qui 27 nov 2025
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Ferrovia que hoje preocupa o trânsito pode virar o VLT de Curitiba no futuro

Com o aumento de acidentes, cresce a pressão por um contorno ferroviário e o debate sobre o reaproveitamento dos trilhos urbanos

Curitiba foi a capital brasileira que mais registrou acidentes envolvendo trens em 2024, segundo o relatório da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). O documento aponta que a cidade somou 29 ocorrências no último ano — mais de 20% do total do Paraná. Ao longo dos últimos quatro anos, os bairros com maior número de registros são Cajuru (25), Uberaba (8) e Sítio Cercado (6).

O último acidente envolvendo colisão entre transportes ocorreu em 22 de julho deste ano, quando um trem atingiu um ônibus biarticulado e o partiu ao meio. O caso aconteceu na avenida Paraná, no bairro Cabral, e deixou pelo menos 11 pessoas feridas. Além das colisões, Curitiba registrou casos de atropelamentos ao longo do percurso da ferrovia, especialmente em bairros como Sítio Cercado, Alto Boqueirão, Uberaba e Cajuru, onde os trilhos atravessam comunidades. A gravidade das ocorrências ultrapassa a questão dos cruzamentos de vias e reacende o debate sobre segurança e planejamento urbano em uma cidade que, historicamente, cresceu depois da ferrovia.

Mapa de acidentes de trem em Curitiba. Arte: Nicole Ribeiro

O HISTÓRICO DA FERROVIA PARANAENSE

Segundo o arquiteto e urbanista Fabiano Borba Vianna, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), a construção da ferrovia Paranaguá–Curitiba, no século XIX, foi determinante para o desenvolvimento da cidade e para a consolidação de ciclos econômicos no estado. “Entretanto, o estado atual da ferrovia no interior de Curitiba se tornou um passivo com graves consequências ambientais, no desenvolvimento urbano, na mobilidade, no transporte coletivo e na saúde da população, com grande número de acidentes e segmentação territorial em bairros com alta densidade”, comenta Vianna.

Segundo o Ippuc, a ferrovia atravessa 21 bairros de alta densidade populacional, como Barreirinha, Bacacheri, Cabral, Alto da XV, Cristo Rei, Jardim Botânico, Cajuru, Uberaba, Boqueirão, Alto Boqueirão e Sítio Cercado. “Esses cruzamentos geram impacto no sistema de mobilidade da cidade, especialmente em trechos como a canaleta do BRT nos eixos estrutural norte e leste, interceptando também o sistema Inter II, o Interbairros, várias linhas alimentadoras e linhas metropolitanas”, explica Vianna.

O urbanista explica que, atualmente, o trem de carga não possui destino útil dentro da cidade, servindo apenas como passagem e para manutenção do próprio trem. “Curitiba apresentou ao Governo Federal as justificativas para a construção do Contorno Ferroviário, que desviaria das áreas populosas dos bairros e utilizaria o espaço livre após a remoção dos trilhos para fins de estruturação urbana, como construções de casas, por exemplo”, afirma.

OS ACIDENTES REGISTRADOS NA CAPITAL

Os acidentes, envolvendo transporte público, privado ou pedestres, evidenciam a problemática de um trem de carga cruzando a cidade. Segundo o pesquisador do Observatório das Metrópoles e mestre em planejamento urbano Robert de Almeida Marques, o agravamento do problema começa na ausência de cercamento das ferrovias, desafio comum em alguns países da América do Sul como Argentina, Bolívia e Peru, onde as linhas férreas passam por áreas urbanas. “O aumento da irresponsabilidade, a desorganização da cidade, a má condução dos motoristas, a falta de cancelas e o sistema de sinalização ineficiente somam-se ao problema”, afirma.

A indefinição sobre quem deve agir também atrasa soluções. “A prefeitura poderia ter instalado uma cancela que abaixa quando o trem está passando, mas há uma disputa porque o espaço é da União, por se tratar de uma ferrovia. Isso gera uma disputa política sobre de quem é a responsabilidade”, comenta Robert.

SOLUÇÕES DISCUTIDAS PARA O PROBLEMA

A solução, debatida há anos, é cara e complexa: a construção de um contorno ferroviário. Segundo Vianna, o Ippuc elaborou, em 2009, com a Comec, o Plano Diretor Multimodal, que prevê a retirada da ferrovia do interior da cidade e o reaproveitamento das áreas restantes para estruturação urbana. “A retirada da ferrovia com a construção do Contorno Ferroviário vai possibilitar inúmeros benefícios para Curitiba e resolverá as limitações operacionais da administradora da linha férrea, hoje limitada pela passagem em áreas da cidade com um alto número de construções e moradores” , explica o urbanista.

Há também movimentações em Brasília e na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (ALEP), além de iniciativas de vereadores de Curitiba, que discutem a criação de planos para eliminar o trânsito de trens dentro das cidades. “O Governo Federal tem estudado isso porque o problema não é só em Curitiba. A ideia é construir contornos ferroviários nos locais por onde esses trens passam. Em um cenário possível, a principal proposta seria reutilizar os trilhos já existentes dentro da cidade”, diz Robert. Apesar do estudo de 2009 e das sinalizações do governo federal, os contornos ferroviários continuam apenas no papel, sem data para sair do projeto.

UM NOVO DESTINO PARA OS TRILHOS DA CIDADE

Com a construção do contorno ferroviário, cresce a possibilidade de reaproveitar os trilhos urbanos. Robert comenta que a implementação de um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) poderia ser estudada, já que a construção de um sistema desse tipo já está em pauta na capital. “Curitiba vai ter um VLT. O Governo Federal já separou cerca de R$ 2 bilhões para a construção de uma linha que ligará o Centro Cívico ao aeroporto Afonso Pena, em São José dos Pinhais. Ao que tudo indica, esse VLT vai substituir o BRT Boqueirão, usando a canaleta do ônibus vermelhão”, explica.

Segundo ele, seria possível adaptar a ferrovia existente para o uso do VLT, com ajustes estruturais e pontos de eletrificação. “Mas a expansão desse sistema, usando apenas os trilhos atuais, atenderia um público limitado, devido à localização dos trechos da linha férrea na cidade”, observa. Mesmo com essa limitação, o VLT ainda é uma alternativa viável. “Para atender um público maior, a cidade precisaria adaptar também as vias dos ônibus. Seria possível transicionar as vias exclusivas, como a canaleta do ligeirão, para o uso do VLT, como é o caso do trecho entre o Centro Cívico e o aeroporto”, diz Robert.

Ele explica que o VLT pode operar tanto nas canaletas de ônibus quanto nas vias rápidas. “As vias rápidas têm três ou quatro faixas; seria possível dedicar uma exclusivamente ao VLT. Mas, para isso, é necessário incentivar o passageiro a deixar o transporte individual e aderir ao coletivo, caso contrário, o trânsito só aumentaria”, comenta. Além de transportar mais pessoas, o VLT pode reduzir o tempo de deslocamento e o custo da tarifa. “Ele ganha velocidade mais rápido e tem maior capacidade. Consequentemente, a tarifa tende a ser mais baixa”, afirma.

Mesmo com a modernização, Robert alerta que os riscos de acidentes não desaparecem. “Com a instalação de um VLT, os acidentes podem continuar acontecendo. Não é só mudar o transporte, é preciso implantar cancelas, cercas e outras proteções, como é feito em boa parte da Europa”, explica. Ele cita como exemplo a cidade do Porto, em Portugal, que possui um modelo híbrido entre VLT e metrô. “É o mesmo veículo que funciona como VLT na superfície e como metrô em trechos subterrâneos. É um modelo eficiente, bem conectado à cidade e que poderia inspirar Curitiba”, conclui.

A NECESSIDADE DE REPENSAR O PLANEJAMENTO URBANO

Os trilhos que um dia impulsionaram o progresso do Paraná hoje pedem um novo rumo. De símbolo industrial a obstáculo urbano, a ferrovia de Curitiba precisa ser redesenhada para uma cidade moderna. Os registros de acidentes mostram a urgência de discutir um problema antigo que segue sem solução definitiva. Os custos para a construção do contorno ferroviário e o possível reaproveitamento dos trilhos para o VLT são altos, mas representam um investimento de longo prazo em segurança, mobilidade e estruturação urbana para uma cidade que cresce a cada dia.

Confira a conversa completa com Robert de Almeida.

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