dom 22 dez 2024
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Brenda Lee e o Palácio das Princesas é o resgate de uma memória transcestral

O Teatro Zé Maria estremeceu por duas noites consecutivas, domingo (2) e segunda-feira (3), diante de seis atrizes transvestigêneres, que preencheram o palco com a vida da ativista LBTQIAP+ Brenda Lee, responsável pela primeira casa de apoio para portadores de HIV/AIDS no Brasil. O musical paulistano “Brenda Lee e o Palácio das Princesas” compõe a mostra Lúcia Camargo do Festival de Curitiba, o maior evento brasileiro de teatro, e foi um dos primeiros espetáculos a ter seus ingressos esgotados. 

A montagem foi fabulosa. Não só por misturar a biografia com os aspectos fantásticos do drama, mas pela qualidade da peça. Atuação, melodia, roteiro, tudo parecia fluir em harmonia feroz, bárbara. Os diálogos, recheados pelo dialeto pajubá, o humor, as vivências e as violências representadas em Brenda Lee e o Palácio das Princesas promovem com êxito o resgate de uma memória apagada por meio de um teatro divino. A peça foi encenada pelas atrizes transvestigêneres Verónica Valenttino, Olivia Lopes, Tyller Antunes, Leona Jhovs, Rafaela Bebiano, Andrea Rosa e o ator cisgênero Fabio Redkowicz, dramaturgia por Fernanda Maia e direção de Zé Henrique de Paula.

Para Leona Jhovs, atriz, diretora e roteirista trans, o teatro é “o que me mantém viva, que me alimenta, que me provoca, que me faz ser, acontecer, chegar em pessoas, que faz pessoas chegarem a mim; o teatro para mim é alimento.” De acordo com a artista, a partir do entendimento da imposição de uma persona, descobriu a arte de viver outras vidas. “Quando eu me entendi por gente, entendi que me implantaram uma personagem, chamaram de Leonardo, então vamos jogar o jogo deles, vamos para o teatro”, conta.

Enredo vivo

Silenciada pela história, a travesti e pernambucana; Caetana; chega a São Paulo aos 14 anos e estabelece no Bixiga, tradicional bairro do teatro paulistano, uma pensão de acolhimento para transgêneres vítimas da prostituição em situação de vulnerabilidade.

“Nasceu Caetana, tornou-se Brenda Lee”. O verso de uma das primeiras canções apresenta a complexidade da protagonista, que desempenha o papel de figura materna para as acolhidas no “Palácio das Princesas” — o nome provocativo é uma resposta direta a uma notícia que nomeou a pensão de Brenda Lee como um palacete de bruxas. 

Devota de Nossa Senhora Aparecida, a travesti abre mão de recursos financeiros e materiais — e até mesmo da própria cama — para promover o bem-estar das portadoras de HIV. Em um momento bem marcante, Brenda compartilha com um médico a necessidade de prostitutas trans, para se defenderem da violência policial e das ruas, cortarem a pele com giletes, afastando-os com o próprio sangue latente. 

Na vida real e na ficção, Caetana é assassinada friamente em 1996. Em cena póstuma, suas pupilas agradecem a proteção, como um anjo da guarda, título pelo qual Brenda Lee ficou conhecida, e compartilham com a travesti as notícias de um futuro de esperança. 

A atriz que interpreta a protagonista, Verónica Valenttino,  une-se às companheiras, abandonando a personagem por um momento, para agradecer, compadecida, o legado inquestionável de Brenda Lee na proteção da população LGBTQIAP+.

Verónica foi a grande vencedora do Prêmio Bibi Ferreira de Teatro, na categoria “Revelação em Musicais”. O espetáculo também levou para casa mais duas categorias, que incluem “Melhor Roteirista” para a dramaturga Fernanda Maia e “Melhor Atriz Codjuvante”,  para Marina Mathey.

Violência à população transvestigênere

Caroline Silva, 31, mulher trans curitibana e estudante de jornalismo, conta que, apesar da importância eterna de Brenda Lee para a comunidade trans, sua vida foi tirada pela opressão: “A gente tem uma história linda, que termina da maneira mais trágica possível, e é a maneira mais comum que termina a vida de uma trans no Brasil –  sendo assassinada.”

Por 14 anos consecutivos, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, de acordo com o dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras, produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). E, embora a homofobia e a transfobia tenham virado crime em 2019, onze estados brasileiros não computam dados sobre LGBTQIAP+fobia – a descoberta foi feita pelo Jornal Hoje, da Rede Globo, em 2021.

Em 2022, 131 pessoas trans e travestis foram assassinadas no Brasil, conforme dossiê da Antra, mas – apesar da brutalidade do número – existem outras formas de violência, mais invisíveis à opinião pública, contra essa população. Números de 2017 mostram a dimensão do isolamento dessa comunidade: 72% de travestis e mulheres trans não terminaram o ensino médio e 0,02% concluiu uma faculdade. A opressão também ataca pela via da prostituição. Ainda segundo dados da Antra, de 2020, “90% da população de travestis e mulheres transexuais utilizam a prostituição como fonte primária de renda.” 

Por Francisco Camolezi, Murilo Lemos Bernardon e Paula Bulka Durães

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