sáb 27 abr 2024
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“O Boqueirão é meu país” celebra há mais de 30 anos a periferia de Curitiba

Entenda a campanha satírica que viralizou como uma resposta ao movimento separatista do Sul do Brasil

Com quase 80 mil habitantes segundo o censo realizado em 2021 pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) o Boqueirão é o quinto bairro mais populoso de Curitiba. A região periférica é o palco do “O Boqueirão é o meu país”, slogan que surgiu há mais de 30 anos como uma resposta direta ao movimento separatista “O Sul é o meu país”.

Idealizado pelo jornalista Jean Claude Lima, em 1992, a campanha em prol da emancipação do bairro começou como uma brincadeira. Após ser convidado a integrar ao projeto inconstitucional que visava dividir o Sul do restante do Brasil, o então estudante da Universidade Federal do Paraná (UFPR) juntou-se com alguns colegas para satirizar os separatistas.

Adesivo “O Boqueirão é o meu país”. Foto: Divulgação

Nascido no Ceará, e sem nem sequer residir no bairro, Jean fundou “O Boqueirão é o meu país” sem intenções reais de promover à independência da região, mas o movimento acabou se tornando um símbolo de orgulho para os moradores. “A campanha surgiu como uma crítica a esse cara do ‘Sul é meu país’, mas nós nunca imaginamos que ela fosse virar o que virou”, conta Jean.

Autointitulados “embaixadores do Boqueirão do Brasil”, a ideia dos estudantes difundiu-se rapidamente e logo virou manchete nos jornais do Estado. O psicanalista Glauco Machado, único do grupo que era realmente morador do Boqueirão, conta que a adesão ao movimento dentro do bairro foi instantânea. Machado chegou a distribuir, inclusive, adesivos durante missas e cultos religiosos. “Se falássemos ‘vamos separar o Água Verde do Brasil’, não ia pegar, mas o Boqueirão funcionou na hora”, completa.

Divulgação do movimento “O Boqueirão é o meu país” em jornais locais. Foto: Arquivo pessoal

“O Sul é o meu país”

Criada em 1992, a campanha visa separar os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul do restante do país, pautados em um discurso de autonomia da região. O movimento, contudo, é inviável e inconstitucional. Isso porque o artigo 1° da Constituição Federal de 1988 estabelece que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos seus estados e municípios e do Distrito Federal.

Apesar da baixa adesão popular, a ação ainda persiste. Além da inconstitucionalidade, ela também alimenta um discurso xenofóbico e de cunho racista. Segundo o advogado popular Welitton Gerolane, o movimento se pauta em inverdades. “As motivações em geral são falaciosas, giram em torno de suposições econômicas de autossuficiência ou de discussões tributárias vazias, feitas fora de contexto do que foi a construção nacional brasileira”.

O movimento “O Sul é o meu país” representa não apenas uma ruptura com a Constituição Brasileira, como também propaga um discurso de ódio. “Essas falácias servem para camuflar uma alta carga de xenofobia, de racismo, de um sentimento de busca por uma suposta pureza ideológica e é aí que ele se mostra um movimento profundamente intolerante”, completa o advogado.

Boquera

Mesmo sem pretensões políticas, o movimento “O Boqueirão é o meu país” despertou um sentimento de pertencimento à periferia urbana, que segue relevante até hoje: “A campanha, do meu ponto de vista, não perdeu a pertinência porque o separatismo ainda está aí, cristalizado pela direita brasileira”, reafirma Jean.

E foi desse orgulho que o cineasta Lucas Estevan Soares, nascido e criado no bairro, roteirizou e dirigiu “Coração de Neon”. O filme conta a história de Fernando, um jovem que trabalha com seu pai entregando telemensagens pelo Boqueirão, serviço realizado a bordo de um velho Corcel 1 azul decorado. Contudo, uma tragédia é responsável por mudar a vida dos dois.

O filme, que foi considerado como pioneiro do novo cinema popular brasileiro pelo Festival de Cannes, além de debater importantes tópicos – como a violência doméstica e as consequências do luto – introduziu o Boqueirão para o mundo. “Fico feliz de apresentar um bairro que não teria esse destaque internacional se não estivesse presente em uma obra cinematográfica. É um lugar que sempre terá um pedacinho meu e representa a Curitiba de verdade, aquela que não está nos cartões postais”, conta o cineasta.

“Coração de Neon”. Foto: Divulgação

A reprodução do longa reforçou aquilo que acontecera em 1992: o “Boquera” desperta um sentimento de afeição e pertencimento que se iguala a um movimento político. Para o produtor, a recepção de “Coração de Neon” foi positiva. “A aceitação [do longa-metragem] foi muito legal e deu para perceber que muitas pessoas, assim como eu, tem um carinho enorme pela nossa quebrada”.

Apesar de ter surgido como uma brincadeira entre amigos para criticar os movimentos separatistas, “O Boqueirão é o meu país” viralizou de forma estrondosa, abrindo novas portas para a divulgação e valorização da periferia de Curitiba. O movimento, que segundo seu fundador: “nunca foi menos do que a gente gostaria, porque a gente nunca teve nenhum tipo de pretensão”, deu visibilidade ao bairro curitibano, tornando-se um símbolo de resistência contra a intolerância.

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