Com 52 anos, Maria Cristina Gomes divide sua casa com cerca de 110 cachorros, todos recolhidos da rua. Há dez anos, ela perdeu o filho para o mundo das drogas. Como cura para a imediata depressão, passou a retirar os animais que viviam na sua rua, no bairro Uberaba. Segundo Cristina, todos são recolhidos, sem exceção. Eles chegam à sua casa muito debilitados, “geralmente estão feridos, com queimaduras, ou foram atropelados ou estão com pulga e sarnas”. Ela, inclusive, toma remédios para evitar se contaminar novamente – já possui incontáveis feridas na barriga e nos braços, provocadas pelas sarnas.
A casa tornou-se um ponto de referência para os vizinhos que desejam adotar ou deixar os animais doentes e abandonados. Para conseguir dar conta de alimentar todos – eles comem mais de três sacos de dez quilos de ração por dia –, Cristina pede doações nas rádios, na TV e para os vizinhos. Ela é pensionista da Paraná Providência e, no momento, está passando por dificuldades. A proprietária da casa onde mora está pedindo o imóvel, então, ela não sabe para onde irá com seus cachorros. “Não quero nada de graça, eu vou pagar. Mas não pode ser muito longe, porque preciso passar as tardes cuidando da minha mãe que está doente.”
Acumular: verbo transitivo que significa amontoar, juntar, reunir.
De acordo com o psicólogo e especialista em análise de comportamento, Carlos Esteves, os fatores que podem levar ao aparecimento da síndrome da acumulação compulsiva são diferentes para cada caso, mesmo quando os eventos possuem uma ação semelhante. “Os acumuladores podem estar realizando a ação de coletar como determinante no comportamento e não a posse do objeto como tal; todo o processo de sair, procurar, recolher, é forte o suficiente para determinar o comportamento e nestes casos os objetos guardados podem ser irrelevantes para esta pessoa.”, explica.
A acumulação compulsiva ou disposofobia é uma perturbação definida por três características principais: a coleção obsessiva de bens ou objetos; a incapacidade de se livrar de qualquer um dos objetos ou bens recolhidos e; um estado de aflição ou de perigo permanente. “É um comportamento que se inicia com uma baixa intensidade e torna-se progressivamente intenso e somente no momento em que se encontra com alta intensidade é que definimos como disfuncional.”, esclarece Esteves. Inclusive, segundo o especialista, “podemos inferir que a vida do indivíduo se resume a acumular objetos.”.
“Sua manifestação pode se dar quando, provavelmente, outros comportamentos se enfraquecem.”, pois, para o psicólogo, podem ter ocorrido perdas significativas na vida do indivíduo, sejam de ordem afetiva – como é o caso de dona Cristina – ou de atividades cotidianas. “De qualquer forma, os acumuladores sinalizam um repertório comportamental limitado”, justifica.
Deve-se compreender que a ação de coletar tem uma função na vida do indivíduo, “há o risco de tornar sua vida caótica com a simples ‘eliminação’ do comportamento atual”. Por isso, Esteves defende a condução de um processo de ajustamento no qual é preciso identificar funcionalmente, as variáveis envolvidas no ato de acumulação, “às vezes pode ser necessário alterar os elementos que estimulam esta ação, em outros casos, desenvolver ações incompatíveis com a ação de acumular”.
Ao observarmos um acumulador de objetos, só vemos um pedaço do seu comportamento. Então, segundo Esteves, para haver êxito na mudança dessa realidade, “é necessária uma análise funcional em relação ao indivíduo”.
A preocupação da Prefeitura de Curitiba
A Rede de Proteção Animal, projeto da Prefeitura de Curitiba, iniciou um levantamento inédito – no Brasil – que pretende traçar o perfil dos acumuladores da capital paranaense. Com o objetivo de desenvolver um programa que traga segurança tanto à eles quanto aos animais. O projeto tem o financiamento da Fundação Araucária e, como coordenador Alexander Biondo, diretor do Departamento de Pesquisa e Conservação da Fauna da Secretaria Municipal do Meio Ambiente.
Ao todo, são dez pessoas envolvidas no projeto. Entre elas, estão a médica veterinária Dirciane Floeter e a residente, Graziela Ribeiro. Já foram traçados, até esse mês, mais de 100 acumuladores de animais. O projeto funciona através de denúncias e investigações. Segundo a Dra. Dirciane, o isolamento social e o risco de doenças são os principais perigos de se acumular animais. “Além do barulho, do mau cheiro e do incômodo aos vizinhos, de quem parte a maioria das reclamações”. Ela relembra o caso da Dona Maria, do Boqueirão, que tinha mais de 60 cães em casa e, devido a um incêndio, quarenta e três animais, que estavam presos no porão, morreram.
Para a Dra. Graziela, as principais características dos acumuladores são a instabilidade emocional e a vitimização, “há um cinismo muito grande, eles não admitem que possuem um transtorno”. O projeto já traçou três perfis de acumuladores: o explorador, o sobrecarregado e aquele que resgata “sem limite”. O propósito desse levantamento é, de acordo com a Dra. Floeter, a criação de uma política pública que solucione o problema dos animais, ao mesmo tempo em que, haja um acompanhamento para os acumuladores.
Para o psicólogo Carlos Esteves, “se esta ação tiver o indivíduo como objetivo, certamente teremos um movimento da valorização da vida humana, no entanto, se o objetivo for o de higienização da cidade, corremos o risco de produzir, em algum grau, uma crueldade com as pessoas”.