A Copa do Mundo do Catar chega ao fim e deixa a história do Mundial marcada – com sangue. As denúncias de violações dos direitos humanos fez o mundo levantar o cartão amarelo para o país. Na era em que a internet impulsiona o debate sobre direitos civis, a decisão da Fifa de sediar a Copa no Catar é contraditória. A votação que decidiu que a sede deste evento que movimenta bilhões de dólares está envolta por suspeitas de corrupção. Mas esta não é a primeira vez na história da competição em que tensões políticas e disputas ideológicas desviam a atenção dos gramados.
A própria Fifa admite que não há como viver em negação. A federação enviou uma carta às seleções, firmada pelo presidente Gianni Infantino e pela secretária geral Fatma Samoura, declarando que “O futebol não existe em um vácuo e todos nós estamos igualmente cientes de que existem muitos desafios e dificuldades de natureza política ao redor do mundo”. O Catar esteve sob investigação por suspeitas de suborno de funcionários da Fifa em U$ 3,7 mi, e os dirigentes do país foram inocentados. Em meio aos escândalos, a carta pede: “Mas por favor, não deixem que o futebol seja arrastado para a batalha ideológica e política”.
Em meio à criminalização da população LGBTQIA+, a restrição dos direitos das mulheres e a exploração de trabalhadores imigrantes – o chefe da organização do Mundial, Hassan Al-Thawadi, admitiu que entre 400 e 500 trabalhadores morreram no período de obras nos estádios –, olhar para trás não surpreende. Como analisa o pesquisador de política e futebol e professor da Universidade Federal do Paraná, Luiz Carlos Ribeiro: “A Copa surge como uma referência mundial em um contexto nacionalista. Mas a partir da década de 1970, e sobretudo 1990, ela adquire uma força comercial”.
A Copa do Mundo funcionou várias vezes como um espelho dos acontecimentos internacionais, além de estar rodeada de interesses econômicos. De acordo com o especialista, a paixão do torcedor no futebol, se parece com a paixão por uma ideologia, por exemplo. Ribeiro complementa: “Essa situação de interferência da política nos campos e vice e versa é constante. Futebol é política, mas em alguns momentos essa relação é mais explícita”. A seguir estão outras vezes em que a Copa provou que política e futebol se misturam.
1938 – Itália fascista e os “camisas negras”
O fascismo já se espalhava pela Europa quando a Itália garantiu o bicampeonato mundial. A Espanha passava pela Guerra Civíl e a Áustria já havia sido ocupada pela Alemanha – às vésperas da Segunda Guerra. Benito Mussolini usou a Copa como vitrine do regime. Na partida contra a França (3 X 1), país que sediou a edição, a seleção italiana entrou em campo com uniformes pretos, em referência à milícia paramilitar “camisas negras”, e ostentando um escudo com o símbolo do partido fascista – um feixe e uma machadinha. A Itália não voltou a usar preto na competição, que só voltou a acontecer em 1950.
1974 – Prisões e tortura no Estádio Nacional
A estreia do Chile no Mundial ocorreu no ano seguinte ao golpe militar que tirou o presidente Salvador Allende do poder para o colocar nas mãos do ditador Augusto Pinochet. Logo que o novo governo assumiu, as perseguições, torturas e execuções aumentaram, e os militares fizeram uma nova vítima – o Estádio Nacional, em Santiago, que se tornou um centro de detenção de presos políticos. Em plena Guerra Fria, a União Soviética, que havia rompido as relações diplomáticas com o Chile, se recusou a disputar o jogo de volta das eliminatórias para a Copa contra a seleção chilena no Estádio Nacional em 1973. A Fifa enviou uma comitiva para visitar a cancha, e mesmo com a presença de 7 mil detidos no estádio no momento da visita, a federação alegou que a situação era tranquila e que a partida deveria acontecer. A União Soviética não enviou seus jogadores, e o Chile se classificou para disputar o Mundial.
1986 – Copa no estilo América Latina
A polêmica Copa de 1986 já começou com um susto – após a recusa tardia da Colômbia, em 1982, o México aceitou sediar o torneio às pressas. Enquanto a Fifa fazia exigências extravagantes, as obras públicas para receber as partidas não cabiam no orçamento do Estado colombiano, que passava por uma grave crise econômica e perdia a guerra contra o narcotráfico. A desistência pareceu a melhor saída para o então presidente colombiano Belisario Betancur, que declarou na ocasião: “não se cumpriu a regra de ouro, segundo a qual o Mundial deveria servir à Colômbia e não a Colômbia servir à multinacional do Mundial”.
Nesta mesma edição, Diego Maradona fez seu lendário, e polêmico, gol de mão contra a Inglaterra nas quartas de final. Na disputa de bola contra o goleiro, El Pibe de Oro empurrou a bola com a mão para marcar e provou que um gol pode ser anti-imperialista. A tensão já existia fora do campo – em 1982, a Argentina perdeu 650 soldados e as Ilhas Malvinas na Guerra contra o Reino Unido. A vitória (2 X 1) não foi apenas simbólica, e os albicelestes conquistaram o bicampeonato naquele ano.
2014 – Não vai ter Copa
Em 2013, as grandes cidades brasileiras foram invadidas pelo grito “Não vai ter Copa”. O país que sediou o Mundial de 2014 teve suas ruas tomadas por coletivos sociais, manifestantes autônomos e até mesmo Black Blocs, que protestaram em descontentamento com o governo de Dilma Rousseff que parecia se preocupar mais em atender o “padrão Fifa” do que com a gestão dos serviços públicos como educação, saúde e transporte. Com obras atrasadas e denúncias de superfaturamento e corrupção, o movimento de oposição ao evento ganhou força e logo a polícia foi acionada para reprimir a população com violência. As manifestações não impediram a realização do torneio, mas as consequências da agitação política são sentidas até hoje – em 2015 o Brasil passaria pelo impeachment da presidente e os escândalos da operação Lava Jato.