Reportagem: Ana Halat, Gabriela Zadvorne, Gustavo Beckert e Nayara Almeida
Crises de inchaço e edemas no rosto, lábios e língua; dor abdominal; dificuldade para respirar; náuseas e vômitos. Estes são os principais sintomas do angioedema hereditário (AEH), condição médica rara e hereditária que atinge um a cada 67.000 habitantes no Brasil, de acordo com a Diretriz Brasileira para o Diagnóstico e Tratamento do Angioedema Hereditário, publicada em 2022.
O contador Afonso de Almeida Rufino, de 31 anos, é um dos brasileiros que convive com a doença. Há dois anos recebeu o diagnóstico e, desde então, toma a medicação Lanadelumabe. “Agora eu tomo uma ampola a cada 28 dias, mas nos primeiros seis meses foram uma a cada 15 dias”, relatou.
Cada ampola da medicação custa R$69,1 mil reais. Afonso, que tem plano de saúde, por conta de seu emprego, contou que o maior medo em relação à doença é, justamente, a restrição ao acesso do remédio. “A rede pública de saúde não fornece esse medicamento ainda, a não ser por algum tipo de caso judicial. Eu tive o privilégio e a possibilidade de ter acesso a um plano de saúde, mas mesmo assim existe um receio. Se eu sair da empresa ou trocar de plano existe a possibilidade do plano não fornecer”, disse.
A Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) relatou que as crises podem ser desencadeadas por diversos fatores, como reposição hormonal, tratamento dentário, infecções e ansiedade, duram de três a cinco dias e ocorrem de forma imprevisível. “Como elas acontecem sem uma lógica ou uma causa visível, é bem estressante. Às vezes eu estava em um dia normal de trabalho e começava a ter crises de inchaço ou abdominais. Já cheguei a ficar hospitalizado em uma ocasião que afetou minha garganta”, descreveu Rufino.
Outra dificuldade encontrada pelos pacientes é a falta de informação. Ainda de acordo com a Asbai, muitas pessoas chegam ao pronto-socorro com inchaço em lábios e pálpebras, por exemplo, mas são confundidas com reações alérgicas. É raro o médico pensar no angioedema hereditário, como expôs o contador. “Quando comecei a ter crises usava o Danazol, todos os dias a cada 12 horas. Este medicamento era fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas era de baixa eficácia para AEH e causava vários efeitos colaterais”.
Diagnosticado pelo médico Herberto Jose Chong Neto, membro do Grupo de Estudos Brasileiro em Angioedema Hereditário (GEBRAEH) e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Afonso relatou que consegue viver sem os receios de antes. “Vivo uma vida normal, sem medo de viajar e sair da rotina. No ano que vem completa um ano que estou tomando a medicação e minha vida mudou bastante até então”.
E quando o diagnóstico leva anos para chegar?
Assim como ocorreu com Afonso, o diagnóstico de angioedema hereditário é um processo longo e tardio. Os primeiros sintomas podem surgir ainda na infância e incluem dores abdominais e edemas, muitas vezes confundidos com reações alérgicas comuns, o que dificulta a identificação da doença. Em casos alérgicos, o inchaço melhora com antialérgicos ou corticoides. Esse não é o caso do AEH.
O diagnóstico pode levar de 15 a 17 anos, de acordo com a diretora científica do GEBRAEH, Solange Valle. “É uma doença pouco conhecida pelos médicos não especialistas. O colega que não é especialista na área não pensa no diagnóstico da doença e, por isso, ele não pede os exames necessários”, relatou.
Em um paciente comum a proteína C1-esterase regula diversos sistemas no organismo humano. Com a AEH ocorre a inibição de C1, o que desencadeia uma ativação descontrolada destes sistemas, gerando substâncias pró-inflamatórias, como a bradicinina, causadora dos inchaços.
Os inchaços ocorrem em qualquer parte do corpo, mas, principalmente, nas mãos, pés, face, pálpebras, boca, língua e órgãos genitais. De acordo com a GEBRAEH as crises podem surgir de forma repentina ou se desenvolver ao longo de horas, podendo ter duração de 2 a 6 dias. Em casos mais graves, como o de Afonso, o inchaço pode atingir a laringe, causando o edema de glote, uma condição que tem risco de morte por asfixia se não for tratada de maneira correta. Cerca de 25 a 40% dos casos apresentam este risco.
As crises podem ser espontâneas ou provocadas por diversos fatores, tais como: emocionais, traumas, medicamentos e alterações hormonais. O fator nem sempre pode ser identificado.
Após a suspeita do diagnóstico, o paciente é encaminhado para fazer exames laboratoriais. O primeiro passo é a medição da dosagem do C4 no sangue. Pacientes com AEH têm níveis menores. A próxima etapa analisa a dosagem do inibidor de C1 no sangue tanto quantitativa quanto qualitativa, para confirmar o diagnóstico e diferenciar entre os tipos 1 e 2 da doença. O tipo 1 é caracterizado pela deficiência quantitativa, enquanto o tipo 2 é resultado da deficiência qualitativa. No Sistema Único de Saúde (SUS), apenas dois locais disponibilizam os exames necessários para o diagnóstico, o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no Rio de Janeiro e o Hospital do ABC, em São Paulo. Em outros locais, os hospitais conseguem por meio de parcerias com laboratórios.
O diagnóstico tardio tem um impacto significativo na qualidade de vida dos pacientes e familiares, por conta do risco da doença. “Normalmente, quando o paciente chega no centro de referência, ele já tem um impacto negativo muito grande na qualidade de vida dele e de seus familiares. Aquele paciente sofreu por um longo período de tempo”, relatou a pesquisadora Solange Valle.
De acordo com uma pesquisa da Associação Brasileira de Portadores de Angioedema Hereditário (abranghe), realizada em junho de 2020, o Brasil possui cerca de 1.679 pacientes diagnosticados com AEH. Conforme o mapa abaixo, a região com maior concentração está em São Paulo, com 465 casos, seguido de Minas Gerais, com 272, e Rio de Janeiro, com 174. A presença de centros de tratamento como os hospitais localizados em São Paulo e Rio de Janeiro desempenha um papel relevante no atendimento e diagnóstico desses pacientes.
Tratamento que custa caro
O AEH não tem cura, mas existe uma série de tratamentos que facilitam a vida dos pacientes. A profilaxia consiste na administração de medicamentos que evitam os inchaços e pode ser realizada com dois objetivos:
1º) Profilaxia de curto prazo: quando há previsão de fatores desencadeantes, como cirurgias e traumas;
2°) Profilaxia de longo prazo: uso de terapias de forma regular para profilaxia de crises relacionadas à doença 1-3.
Segundo o Ministério da Saúde, o uso de andrógenos atenuados é o recomendado, sendo Danazol a alternativa disponibilizada no Componente Especializado da Assistência Farmacêutica e o plasma fresco congelado para o tratamento de crises tipo 1. O Danazol, que não tem registro para uso em AEH na Anvisa, é contraindicado pelos médicos.
Solange Valle afirmou que, nos próximos meses, os pacientes passarão a ter duas medicações de crise para serem utilizadas em nível hospitalar, o Icatibanto, medicamento que atua no mediador de bradicinina, principal mediador da doença. “Chama-se antagonista do receptor da bradicinina, impedindo que a bradicinina se ligue ali e aconteça o angioedema.”, disse a médica.
O Icatibanto é uma das novas possibilidades de amenização da doença, principalmente para pacientes que têm crises agravadas. A outra alternativa é o concentrado de C1, que repõe a proteína deficiente, essencial para o controle da doença.
“Eu achava uma verdadeira vergonha no cenário nacional, porque internacionalmente já se usa medicações há muitos anos. No Brasil nós não tínhamos ainda uma padronização. A gente fazia uso, em crises, do plasma fresco congelado, que não é um medicamento e, além disso, para alguns pacientes pode até piorar a crise”.
Solange Oliveira Rodrigues Valle – Diretora científica do Grupo de Estudos Brasileiro em Angioedema Hereditário (GEBRAEH)
A conquista dessas medicações são uma nova possibilidade de tratamento para os diagnosticados com a doença. O Icatibanto e o concentrado de C1, agora incorporados ao Ministério Público, serão disponibilizados pelo SUS para auxiliar no manejo das crises. O único estado no Brasil que possuía licença para esses medicamentos era o Espírito Santo, mas apenas em situações de emergência.
Os medicamentos para o tratamento da doença podem custar até R$ 52 mil, considerado um alto custo para o paciente e para o Sistema Único de Saúde (SUS). A profilaxia, utilizada para a prevenção de crises, disponibilizada pelo governo apresenta um problema no abastecimento, além de liberar medicamentos que podem causar hipertensão, aumento de pressão arterial, alterações das enzimas hepáticas, podendo levar até a tumores.
“Todos os medicamentos de primeira linha, ou seja, aqueles que escolhemos como primeira opção, são aprovados pela Anvisa, mas os pacientes não têm acesso pelo governo. Então têm que entrar na Justiça para conseguir esses medicamentos de alto custo”.
Solange Oliveira Rodrigues Valle – Diretora científica do Grupo de Estudos Brasileiro em Angioedema Hereditário (GEBRAEH).