Hospedar-se em hotéis pode ser uma situação estranha. Outra cama, outros cobertores, outro banheiro, nada é de quem ocupa aquele quarto com exceção das roupas na mala. Mas é difícil alguém imaginar que, mesmo em um ambiente tão à parte, a privacidade dentro daquelas quatro paredes poderia estar comprometida. É isso que aconteceu com quem se hospedou no Manor House Motel entre os anos 1969 e 1995, que era localizado em Aurora, nos Estados Unidos.
Gay Talese, jornalista e escritor norte-americano, publicou em 2016 o livro “O Voyeur” (The Voyeur’s Motel no título original em inglês), que conta a história de Gerald Foos, antigo dono do Manor House Motel e provavelmente uma das pessoas mais excêntricas e interessantes de se ler sobre. Um homem impulsionado por conhecer as pessoas em seu estado mais natural, um observador nato e, também, um invasor da privacidade alheia.
Imagine você, leitor, que ao entrar em um quarto de hotel, enxergou no teto uma estrutura de 35cm por 15cm. Parecia um respiradouro, algo que trouxesse conforto a quem dormiria lá. Mas, na verdade, é um espaço pelo qual alguém conseguiria espiar tudo o que acontecia dento do ambiente sem nunca ser identificado. Essa foi a estrutura que Foos montou para satisfazer seus impulsos voyeurísticos – que o acompanharam desde que se tornou um adolescente descobrindo a sexualidade humana através das espionagens que fazia do lado de fora da janela de sua tia Katherine.
Durante as quase três décadas como dono do Manor House Motel (chamado por ele de “laboratório”), Gerald Foos realizou o que disse ser uma pesquisa para responder à pergunta sobre “como as pessoas se comportam sexualmente na privacidade de seu próprio quarto”.
Essa característica científica da pesquisa era tão presente na realidade que Foos construiu, que ele estabeleceu um método de observação, analisando ângulos, posições, intimidade das pessoas, características éticas e morais etc. Além disso, escreveu cada dia de observação em um diário que chamou de “O diário do Voyeur”.
Gerald Foos – vezes sozinho, vezes junto de sua primeira esposa, Donna, e posteriormente Anita – engatinhava pelo sótão do motel em uma estrutura de tapetes que não permitia que seu hóspede soubesse que alguém estava logo acima. Enquanto observava as pessoas em seus quartos e relatava suas experiências, ele cumpria com seus desejos sexuais.
A peculiaridade de Gerald não para em apenas em seu “laboratório”, ele também é regido por um alto valor moral. Pode parecer dúbio, mas o dono do Manor House Motel, em contraponto a sociedade em que estava inserido, era um libertino sexual e não demostrava arrependimento ou temor pelos crimes de invasão de privacidade que ele cometia (e sabia que cometia).
Em nenhum momento ele julga as atividades de seus hóspedes através de um olhar preconceituoso. Ele gostava de ver momentos de sexo grupal, homoafetivo e entre pessoas de diferentes etnias em uma época que os Estados Unidos eram abertamente contra todas essas características. Em um trecho do seu diário, Foos diz que, se as pessoas vissem como é comum as situações de sexo fora do padrão heterossexual, deixariam de dizer que eram “desvios” e passariam a chamar de “interesses”.
Gay Talese não é chamado de “inventor do jornalismo literário” à toa. Sua escrita mistura elementos da narrativa ficcional com a objetividade e fidelidade aos fatos do jornalismo com uma precisão e qualidade que dificilmente alguém consegue superar.
Fato é que Talese trata Gerald Foos como uma fonte, e, por isso nunca revela os seus relatos sem a autorização explicita dele para entrevistas on the record (termo jornalístico que se refere à quando o entrevistado permite o uso de seu nome e imagem em reportagens). Por isso, mesmo tendo entrado em contato com o Voyeur em 1980, apenas publicou seu livro em 2016, após receber a autorização.
Além disso, o escritor traz diversos trechos das centenas de páginas do diário do Voyeur como provas da história e ainda relata as possíveis inconsistências de datas que, nas análises investigativas de Gay Talese, não bateram com os escritos de Foos.
As escolhas de palavras do jornalista são tão precisas que prendem o leitor a uma leitura fluida, ritmada e não cansativa. O livro se inicia com “Conheço um homem casado, com dois filhos, que comprou um motel […] a fim de tornar-se um voyeur-residente”. A partir daí ele começa sua narrativa, que só vai se encerrar com a fala de Gerald Foos dizendo “Já vi o suficiente”, palavras emblemáticas para um voyeur.
A obra se torna uma excelente forma de conhecer mais sobre partes do jornalismo que não são muito vistas pelo público em geral, essa atividade que vai além do factual e escancara a sociedade para ela própria. O livro pode incomodar alguns leitores que se sentem envergonhados em ler os relatos tão explícitos de Gerald Foos, mas, ainda assim, a curiosidade mantém a leitura. Além disso, ao fim da história, há uma entrevista que Gay Talese deu para a Paris Review que é uma excelente forma de conhecer mais sobre esse autor tão prestigiado.