Para a ativista, uma maca portátil seria a opção mais viável, o que auxiliaria não só crianças mais velhas, como idosos e outros grupos que necessitem do aparato. 

Shirley percebeu que a melhor forma de conseguir apoio para as reivindicações era fazer parte do próprio sistema. Por essa razão, em 2020, se candidata como vereadora da cidade e hoje é assessora parlamentar. “Estamos brigando agora pela ampliação da triagem neonatal, do teste do pezinho. Com este teste ampliado para doenças e síndromes genéticas você consegue, por exemplo, identificar doenças que hoje estão causando morte súbita de bebês, em que o tratamento precoce consiste no consumo de amido de milho”.

Na época da descoberta da ADL, Linda morava ainda na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), bairro da periferia da cidade. Os ativismos começam na própria região, prestando assistência a outras mães e deficientes, e também virtualmente, por incentivo de uma médica do hospital. “Em 2009, eu tive que aprender a mexer com o tal do blog, criei um e comecei a escrever, quando alguns meses depois, uma mãe no Rio de Janeiro me encontrou. Ela me mandou uma mensagem, perguntando o que fazer, porque suspeitaram dessa doença no filho dela. E aí começou essa minha luta”.

A “Mãe dos Raros”, como ficou conhecida, já deu palestras em localidades distintas como São Paulo e Buenos Aires. “No semestre passado recebi crianças do Pará, Paraíba, Recife e Porto Seguro. Como essas famílias chegariam até o Hospital Pequeno Príncipe? Elas não chegam, porque a fila de espera é gigantesca. Então, esses meninos eu consigo trazer de longe”. Ainda dentro do hospital, com o Gabriel internado, criou o projeto “Troca-Troca entre Mães Especiais”, uma iniciativa intermediadora de doações de medicamentos e materiais médicos.

Em Fazenda Rio Grande, Linda também tenta acolher mães que necessitam de apoio psicológico. “Semana passada, uma mãe colocou fogo aqui no apartamento, trancando os filhos deficientes. As mães atípicas acabam adoecendo, não por causa dos filhos, mas devido ao sistema”. Esta informação nos surpreendeu. Uma busca rápida pela internet, posterior a entrevista, revelou que não existem dados de fácil acesso que relacionem uma maior frequência de suicídios em mães atípicas, assim como no assassinato dos próprios filhos. Mas os relatos de Linda e das outras mães colocaram o tema em nosso radar.

Quando questionada sobre o que acontece com as crianças deficientes, em situação de vulnerabilidade socioeconômica, é bem objetiva: “Os meninos vivem menos tempo, e infelizmente eu já presenciei isso de perto”. Linda conta que o filho Gabriel viveu oito anos, pois a família teve acesso ao home care, convênio que fornece enfermeira 24 horas, fisioterapeuta, fonoaudiólogo e médico em casa. “Já as mães que dependem do SUS, geralmente conseguem apenas um ano e meio a dois anos de cuidados, isso se derem sorte”. 

Além de acompanhar crianças na fila do transplante de medula, acolher mães, fornecer equipamentos e ir atrás de doações, Linda ainda exerce um importante papel contra a fome. “Recentemente, recebi mensagens de mães dizendo que têm três filhos e não têm o que comer. Então, fui no meu próprio armário e compartilhei alimentos com elas É muito difícil para as famílias, principalmente aquelas que dependem do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Elas precisam pagar aluguel, comprar fraldas, remédios e o impacto direto é na alimentação.”

Os cafés para mães também é uma medida que Linda encontrou após a morte do Gabriel de mostrar para essas mulheres que elas não estão sozinhas e que existem outras enfrentando desafios semelhantes. “Essas interações inspiram as mães a saírem de casa e se envolverem ativamente em busca de soluções”. 

Um sábado em Fazenda Rio Grande

A dança citada no começo dessa história faz parte de uma dinâmica com mães atípicas, de condições socioeconômicas distintas, unidas nesta tarde de sábado, 20 de maio, em Fazenda Rio Grande. A festa é uma das muitas iniciativas da Linda, promover um ambiente inclusivo e assistencial. Para chegar até lá, partimos do gigantesco terminal do Pinheirinho, em Curitiba, e pegamos um ônibus direto para o município. Quase uma hora de viagem depois, descemos no velho terminal da cidade e seguimos a pé numa caminhada de mais ou menos dez minutos até nosso destino final.

Por volta da uma hora da tarde, o frio já foi consumido pelo sol fervente do meio dia. O cenário é de calçadas muitas vezes cobertas pelo matagal, sem muitos prédios e com uma vista bonita. Cruzamos um amplo viaduto até o centro comercial da cidade, que lembra o de qualquer cidade interiorana. A diferença é que Fazenda Rio Grande está longe de ser o interior, ainda é uma região mais propícia aos critérios financeiros para se viver do que Curitiba, mas que vem se mesclando cada vez mais com a malha urbana da capital vizinha. 

Linda foi uma dos tantos curitibanos que se mudaram para a cidade em busca de uma vida mais tranquila e lá encontrou uma realidade periférica gritante: mães de baixa-renda de PcDs desassistidas pelo Estado. O “Café para Mães Atípicas” é um evento frequente que promove na cidade, mas desta vez a data foi escolhida com carinho para abraçar o Dia das Mães que estava chegando. O espaço é pequeno, dentro de um salão do Instituto Socioassistencial Somar, que compartilha o imóvel com uma igreja evangélica. 

Dentro do local, estão dispostas várias mesas com famílias já acomodadas. A decoração é acolhedora, com grandes girassóis na entrada que abraçam quem chega. Na mesa central, três bolos com os dizeres “maternidade atípica”. Uma portinha na lateral leva para uma sala cheia de cosméticos e maquiadoras profissionais prontas para servir um tratamento de cuidado e beleza. Ao lado, uma pequena cozinha onde voluntárias trabalham incansadamente.

É difícil caminhar por entre as mesas: são mulheres, jovens cadeirantes e crianças correndo e para tudo o que é lado. A recomendação foi deixar os filhos em casa, o evento é uma oportunidade para estas mães cuidarem de si mesmas. Mas a realidade é bem diferente, poucas são as que têm o benefício de ter alguém à disposição para cuidar dos pequenos. Mesmo assim, a tarde segue de maneira especial. A dança conduzida por funcionários da prefeitura é seguida por uma fala especial de uma psicóloga convidada, que relembra o amor e o cuidado que as une naquele momento: “Mamãe gera, mamãe nutre, mamãe cuida e mamãe traz à vida”.

Os salgados, sucos, refrigerantes são todos providos de doação, assim como eletrodomésticos, canecas, itens de higiene e beleza sorteados no evento. Também numa sala estão inúmeras cestas básicas que foram distribuídas naquela tarde. O apoio é fundamental para que o café aconteça, tem político envolvido, médico, instituições, outras mães e amigas. Mesmo assim, Linda é a grande protagonista dessa ação, que mobiliza a todos para seguirem lutando. 

Essa luta, aliás, é contínua e vívida. Um abraço apertado de Shirley e Linda neste reencontro simboliza uma palavra que escrevemos muito aqui e é nosso dever repetir mais uma vez: união. Em casa, aos cuidados da sua bebezinha, Daiane sente este calor contagiante, o amor das duas amigas a acompanha mesmo no lar. Agora, casada com seu melhor amigo, tem uma parceria que funciona. A filha mais velha também está à disposição sempre que precisa. Bem diferente dos anos em que esteve sozinha dedicada exclusivamente aos cuidados do Guilherme.

Gisele está longe dessa rede, mas segue com o carinho dos filhos Cecília e Giovanni e com o apoio do marido em casa. Os dois agora têm uma missão difícil pela frente, conversar com o filho autista sobre sexualidade. Uma tarefa que farão juntos, como um só. Sabemos que esta é longe de ser a realidade de todas as  mães de deficientes, mas é um abraço significativo a outras histórias distintas. E, numa tarde de sábado, em Fazenda Rio Grande, estas histórias se encontram e se movem em perfeita sincronia. É tempo de dança.

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