Enquanto o modo de produzir arte permanece perpetuamente subjetivo, a forma de comercializá-la mudou com a ascensão dos tokens não-fungíveis (NFTs). Registrados no mesmo banco de dados usados pelas criptomoedas — os blockchains —, os NFTs funcionam como certificados de autenticação de uma obra e garantem sua exclusividade.
O processo baseia-se no conceito de fungibilidade. Diferente do bitcoin, que pode ser adquirido por um valor equivalente, a arte NFT não tem valor padronizado. Essa não-fungibilidade refere-se a algo que não pode ter seu valor comparado. O chefe do departamento de desenvolvimento artístico da iniciativa Brasil NFT, Luciano Vassan, explica que a tecnologia é voltada para produtos únicos e raros. “É como se você registrasse aquilo num cartório, só que sem a possibilidade de falsificação”, diz.
A Brasil NFT é uma iniciativa que age em três âmbitos: o didático, que busca educar o público sobre a tecnologia crypto e seu funcionamento; o de consultoria sobre NFTS para empresas e indivíduos; por último, as galerias de arte que priorizam artistas emergentes, independentes e periféricos.
Galeria de arte indígena
Em setembro deste ano, a primeira galeria de arte indígena NFT foi inaugurada por intermédio da Brasil NFT. Nomeada Artes Originárias, a galeria reúne artistas indígenas brasileiros dos povos Guajajara, Bororo, Fulni-ô, Guarani Mbya e do Coletivo Observatório Cultural das Artesãs (OCA). A idealização surgiu da necessidade de uma renda alternativa para essas comunidades, uma vez que a pandemia da Covid-19 impediu a venda de artesanatos e artes pessoalmente. A partir da amizade e parceria com a artista Zahy Guajajara, os fundadores da Brasil NFT ouviram outros relatos de indígenas, cuja subsistência dependia do artesanato, e decidiram criar a plataforma para facilitar a comercialização: “Essa é uma galeria feita para eles”, afirma Luciano, que alerta, “Nossa função é facilitar esse acesso à tecnologia.”
De acordo com Luciano, outro propósito da Brasil NFT é proporcionar visibilidade para a versatilidade da tecnologia:
“Pela primeira vez, a gente tem uma mídia que pode embarcar qualquer viagem que o artista quiser”
Luciano Vassan, iniciativa Brasil NFT
Ele reforça que, “antes disso, se você queria produzir música, ficava limitado ao áudio, no máximo, a um videoclipe. Mas com o NFT tem gente que vende terreno, tem gente que assina contrato, teve até um escultor que vendeu uma escultura imaginária”. Para Luciano, que também é músico e publicitário, a tecnologia dos NFTs é revolucionária porque extrapola a barreira da convencionalidade, promove a autonomia do artista, assim como estimula sua renda, não mais dependente de uma galeria ou curadoria.
Arte digital
O artista e pesquisador Alexandre Rangel se interessou pela cripto arte exatamente por essa razão. Desde a década de 1990, ele vem trabalhando com arte digital e outras formas de experiências computacionais — instalações, softwares livres, websites interativos. No final de sua graduação em Artes Plásticas, criou o Quase Cinema, um programa de computador para edição que é uma ferramenta para fazer outras obras. Desse modo, tecnologias digitais sempre foram objeto de sua criatividade.
No final de 2020, Alexandre reconheceu a cripto arte como um novo paradigma do mercado artístico. Para ele, que valoriza softwares livres e independentes, os NFTs chamaram a atenção do ponto de vista prático, já que não estão sujeitos às volatilidades da interferência empresarial, e também do ideológico: “Investir em projetos descentralizados é muito poderoso e também garantidor do futuro de um estudo, de uma obra”. Segundo ele, outro pilar da cripto arte é a questão inclusiva e democrática: “Não existe essa questão curatorial, de alguém ditar quem pode ou não fazer parte disso”.
O ganho financeiro, porém, é o incentivo principal. “Uma vez que você ganha com a arte que produz, a partir de uma tecnologia de acesso relativamente fácil, você tem tempo para se dedicar a ela”, avalia.
De acordo com o portal NonFungible.com, que monitora o mercado de arte criptografada, no mês de novembro, o e-commerce de NFTs cresceu exponencialmente, gerando cerca de U$ 4 milhões a mais em comparação aos outros anos.
Como vender ou comprar NFTs
Para vender ou comprar NFTs é preciso criar uma carteira de criptomoedas. Cada criptomoeda — Bitcoin, Ethereum, Tezos — tem sua própria carteira. Hoje, a blockchain Ethereum é a plataforma onde a arte está mais inserida. É preciso que a carteira escolhida seja compatível com o marketplace em que a arte será leiloada. Mesmo que seja um artista, não um colecionador, Alexandre explica que o usuário deve comprar criptomoedas: “Esse valor cobrado para postar a arte é o valor pago pelo registro da transação no blockchain.”
Além disso, ele esclarece: “Se a minha arte for revendida, eu ganho uma comissão entre 10% e 25% do valor original, o que é muito legal.” Para ele, o processo beneficia diretamente a carteira do artista porque não há interferência de terceiros na venda.
O dono da galeria de arte Jaqueline Martins, em São Paulo, e especialista em novas mídias, André Parente, concorda: “Se uma mesma obra for vendida numa galeria por R$ 20 mil, R$ 10 seriam direcionados à galeria. Isso não acontece com a venda de NFTs.”
Ele acredita que essa versatilidade e promessa de crescimento financeiro são as razões pelas quais os NFTs estão em alta nos últimos meses. Entretanto, ele não acredita que isso trará mais independência para a produção artística. “Isso em nada altera a natureza do seu trabalho. O NFT é apenas a forma como ele é distribuído”, avalia.
Para André, o artista passa mais tempo ocupado com publicidade, já que os compradores ainda são majoritariamente colecionadores: “O maior desafio é encontrar e enviar a sua arte para quem esteja interessado”.
Na semana passada, o Jornal Comunicação publicou a reportagem especial de Mariana Souza e Luiz Henrique Pacheco, que contextualiza o impacto dos tokens no mundo da arte e a sua regulamentação legislativa no Brasil.
A nova aposta de empresas ao redor do mundo é expandir a tecnologia dos NFTs para outras esferas de consumo. Alexandre considera isso um desafio, mas alguns setores já estão concretizando a ideia. Por exemplo, a empresa Hybe Labels, representante da banda sul-coreana BTS, divulgou que começará a vender photocards do grupo — fotos especiais dos sete membros — no formato NFT. Os tokens do BTS incluirão imagens em movimento, vozes de artistas e os fãs poderão trocar seus cartões de fotos digitais em espaços virtuais. Essa expansão abrange a indústria dos jogos e esportes que ocupam cerca de 6% dos marketplaces. Até mesmo a indústria da moda começou a divulgar roupas digitais.
A pegada de Carbono
A maior problemática dos tokens não-fungíveis é a emissão de carbono. Uma vez que são registrados dentro de uma blockchain, cujo consumo de eletricidade é imenso, a contribuição para a emissão de carbono não é negligenciável.
A rede Ethereum, por exemplo, onde a maior parte das transações de arte são realizadas, utiliza um mecanismo chamado Proof-of-Work (PoW) para autenticar as transações e armazenar dados, responsável pelo consumo de cerca de 86.93 TWh (terawatts-hora) por ano. O site Digiconomist compara esse valor ao consumo energético de toda a Suíça. O Ethereum pretende mudar gradualmente seu algoritmo Proof-Of-Work para um algoritmo Proof-of-Stake de consumo eficiente chamado Casper.
Contudo, há plataformas — como a Tezos e a Polygon — que já utilizam o Proof-of- Stake (PoS), além de outras criadas com a compensação de carbono em mente, como a Rarum. Isso mostra que a sustentabilidade deve ser uma pauta global para os apoiadores de NFTs.