Os uniformes de futebol carregam em si mais do que o brasão do time ou da seleção. Também revelam como a cultura e os valores sociais afetam os modos de vestir. Na Copa do Mundo 2022, as 32 seleções têm mostrado ao mundo simbolismos, cores e culturas a partir de seus trajes.
Desta vez, no campeonato considerado o mais inovador da história, além da estética, os uniformes se descatam pela tecnologia. Marcas como Nike, Puma e Adidas investiram em aliviar as sensações de calor no Catar – onde a média de temperatura é duas vezes maior que a mundial.
A tecnologia utilizada é a Dri-FIT, que leva em consideração o mapa de calor e de suor do corpo. O padrão de estampa que remete à onça-pintada, na manga da camisa brasileira, por exemplo, foi feito para absorver o suor e garantir mais “respirabilidade”.
Para chegar aqui, ao longo dos anos, os modelos de uniforme de futebol mudaram. Apesar da história focar mais nas camisas, a moda esportiva dos anos 60/70 chama atenção para a parte de baixo.
1970: um período entre incertezas
Pela primeira vez em cores na TV brasileira, os brasileiros assistiram à seleção canarinho “presentear” a ditadura militar com a taça Jules Rimet. Tricampeões, jogadores como Pelé, Tostão, Jairzinho e Gérson, além da camisa amarela, usavam shorts que hoje são considerados curtos demais para homens.
Era a época da liberação sexual, do amor livre e das lutas identitárias. Ao mesmo passo, era também um período pós-guerra, de polarização da Guerra Fria e de Crise do Petróleo. Para o pesquisador em Filosofia e Teoria de Moda pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Brunno Almeida Maia, a fragmentação da luta política pelas minorias identitárias provoca na moda uma fragmentação de estilos: “A partir dos anos 60, a moda parte das ruas. Nós não conseguimos identificar mais uma tendência”.
No Brasil, apesar das restrições e do retrocesso da ditadura militar, a chama da rebeldia e da expressão não se apagou. Na cultura, a música foi uma ferramenta para contestar o regime. E essa influência também atravessou como as pessoas se colocavam no mundo a partir das roupas.
A segunda onda feminista trouxe uma noção de emancipação do corpo. Brunno Almeida Maia explica: “Para fugir de um projeto de dominação política, se faz necessário buscar também a liberdade do corpo. Essa resposta estética, no modo de se vestir, também é um desejo de emancipação política. A moda e a emancipação política nunca andaram tão juntas […] Então esses projetos [como a ditadura militar] censuram porque sabem que o corpo é o que cria subjetividade. É o que cria liberdade, portanto”.
“A cultura gay veio também, de uma certa forma, embaralhar os códigos que pertenciam à cultura heterossexual. É um período no qual há um choque de duas realidades muito intenso”, descreve Maia.
Freddie Mercury, Bob Marley, Ney Matogrosso, Gilberto Gil e outros grandes nomes da cultura, independentemente de orientação sexual, quebraram os paradigmas e os limites no vestir. Nessa época, era comum ver homens heterossexuais usando top croppeds e mulheres fazendo topless nas praias cariocas, por exemplo.
Até que aparece a Aids.
1980: morte e ressaca
Se no século XXI, a pandemia de covid-19 foi cercada de desinformação e descaso de autoridades, a Aids foi, em 1980, extremamente violenta para grupos estigmatizados. Ninguém queria ser confundido com aqueles que até médicos acusavam de culpados pela doença: queers, transsexuais, usuários de drogas e profissionais do sexo. A rebeldia da contracultura, especialmente entre os jovens, deu lugar à distinção de sexualidade no vestir.
“Depois de um período de liberdade e emancipação sexual, há um movimento reacionário que questiona tudo isso. Os anos 80/90 tem uma espécie de ressaca: ressaca moral, ressaca ética, ressaca política, ressaca econômica”
Brunno Almeida Maia, pesquisador em Filosofia e Teoria de Moda
Nesse sentido, Maia traz o HIV como uma metáfora: “É uma metáfora no sentido de que ele vai negar todas as belezas da vida, as potencialidades da vida, que vinham sendo construídas nos anos 60/70. Um desencantamento muito radical para aquela geração. Tivemos, sim, uma morte física, mas sobretudo uma morte ideológica e subjetiva”.
A moda, um dos setores mais impactados pela pandemia, ficou órfã. Estilistas, cabeleireiros, modelos, fotógrafos, diretores de arte e vitrinistas foram mortos pelo vírus – toda uma geração de criatividade. “O talento não é substituível”, disse Laurie Mallet, à Vogue, ao falar do colega Willi Smith, que morreu de Aids em 1987 e é considerado um dos maiores estilistas afro-americados da indústria.
Os que continuavam vivos, depois de perderem amigos, colegas de trabalho e inspirações, eram submetidos a testagens para conseguir um contrato. Foi nesse cenário, de fechar as portas para estilistas homens, que o ramo começou a aceitar mais as mulheres. A partir daí, a moda se moldou para diferenciar homossexuais de heterossexuais. Os shorts curtos desapareceram do guarda-roupa masculino. No futebol, não seria diferente: os uniformes devem seguir a linha do joelho.
Depois de três décadas, os “shorts shorts” voltam com uma cara retrô. Jovens, como os integrantes da banda Francisco, El Hombre e Baco Exu do Blues aderem à tendência. Ainda assim, certamente, para a geração que andara com dois terços das pernas à mostra nos anos 60/70 – os nossos avós, pais e tios – o estilo à Freddie Mercury vai ficar apenas nas fotografias antigas dos álbuns de família.