Reportagem: Alana Morzelli, Gabriel Costa, Gustavo Gomes, Marya Marcondes e Sophia Martinez
Por trás da fumaça das tragadas de cada cigarro consumido, há um custo ambiental e humano invisível. A indústria do tabaco, responsável pela emissão de cerca de 84 milhões de toneladas de dióxido de carbono, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), também é um dos maiores vetores de poluição e exploração social. Das plantações intensivas no Sul do Brasil às praias poluídas pelas bitucas, são diversos os impactos deste setor controverso para o agravamento das mudanças climáticas.
Indústria silenciosa: o mercado do tabaco
A indústria do tabaco é um dos setores mais controversos da economia, com impactos que vão além do consumo. Apesar de, segundo a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), a safra 2023/24 ter gerado uma receita anual bruta de R$ 11,8 bilhões, o tabaco é uma das indústrias mais poluentes do mundo. Os gases poluentes emitidos pela produção do tabaco intensificam o efeito estufa – e contribuem para as mudanças climáticas.
Outro aspecto crítico da indústria do tabaco é o intensivo de agrotóxicos, indispensáveis para a manutenção das monoculturas de tabaco. As substâncias químicas aplicadas nas lavouras se infiltram nos solos e nos corpos hídricos, contaminando ecossistemas aquáticos e causando um efeito devastador na biodiversidade aquática e terrestre. A ambientalista Carolina Efing destaca: “os agrotóxicos usados para o cultivo do tabaco não apenas contaminam o solo, mas também recontaminam os recursos hídricos, afetando todas as pessoas que dependem dessa água”. A contaminação resultante torna-se uma ameaça invisível, que se espalha pelo ciclo hidrológico e, como aponta Efing, pode atingir até mesmo consumidores que irrigam alimentos com essa água.
Para atenuar a pressão regulatória sobre seu impacto ambiental, a indústria do tabaco adota as mesmas técnicas que usaram para questionar os elos científicos que emergiam, nos anos 1950, entre o fumo e o câncer de pulmão. A prática é conhecida como lobby e a ambientalista revela que “a indústria financia pesquisas que, na prática, atuam para proteger seu modelo de negócios e para impedir a regulamentação por parte do poder público. Modelo, esse, que é copiado hoje em dia por outras indústrias, como por exemplo, a indústria do petróleo”.
No livro “Roucos e Sufocados”, João Peres e Moriti Neto denunciam entidades como a Afubra, criada na década de 1950, que se apresenta como defensora dos agricultores. Entretanto, como expõem os autores, esta entidade frequentemente atua alinhada aos interesses da indústria do tabaco, por meio da venda de seguros contra danos climáticos no Sul do Brasil, promovida pela subsidiária da British American Tobacco – maior empresa de tabaco do mundo. A estratégia, além de proteger as lavouras, ajuda a reforçar a narrativa corporativa. O discurso disseminado pela entidade nas regiões de plantio busca minimizar as críticas ao setor e fortalece a ideia de que o combate ao tabagismo ameaça o sustento dos agricultores. O livro afirma que essa narrativa protege a indústria e neutraliza esforços de regulação, ofuscando os impactos ambientais e sociais de suas práticas.
Desmatamento e consumo: pressão no ambiente e ciclo de contaminação
O impacto ambiental da indústria do tabaco vai além das emissões de carbono, estendendo-se para o uso excessivo de terra e água, essenciais para o cultivo da planta. A Organização Mundial da Saúde estima que a produção de tabaco consuma aproximadamente 200 mil hectares de terra anualmente, contribuindo com cerca de 5% do desmatamento global.
Em áreas como o Vale do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, onde o tabaco predomina, as propriedades dos produtores de fumo são em média de 9,8 hectares e a cultura do fumo ocupa cerca de 37,5% da área total da propriedade. O levantamento foi feito pelos economistas Marco Antônio Vargas e Bruno Ferreira de Oliveira no artigo “Estratégias de diversificação em áreas de cultivo de tabaco no Vale do Rio Pardo: uma análise comparativa”.
Além da terra, a produção de tabaco exige quantidades massivas de água. O relatório da OMS indica que o setor consome cerca de 22 bilhões de toneladas de água a cada ano. Número alarmante quando se considera que o tabaco é uma cultura não alimentícia, como alerta Carolina Efing. O volume de consumo agrava o impacto da monocultura do tabaco e intensifica a exploração de lençóis freáticos.
O descarte de resíduos tóxicos pela indústria, especialmente bitucas de cigarro, contém microplásticos – a segunda maior forma de poluição por plástico no mundo – e afeta especialmente as águas. Cada uma das 4,5 trilhões de bitucas que vão parar nos oceanos, rios, calçadas e praias a cada ano prejudicam a biodiversidade e elevam os custos de limpeza urbana.
Do resíduo ao recurso: bitucas de cigarro ganham novo destino como recurso ambiental
A poluição causada por bitucas de cigarro é um problema ambiental que está ligado de forma íntima a atitudes individuais, como jogar bituca na rua. Segundo estudos do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), uma única bituca pode contaminar até 10 litros de água, liberando substâncias tóxicas como nicotina e metais pesados que prejudicam ecossistemas aquáticos e biodiversidade.
A questão se agrava quando se considera o volume desse resíduo: o cigarro é o item mais coletado em praias e ruas. De acordo com o projeto Lixo Fora D`Água, capitaneado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), em cada quilômetro de praia no Brasil são descartadas cerca de 25 mil bitucas de cigarro na areia.
Os dados do Grupo Banco Mundial ainda destacam que cerca de 4 bilhões de pessoas já sofrem com o estresse hídrico em algum momento do ano. Vale ressaltar que a água conecta setores – de energia e florestas à agricultura e desenvolvimento urbano – e tem um papel crítico tanto na mitigação quanto na adaptação climática.
Segundo a ambientalista Carolina Efing, o descarte incorreto das bitucas de cigarro também é uma questão de gastos públicos que influencia o pagamento de impostos pela população. “A questão das bitucas de cigarro, ainda falando no consumo e pós-consumo, é extremamente onerosa para os municípios. Elas representam uma grande parte do resíduo sólido coletado nas cidades, como dentro dos bueiros, o que aumenta os custos para os contribuintes que pagam pela limpeza urbana”, destaca.
Em uma iniciativa inovadora e sustentável, pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá (UEM) desenvolveram um método de transformação das bitucas em hidrocarvão. Omaterial, obtido por meio de um processo de “cozimento hidrotérmico”, utiliza uma quantidade de energia significativamente menor que a produção de carvão ativado convencional, além de eliminar toxinas do resíduo. Com este método, “estamos dando uma nova função para um resíduo amplamente negligenciado. Transformar as bitucas em filtros para purificação de água, por exemplo, poderia ser uma alternativa de baixo custo e grande impacto ambiental”, explica Andrelson Wellington Rinaldi, professor do Departamento de Química e líder do grupo de pesquisa que desenvolveu o processo.
O custo humano do tabaco: impacto social, vício e negacionismo
A cadeia produtiva do cigarro compõe um ciclo de poluição que afeta não só o meio ambiente, mas também a saúde dos trabalhadores e das comunidades próximas às plantações de tabaco. No Brasil, terceiro maior produtor global de tabaco, principalmente na região Sul, estes trabalhadores enfrentam condições de trabalho que os expõem a quantidades perigosas de nicotina e agrotóxicos, muitas vezes sem o uso adequado de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Cerca de 150 mil famílias estão envolvidas diretamente no cultivo, segundo a Afubra.
Durante a colheita em dias úmidos, os agricultores absorvem a nicotina diretamente pela pele, em um nível equivalente a fumar 36 cigarros por dia. Ocontato prolongado e sem proteção gera sintomas graves, como tonturas, vômitos, dores de cabeça e até desidratação, conhecidos coletivamente como “doença da folha verde” do tabaco. Segundo pesquisa realizada pelo curso de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FURG), a cada ano de trabalho na cultura do tabaco a taxa de problemas de saúde aumenta em 7%.
Um relatório da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul apontou, ainda em 1996, que 80% dos casos de suicídios no município de Venâncio Aires, cidade responsável pelo segundo maior volume de tabaco produzido no Brasil, eram cometidos por agricultores. O estudo demonstrou ainda a elevação no número de suicídios quando aumentava o uso de agrotóxicos.
Os impactos climáticos causados pela indústria do tabaco estão intimamente ligados a uma questão que também preocupa especialistas de saúde mental e física – o vício. Segundo pesquisa realizada pela farmacêutica AstraZeneca, 39% dos fumantes no Brasil fumam 11 ou mais cigarros por dia (acima da média de 27% da América Latina). Este consumo gera uma cadeia de danos ao meio ambiente, como desmatamento, para plantações de tabaco, e poluição da água, pelo descarte incorreto das bitucas. A psicóloga Eliza Penachi afirma que o cigarro é muito usado como forma de alívio rápido da ansiedade — relaxamento causado pela ação da nicotina que estimula o sistema de recompensa do cérebro —, mas esse conforto temporário rapidamente se torna uma dependência.
Além de mascarar os efeitos nocivos do fumo, a indústria do tabaco desvia a atenção dos próprios impactos ambientais, alimentando uma cultura de negacionismo climático que retarda os esforços globais para enfrentar a crise ambiental. Segundo Penachi, o negacionismo climático é multifacetado e envolve tanto fatores psicológicos quanto sociais e econômicos. “Um dos fatores importantes está relacionado à percepção de que a responsabilidade pelo aquecimento global e pelas mudanças climáticas recai sobre outras pessoas, como governos, grandes corporações ou países mais industrializados, e de que ‘comigo não acontece’. Assim, muitas pessoas desenvolvem uma resposta de defesa psicológica que envolve a negação e o evitamento”, destaca.
O Jornal Comunicação entrou em contato com o Sindicato Interestadual do da Indústria do Tabaco (Sinditabaco) e a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) para falar sobre quais ações já estão sendo tomadas para mitigar efeitos como desmatamento, poluição das águas, emissões de gases estufas e, principalmente, o dano à saúde humana dos trabalhadores envolvidos na cadeia produtiva do tabaco. No entanto, não obtivemos resposta até o momento de finalização da reportagem.
Edição e Pauta: Ana Luiza Costa Halat, Gabriela Zadvorne e Nayara Almeida