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sex 26 jul 2024
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As batatas de Miguel

Os desejos e angústias de uma família rara


Por Felipe Reis, Francisco Camolezi, Jaine Vergopolem, Juliana Bueno e Rafael Shimeinski


Kauane dirigia em uma rodovia arborizada. O carro, um Ford Excursion, doação de um amigo da família, era espaçoso, ideal para os passeios de domingo. Pelas janelas, a natureza tímida da recém-chegada primavera na Pensilvânia, no norte dos Estados Unidos. No banco de trás, Miguel, de cinco anos. Tinha acabado de sair da escola. O silêncio, sobreposto por um flashback dos anos 1980 que tocava na rádio, foi interrompido: “Tô com fome!”. No susto, Kauane pisa forte no freio. “Quero batata”, disse Miguel. Kauane segura o choro e muda os rumos na direção do primeiro McDonald’s à vista. Comprou batatas como nunca.

Foi a segunda vez que Miguel verbalizou. A primeira, em um retiro espiritual da igreja que a família frequenta, pegou Kauane tão desprevenida quanto. “Mamãe”, disse, enquanto trocava as fraldas. Emocionada, correu para mostrar para Daniel, o pai. No encontro dos olhos, Miguel o reconheceu: “Papai!”. O irmão mais velho, curioso com a barulheira, não passou sem cumprimentos. “Pedro!”. Era uma dádiva divina.

Isso porque, geralmente, Miguel não fala. Sente dificuldade para ficar sentado ou em pé, e deu seus primeiros passos em fevereiro de 2021, aos dois anos e sete meses de idade. Nasceu roxinho, em Curitiba, no dia 5 de julho de 2018, com uma mutação ultrarrara no gene CASK, cromossomo X. É o terceiro caso registrado no mundo. Por conta da mutação, Miguel convive com macrocefalia e baixo tônus muscular. Sofre de epilepsia e atraso cognitivo, motor e de fala, além dos sintomas autísticos.

Parto às quatorze e cinquenta e nove

O relógio marcava exatamente onze e quarenta e cinco da manhã quando Kauane gravava um vídeo em seu carro. Daniel passava pela Avenida Marechal Floriano Peixoto, Curitiba, em direção à maternidade. Quem dava as boas-vindas para Miguel, nascido com trinta e nove semanas e cinco dias de gestação, era um daqueles dias ensolarados de inverno. Faltava um minuto para às 15h quando o menino deu seu primeiro suspiro na terra. 

Kauane desejava aguardar o nascimento de forma natural, porém, ao se aproximar do parto, sentindo os primeiros sinais de encaixe e descida do pequeno, a expectativa se transformou em preocupação. Os médicos descobriram que Miguel sofria de bradicardia, ou seja, seus batimentos cardíacos apresentavam uma redução considerável. A complicação a levou a uma cesárea de emergência, e Miguel nasceu cerca de sete minutos após Kauane ser levada para a sala de cirurgia. Apesar do choque, o recém-nascido apresentava um estado de saúde estável. Passadas 48 horas, mãe e filho receberam alta hospitalar e, aparentemente, tudo estava dentro dos conformes.

Miguel e Kauane. (Foto: Acervo da família)

Durante o período de internação, foram realizados os testes fundamentais: a Triagem Neonatal Biológica, popularmente conhecida como teste do pezinho, e a Triagem Auditiva Neonatal Universal, o teste da orelhinha. Os resultados dos exames foram positivos, o que tranquilizou a família. A primeira consulta pós-parto aconteceu logo após o nascimento, e Miguel estava saudável.

A gravidez foi cuidadosamente planejada. Desde o momento em que descobriram a gestação, Kauane e Daniel demonstraram uma união ímpar e empreenderam todas as medidas necessárias para garantir o acompanhamento adequado. Com todos os exames e consultas médicas indispensáveis para monitorar o desenvolvimento saudável do bebê, deram início ao pré-natal. 

Em busca de preparo para a chegada de Miguel, os pais decidiram participar de um curso especializado, o “Parto Amoroso”. Essa formação, oferecida em Curitiba, é promovida pelo Serviço de Maternidade Unimed Curitiba (Semuc). O curso abrange um período de aproximadamente um ano, proporcionando aos pais conhecimentos e orientações sobre o parto e os cuidados com o recém-nascido. 

Pedro, aos seus sete anos de idade, queria um irmão. O menino sonhava com alguém para brincar junto. E foi aí que nasceu Miguel. Pedro, logo de cara, se conecta profundamente com o novo irmãozinho. Miguel, quando neném, era adorável, tranquilo e sereno. Alimentava-se bem e, de tanto mamar, chegou a desenvolver calos nos lábios. Nos primeiros meses, ganhou peso considerável, precisando de horários de amamentação mais regrados. Além disso, adorava passear de carro.

Miguel, o super-indivíduo

Miguel viveu os primeiros dois meses de vida como uma criança comum. Foi durante uma viagem em família aos Estados Unidos, onde moram os avós paternos, que Kauane percebeu os primeiros sinais de irregularidade. Ao trocar as roupas de Miguel, notou que, de repente, a camisa não passava mais pela cabeça. Precisava usar a tesoura pra fazer um recorte e afrouxar a gola. Nas palavras da mãe, “o piá tava cabeçudo pra caramba”.

No dia da volta para o Brasil, em 2 de novembro, o encontro com a pediatra já estava agendado. Assim que entraram no consultório, Kauane percebeu o espanto estampado no rosto da doutora. A médica tirou as medidas do perímetro cefálico de Miguel e constatou que as cabeças de Miguel e Kauane, de 33 anos, tinham o mesmo tamanho. Sob suspeita de hidrocefalia, pediu que a família se encontrasse com um neurologista. “Ok, eu marco”, Kauane disse. “Não. Eu preciso que você vá agora”, respondeu a pediatra. 

Kauane congelou. Até ali, achava que o filho era apenas um “cabeçudinho bonito”. Naquele momento, percebeu que algo intenso estava acontecendo. Sentiu-se em cheque. Para o neurologista, tratava-se de um caso de hidrocefalia. Parecia certo. Fizeram a ressonância no mesmo dia. A ideia era medir, localizar e drenar o líquido. O exame, no entanto, não encontrou líquido nenhum. Pelo menos, não em excesso. O resultado era inconclusivo. 

Foram solicitados novos exames e, dali em diante, a vida da família se resume em caos. Exames de sangue, de imagem, ressonância, eletroencefalograma e busca por erros inatos de metabolismo. Dos cinco dias úteis, passaram a despender uma média de três a quatro no hospital. O perímetro cefálico de Miguel crescia milímetros por semana e, a cada novo registro, era preciso também uma nova ressonância. 

Por volta do primeiro ano de idade, Miguel foi encaminhado para o ambulatório de doenças raras do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, um dos maiores hospitais pediátricos do país. Todos os exames pareciam inconclusivos, e a busca pelo diagnóstico não apresentava grandes resultados. O braço, de tantas agulhadas, parecia vítima de um vespeiro.

Miguel na maca de um hospital. (Foto: Acervo da família)

O Hospital Pequeno Príncipe atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e, por isso, depende de uma série de protocolos. É preciso seguir uma ordem na aplicação dos exames: do mais barato ao mais caro. O exame genético, que identifica mutações específicas nos cromossomos, proteínas e genes, estava fora de cogitação. Na época, a fila de espera chegava a dois anos. A médica, então, aconselhou a família a buscar o exame em laboratórios particulares.

Foi a primeira vez que a família de Miguel organizou uma vaquinha. O áudio disparado pelo WhatsApp em que Kauane explicava a situação viralizou e, em 48 horas de campanha, a meta foi batida. A família precisou vir a público pedir que as pessoas parassem de enviar doações. Kauane e Daniel, policiais militares, contaram com uma rede de apoio entre os colegas de trabalho.

A filha de Rosemari Coradin, Milena, foi diagnosticada com a Síndrome de West há 25 anos. Rosemari relata que, na época, além de informações escassas, não havia uma rede de apoio para famílias e crianças diagnosticadas com doenças e síndromes raras. Foi só em 2014, com a Portaria 199, que as diretrizes para o tratamento de pacientes com doenças e síndromes raras foram reguladas. O decreto institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras e aprova as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no SUS.

O exame de Miguel foi realizado em agosto de 2019, em São Paulo. A expectativa era de que o relatório retornasse em até 45 dias, no entanto, foram precisos 15 dias a mais. O resultado: mutação no gene CASK. Não apenas raríssima. Ultra-rara. Para ser considerada uma doença rara pela Portaria 199, por exemplo, é preciso uma incidência de 65 pessoas em cada 100.000 indivíduos. Miguel era o terceiro em 7 bilhões. Por mais que pesquisasse incessantemente, Kauane não encontrava nenhuma informação sobre a doença na internet.

Quem cuidou do caso foi o doutor Rui Pilotto, responsável pelo Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Federal do Paraná. Apesar de contratado pelo particular, Rui nunca cobrou pelas consultas de Miguel. Em novembro de 2019, pediu um tempo para estudar o caso. Rui e família voltaram a se encontrar em janeiro do ano seguinte. O tempo que o médico passou pesquisando sobre a mutação no gene CASK foi também o tempo que Kauane e Daniel passaram pesquisando a mutação no gene CASK. Na segunda consulta, nada do que Rui falava parecia novidade para a família. A doença, além de evidentemente rara e degenerativa, por só apresentarem um cromossomo X, era fatal em meninos. Não existia tratamento enzimático e a sugestão era colocar Miguel em cuidados paliativos. “Eu não posso dizer se seu filho vai andar, eu não posso dizer se seu filho vai falar, eu não posso dizer se seu filho vai sobreviver”, disse Rui. Como o diagnóstico não apresentava tratamento, Miguel recebeu alta no ambulatório de doenças raras do Hospital Pequeno Príncipe. A expectativa era que não chegasse aos sete anos de idade. 

Nesse contexto, Rui Pilotto sugere à família que o caso fosse acolhido pelo Hospital de Clínicas. Pensando a longo prazo, era preciso conhecer a doença. Lá, o cuidado era holístico. Interessava aos médicos qualquer reação de Miguel. Desde as crises epilépticas até os problemas gástricos. Para Rui, “por mais que a gente não tenha como tratar, é preciso curiosidade com a doença”. Miguel era, basicamente, um objeto de estudo em cuidados paliativos. 

Por mais que a orientação dos médicos fosse justamente o contrário, o tratamento encheu a família de esperança. O atendimento era dinâmico. A família tinha contato direto com os médicos do Hospital das Clínicas. Era um cuidado próximo, de afeto. Para Kauane, apesar de não passar de uma observação de sistema, tudo aquilo indicava que as coisas tinham jeito.

Hoje, no Paraná, existem dois centros de referência no tratamento de doenças e síndromes raras. Um no Hospital Pequeno Príncipe e outro no Hospital das Clínicas. A centralização médica na capital é um problema enfrentado por diversas famílias do interior, como a do Vicente, que precisou se mudar de Reserva, cerca de 250km de distância de Curitiba, para ter acesso a tratamento e terapias. De acordo com Christine, mãe de Vicente, cidades pequenas do interior do Paraná não oferecem todas as terapias necessárias para tratamento de síndromes e doenças raras, como geneticistas e neurologistas. Para Shirley Ordônio, representante da Aliança Paranaense de Doenças e Síndromes Raras, é preciso aumentar o número de serviços de referência no estado para agilizar os processos de diagnóstico e tratamento.

Luzes ao horizonte

No HC, descobriram que a doença de Miguel se manifestava por meio da deleção de pares de bases nitrogenadas. Nesse sentido, qualquer possibilidade de cura passaria pela terapia gênica, interrompendo a produção dessas células degenerativas. Foi por intermédio de Rui Pilotto que a família entrou em contato com Roberto Giuliani, em Porto Alegre, médico referência na área.

Kauane, Daniel e Roberto conversaram, primeiro, pelas redes sociais. Trocaram telefonemas, e-mails, enviaram o diagnóstico, laudos, relatórios e artigos que os médicos do HC estavam produzindo sobre Miguel. Tudo. Giuliani retornou: “Analisei a doença, analisei o caso, conversei com doutor Rui” e, fiel ao clichê, complementa, “eu tenho uma notícia boa e uma ruim”. A boa é que, sim, era possível fazer a terapia gênica do Miguel no Brasil. A ruim é que levaria cerca de 40 anos para desenvolver um remédio. A perspectiva de Giuliani, aos 50 anos de idade, era de que, talvez, passados 40 anos, nem ele nem Miguel estariam aqui. Caso topassem o tratamento, Miguel atuaria mais como um auxílio para crianças futuras do que para ele mesmo.

Foi duro de ouvir. Soava como uma sentença de morte. O sofrimento era desesperador, cruel. Kauane chorava copiosamente. Olhava para Daniel, pai de Miguel, e perguntava: “não tem saída, né?”. Para Kauane, “é como se você estivesse condenado a uma cadeira elétrica, só esperando o dia chegar”. De volta à estaca zero.

Enquanto uma muralha de medo e insegurança toma conta das expectativas da família, Daniel se recusa a desistir. Nascido nos Estados Unidos, ele dispõe de dupla cidadania americana e pensava que, se no Brasil a terapia gênica levaria 40 anos para ser concluída, lá, talvez, as coisas andassem mais rápido. O pai iniciou uma busca incessante por contatos a fim de conversar sobre o tratamento de terapia gênica nos Estados Unidos. Encontrou alguns grupos de responsáveis e crianças com doenças raras e lá entrou em contato com uma mãe, nova iorquina, cuja filha foi diagnosticada com Síndrome de Angelman. Os sintomas são parecidos com os de Miguel. A filha realizava terapia gênica na Universidade Yale, com o cientista e médico Yong-Hui Jiang, e a pesquisa ficaria pronta em um período de quatro a seis anos.

Miguel e Daniel. (Foto: Acervo da família)

Entraram em contato com Jiang, enviaram a documentação e, depois de três meses, especificamente no último dia do árduo ano de 2020, o retorno: “Olha, desculpe a demora, estudei o caso e tenho uma boa notícia, sim. É possível a terapia gênica para o Miguel”. Na montanha russa que era a busca por um tratamento, impulsionados pelo impacto de uma rampa abrupta que antecede a subida íngreme, Kauane e Miguel decolaram suavemente acima dos trilhos.

As fronteiras, no entanto, estavam fechadas. Por conta da pandemia, sair do Brasil em janeiro de 2021 era não menos do que uma odisseia. Foi só em agosto que a família conseguiu fazer a viagem. Logo na primeira consulta, acompanhada da vice-prefeita de Newark, Lígia de Freitas, que tinha se inteirado do caso de Miguel antes da viagem da família, o doutor disse: “Estou pronto para começar a pesquisa. A única coisa que a gente precisa é financiamento, porque precisamos comprar material e pagar os pesquisadores”. Era necessário, no entanto, que Miguel se mudasse para os Estados Unidos.

Na saída da consulta, Lígia pergunta para a família: “Vocês não vão voltar, né? Eu já morei no Brasil, sei que na polícia existe um monte de licença”. A princípio, Kauane e Daniel estavam de férias. Kauane não conseguiu nem se despedir de sua mãe, que sofreu um enfarte dois dias antes da família embarcar. Disse: “Mãe, relaxe. Daqui a pouco eu volto”. A viagem, que era para durar três semanas, se estende até hoje.

Mesmo sem um tostão para financiar a mudança, a família pôde contar com o apoio de Lígia, que se ofereceu para ajudar na organização de rifas, jantares beneficentes e o que fosse necessário. Então, Kauane e Daniel começaram a dar entrada na documentação para regulamentar a estada de Miguel no país.

American way of life

Hoje, a família divide um sobrado de três andares em Kearny, Nova Jersey. No segundo andar mora uma outra família, também brasileira, que vez ou outra deixa o filho sob os cuidados de Kauane. Em cima, um argentino. É uma casa simples, com dois quartos, um banheiro, sala de jantar, cozinha e sala de estar. Foi toda mobiliada com móveis arrecadados pelas pessoas que frequentam a mesma igreja que a família.  

Todos os dias, na porta de casa, Miguel pega um ônibus para ir pra escola. Sozinho, entra às 8h30 e sai às 15h. Na primeira vez que viu o ônibus escolar carregar seu filho, Kauane não segurou o choro. Lá, todas as terapias de Miguel estão centradas na escola. Fisio, fono, terapia visual, na água, pet terapia e equoterapia. No Brasil, como a proposta é de que o paciente circule pela cidade, eram esparsas. Para Kauane e Daniel, com isso, gastavam mais tempo transportando Miguel do que Miguel passava de fato nas terapias. 

Amélie, a irmã mais nova, acorda cedo. Toma um iogurte com gotinhas de chocolate e vai para sala assistir tevê. Nesse mesmo horário, Pedro, o irmão mais velho, assim como Miguel, está na escola. Os irmãos dividem uma treliche. Na parte de cima, dorme Pedro. No meio, Amélie. Embaixo, numa cama de casal, Miguel. 

Foi em setembro, um mês depois da chegada aos Estados Unidos que, no almoço, Miguel se afogou. Tossia e, engasgado, chegou a soltar arroz pelo nariz. Às pressas, o levaram para o hospital. Não tinha plano de saúde, nada. Para se certificar que não tinha sobrado nenhum grão de arroz no pulmão, fizeram a drenagem e alguns exames. Estranhamente, o custo foi zero. Kauane e Daniel não precisaram bancar nada. Dias depois, referente aos gastos com os procedimentos médicos, recebem uma conta de U$ 5 mil. No total, cerca de R$ 25 mil.

Desesperada, Kauane se dirigiu ao financeiro do hospital para negociar a dívida. “Olha, eu não tenho como pagar. Eu quero saber o que é possível fazer porque eu não quero ficar em dívida, mas não posso pagar esse valor”, disse. A atendente pediu algumas informações sobre a renda e a moradia da família. Kauane explicou que, como convertem o salário do Brasil para dólar, estavam basicamente sem renda. Inclusive, dependiam de ajuda financeira da igreja. Para comprovar a situação, Kauane precisou juntar todos os documentos, declarações e cartas possíveis.

O esforço valeu a pena. Entregue a documentação, Miguel, Kauane, Daniel, Pedro e Amélie passaram a ter direito ao Charity Care, plano de saúde que reduz a zero — ou pelo menos consideravelmente — o valor das consultas, exames de sangue, ressonância, eletro e qualquer tipo de procedimento médico realizado por famílias carentes, durante o período de um ano. Dois meses atrás, com a regularização de Miguel em solo americano, passou também a usufruir do Medicaid, plano gerido pelo governo que cobre desde gastos com dentistas até exames. Desde fevereiro, Miguel usa três remédios: Clonidina, Miralax e Lansoprazol. A família não paga por nenhum deles.

Por conta do Medicaid, plano de saúde do governo americano, os gastos médicos de Miguel são mínimos. (Foto: Acervo da fampilia)

Nos Estados Unidos, Kauane se sente amparada. Para ela, a política pública voltada às crianças com deficiência no país é sistêmica. Ela entende não só as necessidades da criança, desde a acessibilidade até o cuidado terapêutico, como a da família. Lá, tudo é trabalhado de forma a facilitar a vida das mães e pais de crianças com necessidades especiais.

Além do transporte gratuito entre casa e escola, Miguel ganhou uma cadeira de rodas adaptada para o ônibus escolar. Miguel não tem controle cervical e, por conta da hipotonia, não consegue se segurar diretamente no banco. Enquanto corria atrás de uma cadeira para doação, exatamente uma semana antes do início das aulas, Kauane recebe uma ligação: “Olha, aqui é do border of education. Eu tô te ligando pra dizer que a gente tem uma cadeira pro Miguel. É uma cadeira usada, mas ela está em boas condições. Se você quiser, a gente passa na sua casa e deixa contigo”.

Mais uma para a coleção de dádivas que Miguel acumula. Kauane, claro, aceitou prontamente. Levaram, além da cadeira, um ônibus escolar. Fizeram todos os testes — precisavam saber se aquele tamanho era o ideal para Miguel. Ao final, perguntaram se Kauane estava satisfeita com a cadeira ou iria precisar de outra. “Ele ainda chegou a perguntar”, relata Kauane, surpresa. 

Hoje, a família conta com uma poupança no valor de 25 mil dólares. A terapia de Miguel, que pode levar de 4 a 6 anos, custa 200 mil dólares por ano.

Kauane, a mãe parteira

“Se Deus chegasse até mim e desse a oportunidade de voltar ao dia da minha concepção, na minha gravidez, me oferecesse um filho neurotípico e saudável, eu diria não”, afirmou, com convicção. Para justificar sua perspectiva, Kauane explica dois motivos fundamentais. O primeiro é o amor incondicional que ela e sua família têm por Miguel, exatamente como ele é. A imunidade ao desejo de que ele seja diferente. O segundo é o poder transformador que o filho trouxe.

“A presença do Miguel representou uma cura profunda em nossas vidas. Vai além da história que estou contando aqui. Antes de tê-lo, eu enfrentei uma intensa batalha contra a depressão. Eu vivia em um estado de apatia, sem prazer ou motivos para continuar. Nada me trazia alegria”, disse Kauane.

No entanto, com o nascimento, as coisas mudaram. A presença da criança deu à Kauane uma nova perspectiva de vida, trazendo alegria, propósito e motivação para simplesmente seguir. Por amor ao filho, Kauane move montanhas. Com fauna, flora e tudo em cima. Queima bastilhas. Depõe monarquias. A questão é simples: não existe Kauane sem Miguel. Voltar atrás e escolher, então, um outro Miguel, para Kauane, é renunciar a si mesma.

 

Miguel em seu andador ultramoderno. (Ilustração: Larissa Kaori)

Por outro lado, diferente do Brasil, onde é possível encontrar pessoas com deficiência realizando atividades cotidianas, como compras em mercados ou transitando nas ruas, Kauane relata que, nos Estados Unidos, a experiência é totalmente oposta. Ao sair na rua com Miguel, mãe e filho se sentem como uma atração de zoológico. Essa observação levanta uma questão perturbadora: por que a presença de pessoas com deficiência é tão escassa em espaços públicos nos Estados Unidos? 

Entre os diversos passeios que Kauane faz com Miguel pelas cidades estadunidenses, sempre sai com uma postura aberta e corajosa. Em parques, praças, qualquer ambiente público, diante a estranheza do outro, acolhe as perguntas e as curiosidades, que chegam especialmente das crianças. “Tia, o que aconteceu com seu filho?”. Kauane encara esses momentos como oportunidades de quebrar preconceitos, levar informação e conscientizar sobre a importância de incluir e valorizar a diversidade.

“Para quem vem perguntar sobre o Miguel, eu não tenho melindre nenhum em falar. A gente está em um local público e, geralmente, crianças da idade dele, que querem brincar, percebem que Miguel está no mundinho dele, olhando para cima, rindo, não está interagindo. E aí essas crianças perguntam o porquê de ele estar assim. Nessa hora, o pai e a mãe da criança vêm juntos, porque estão curiosos e querem saber também, aproveitando que o filho perguntou. Mas eu não tenho problema, eu falo, eu conto, eu explico”, relata.

Um pãozinho de queijo

“Lindo como um anjinho, frágil e flexível. Fofinho como uma nuvem devido à hipotonia, com a cabeça grande pela macrocrania e as pernas fininhas porque ele não anda ainda, portanto, não se exercita. Ele é um pãozinho de queijo”. É assim que Kauane descreve Miguel. 

Miguel sorrindo. (Foto: Acervo da família)

A sintonia inigualável entre Miguel e os pais é revelada pela troca de olhares. Essa forma singular de comunicação silenciosa é que permite decifrar os desejos do pequeno, sejam eles sede, fome, calor, frio, desconforto ou simplesmente a busca por afeto. No entrelaço das pupilas, os pais desvendam as necessidades e as angústias que se manifestam nos olhos de Miguel. É o sintoma de um vínculo profundo.

A comunicação vai além das palavras. Os olhos de Miguel dão a letra de uma conversa não verbal, porém, carregada de significado. Para o menino, falar não se limita apenas à articulação de palavras, é a articulação do olhar que o conecta ao mundo ao seu redor.

A voz de Miguel foi ouvida poucas vezes, o que a faz inesquecível. Mas, para aproximar ainda mais as pessoas que estão ao lado dele, Kauane costuma responder às conversas pelo filho. Ninguém melhor que a pessoa que passa todo tempo possível ao lado da criança para dar uma mãozinha com as palavras. No Brasil, a família já está acostumada a entrar em ligação e fazer perguntas sobre o dia do menino, que responde com precisão, mas pelos lábios da mãe. 

A relação entre Miguel com os irmãos, Pedro e Amelie, é de uma beleza rara. O afeto que ele nutre pelo primogênito, Pedro, é notável. Durante as noites de sono, dividem o mesmo espaço — a treliche. Mesmo enquanto dorme, Pedro se torna um refúgio reconfortante para Miguel. Um porto seguro. A cumplicidade entre os dois é inegável, e quando Pedro volta da escola, essa conexão se manifesta por meio de um boas-vindas em festa. O olhar de Miguel ao reencontrar Pedro é, por si só, um espetáculo.

Com Amelie, sua irmã mais nova, Miguel detém uma relação igualmente sensível. Ela desempenha um papel fundamental em sua vida, ensinando-lhe preciosos aprendizados. Ela estava lá quando Miguel deu suas primeiras engatinhadas. A proximidade de idade entre os dois, uma diferença de dois anos, proporcionou a Miguel a oportunidade de aprender e se desenvolver com os ensinamentos da irmã. Sob a tutela de Amélie, adquiriu habilidades como engatinhar, balbuciar e segurar objetos, avançando sempre em seu próprio ritmo. Diariamente, Amelie dedica suas preces para Miguel. Ela pede a Deus pelas suas primeiras palavras e passos.

Para além das fronteiras da moradia, é possível enxergar um cenário em que todos se unem por Miguel, como se estivessem ligados por uma causa maior. É uma visão notável, que envolve também os avós e bisavós. A união familiar é impulsionada por um senso de solidariedade mútua, e cada membro contribui de acordo com suas possibilidades. Há uma preocupação constante em relação ao bem-estar de Miguel, assim como em acompanhar de perto seu desenvolvimento, tratamentos e estudos relacionados a sua condição.

Parceiros de piquenique 

No dia 28 de maio de 2023, num sábado, Miguel encontrou-se pela primeira vez com outras crianças portadoras de mutação no gene CASK. Trata-se de fenômeno, uma vez que, no mundo, além do Miguel, existem cerca de 200 pessoas com a mutação no mesmo gene. Eram irmãos, Liam e Eli. Diferente de Miguel, que é randômico, a mãe dos irmãos carrega a mutação em seus genes. Descobriu que estava grávida do segundo filho um dia antes do diagnóstico do primeiro, e logo se alertou para a possibilidade de que o caçula carregasse a mesma mutação. 

Para Kauane, aquele sábado foi um dia simbólico. Uma experiência, de fato. Compartilharam dores, medos, esperanças e informações sobre as possibilidades de assistência e acesso à saúde e benefícios para as crianças. Confortaram-se. As famílias moram a cerca de uma hora de distância uma da outra. Combinaram, então, de se encontrar em um parque que fica exatamente na metade do caminho entre as duas casas, meia hora de distância para cada. O Regatta Playground, em West Orange. Fizeram um belíssimo piquenique. Miguel, que ama balanço e escorregador, se divertiu. 

De presente, Liam e Eli deram para Miguel um andador ultramoderno. Bonito, com amortecedor e rodas grandes. Miguel usou no mesmo dia. Andou, deu uma volta.

Miguel, em seu andador ultramoderno, e Daniel. (Foto: Acervo da família)
Francisco Camolezi
Estudante de jornalismo na UFPR
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Francisco Camolezi
Estudante de jornalismo na UFPR
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