“Deita”, “roupa”, “vai”, “gira”, “me bate”, “diz teu nome”, “me abraça”, “sente”; e um dedo em riste em frente aos lábios selando um segredo incômodo com o público. Essas são as poucas palavras ditas na peça Transgressões da companhia Pia Fraus. Em Transgressões, a sexualidade, o desejo e o instinto humano são mostrados em todas as suas facetas por meio da expressão corporal. Num misto de teatro de bonecos, teatro convencional e balé, os quatro atores da peça se rendem e mergulham um no outro, explorando a natureza do desejo humano.
Não existe uma linearidade na peça. Ela não é uma história com começo, meio e fim, mas sim uma divisão entre vários atos diferentes. A obra trata de tabus e passeia por todas as esferas do desejo reprimido. O desenvolvimento se dá através da relação de dois casais de atores que entram numa cadeia de desejo, repreensão e dominação. Com o auxílio de bonecos, são apresentados os “fantasmas do nosso querer”, os nossos impulsos mais primitivos que escolhemos jogar debaixo do tapete – porque a realidade é bem mais “feia”. São várias as sequências que terminam com um dos personagens colocando o indicador em frente aos lábios como quem pede ao outro pra não dizer nada, para guardar segredo, para deixar desse jeito. Todo mundo sabe, mas ninguém diz.
Nesse ponto, a peça dialoga, em alguns aspectos, com o conto “Vísceras” de Chuck Palahniuk. Ambos abordam essa face instintiva e selvagem da existência humana sem pudores, e tornam público a hipocrisia dos que negam e tentam reprimir esse desejo, como se ele não existisse. Todo mundo sente, todo mundo pulsa e vibra, mas o sexo nos tempos atuais é maquiado, é produzido. Transgressões traz à tona justamente a crueza do querer.
Mas até nessa crueza existe um lirismo inegável. O uso inteligente da expressão corporal mantém a sensação de que se está assistindo um balé durante a peça inteira. A dança e a trilha sonora são elementos-chave para a poética da apresentação. Mesmo nos momentos mais pesados e explícitos, é difícil não prender a respiração ao ver os quatro atores dançarem e interagirem entre si num jogo de entrega e submissão. Outro ponto chave que torna Transgressões extremamente peculiar é o uso dos bonecos. Quando entram em cena, os bonecos não são apenas manipulados para que se crie um outro personagem, eles viram uma extensão do corpo dos próprios atores. Chega a ser assombrosa a naturalidade e precisão com a qual os bonecos se movem e como ambos interagem entre si.
A direção da peça é coesa e ousada, e os atores impecáveis em todos os quesitos técnicos, apresentando sempre um preparo físico e psicológico intensos. Afinal, não é exatamente fácil fazer uma peça que aborde o tema da sexualidade de maneira tão franca e que se valha tanto da nudez e situações que, ao menos para boa parte dos atores, tem um “quê” constrangedor. Além disso, a peça não se perde em momentos de “vulgaridade”, o contraponto entre o visceral e o lírico criam um espetáculo balanceado e um fluxo natural na peça, em que tudo que está ali parece extremamente necessário para o argumento da obra.
Há quem torça o nariz para o experimentalismo por julgar que essa alcunha é sinônimo de prepotência e pretensão. Transgressões, por mais experimental que seja, não cai nesse pré-conceito. Aqui se trata de despir-se de todas as embalagens, maquiagens e máscaras para deixar somente a essência. Ao aceitarmos nossas próprias transgressões, nossos próprios desejos reprimidos, nos compreendemos melhor como seres humanos. Ao aceitarmos o que somos, nos tornamos libertos. Somos todos transgressores, no fundo, somos todos livres.
Visão do diretor
Beto Andretta, diretor da companhia Pia Fraus, comenta que, aos 30 anos de existência, a companhia vive um período de renascimento e renovação nas formas de se expressar. Transgressões é a prova viva disso. A peça teve um período de preparação de cinco meses e estreou no Festival de Teatro de Curitiba. Segundo o diretor, a resposta tem sido positiva: “É um espetáculo um pouquinho polêmico mas a maioria do público está curtindo e vivenciando. Mas o importante, independente da concordância ou não com o conteúdo, é a comunicação da emoção que a gente quer passar”.
O conceito da peça surgiu da ideia de fazer um espetáculo voltado para o público adulto no aniversário de 30 anos da Pia Fraus. Segundo Andretta, eles não tinham financiamento para fazer esse espetáculo, somente o acervo de bonecos da companhia. “O que nos motivou era a necessidade de se expressar nesse ponto de vista adulto, tratando da sexualidade”, diz, e completa “a dificuldade gera a criatividade e a gente aceitou o desafio”.
Para essa peça, foram usados bonecos antigos da companhia, alguns datando de 1989, de outros espetáculos. “São bonecos mais velhos que têm muita história, até o titulo Transgressões vem por causa disso. Nós transgredimos até a nossa própria história”, revela Andretta. Mas, segundo o diretor, a ideia era trabalhar não só com os bonecos, mas buscar deixar a expressão corporal como protagonista dentro da peça. Para isso, foi necessário um tipo de intérprete específico para o espetáculo: os quatro atores do elenco têm formação em balé e expressão corporal.
Andretta comenta também que não sente mais diferença ao trabalhar com o público adulto e o público infantil. “Tanto a criança quanto o adulto me interessam muito, no sentido de me expressar para eles”, diz. A Pia Fraus tem um foco especial nos espetáculos infantis, inclusive Transgressões e uma peça para crianças da companhia foram ensaiadas ao mesmo tempo, pelo mesmo elenco, o que foi um desafio para os atores, segundo o diretor. “O intérprete é isso, ele tem que estar preparado para mostrar as vísceras dele enquanto pessoa, se expor, e mostrar sua intimidade e ao mesmo tempo contar uma história super lúdica para crianças, sem trazer nada de lá pra cá e vice-versa”, finaliza.