“Muitas famílias foram pegas de surpresa naquela noite. Você acorda, vai para o trabalho e fica sabendo que está tendo um despejo na área em que você mora, e quando você volta o seu barraco está vazio. É aquele ‘salve-se quem puder’, retira o que dá e vai embora”. Pedro Carrano, jornalista do Brasil de Fato Paraná, foi preso pela Polícia Militar em 10 de janeiro durante o despejo dos moradores da ocupação Povo Sem Medo, no bairro Tatuquara, em Curitiba, e relembra o clima que pairava no ar. A PM barrou a imprensa e advogados que se aproximavam do local, enquanto as moradias improvisadas eram desmontadas. Desde 2020, 1.600 famílias foram despejadas no Paraná, de acordo com a campanha nacional Despejo Zero. Na reintegração de posse no começo deste ano, muitas famílias passaram a noite ao relento, sem saber para onde ir, devido a ações policiais.
Entre 2021 e 2022, a Povo Sem Medo, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ocupou o terreno abandonado há mais de 30 anos pela construtora Piemonte – que não cumpria a função social da propriedade, prevista pela Constituição Federal de 1988. Além da ação truculenta da PM, o grupo foi despejado de forma irregular. A decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que as ordens de execução de despejos deveriam passar por um período de audiências de mediação, possuir aviso prévio e prazo razoável para desocupação, e que a separação de integrantes da mesma família era proibida. O advogado responsável pela defesa de moradores da ocupação Povo Sem Medo, João Victor Longhi, relata que foi pego de surpresa pela reintegração de posse. “Acordo de manhã e vejo meu celular com uma série de ligações de moradores tentando me avisar que estava ocorrendo o desalojamento forçado”.
Em 2020, a Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) divulgou que 40 mil famílias viviam em situação de irregularidade, somente na capital paranaense. Em junho de 2022, no final do primeiro mandato do governador Ratinho Jr. (PSD), quando foi revogada a decisão do STF de suspender as desocupações durante a pandemia, eram 100 mil pessoas em risco de despejo no estado.
No interior do estado a situação não é diferente. De acordo com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), de maio a outubro de 2019, oito comunidades rurais sofreram despejo. Em dezembro daquele ano, a atuação da PM, definida como “truculenta” pelos moradores nos casos de reintegração de posse, marcou a expulsão de 50 famílias que viviam no acampamento Companheiro Sétimo Garibaldi, em Querência do Norte. Além de helicópteros, 150 policiais e 40 viaturas pressionaram a saída das famílias em situação de vulnerabilidade, apesar das tentativas dos moradores por uma negociação mediada. Entre março de 2020 e maio de 2022, o número de reintegrações de posse com ordens a serem cumpridas cresceu 12%, segundo dados da Defensoria Pública do Paraná.
Na ocupação Nova Esperança, em Campo Magro, na Região Metropolitana de Curitiba, a última grande ação policial na ocupação foi no final de 2021, e ainda está fresca na memória de moradores como Edna Taborda, que lembra de quando a PM entrou na comunidade, e teria executado um homem de 24 anos e torturado sua companheira, na época com 15 anos e grávida: “Eles entraram devagarinho, falaram que ele [o homem assassinado] coagia a comunidade. Nunca teve isso, a comunidade está de prova”.
ELes ameaçaram botar fogo em tudo aqui, mas não vieram mais
Moradora da Ocupação Nova Esperança
Após a execução, a tropa de choque da PM teria jogado bombas de efeito moral e dado tiros de bala de borracha. “Eu tenho até hoje a cicatriz na perna, eu levei um tiro de borracha”, conta Edna. Quando a população foi à corregedoria da PM relatar a ação dos policiais, “eles ameaçaram botar fogo em tudo aqui, mas aí não vieram mais”, conta outra moradora, que preferiu ser identificada apenas como Sandra. Quando procurada pela reportagem, a assessoria da PMPR se recusou a responder sobre seu padrão de operação em despejos.
Casos passados de despejo denunciam que a mudança de governo não é suficiente para conter a violência policial contra a população que não tem onde morar. Em outubro de 2008, durante a gestão de Roberto Requião, uma reintegração de posse no bairro curitibano Fazendinha, com mil famílias, resultou em três prisões e no princípio de confronto de manifestantes e policiais. Entre os feridos estava um garoto de 8 anos. Os mais de mil policiais utilizaram bombas de efeito moral e balas de borracha contra os moradores. Em entrevista à Gazeta do Povo na época, o coronel responsável pela ação, Carlos Alexandre Schermeta declarou: “A operação foi melhor do que imaginávamos. Houve apenas um princípio de confronto”.
O Ministério Público do Paraná, numa tentativa de diminuir os ditos “excessos” em operações policiais, propõe a adição de equipamentos de monitoramento ao equipamento dos oficiais, além da elaboração de um curso obrigatório sobre direitos humanos nas grades de formação não só das Polícias Civil e Militar, mas de membros do Poder Judiciário também. Apesar disso, a segurança é seletiva: essas ações da força policial priorizam a proteção da propriedade privada, e não do cidadão, que muitas vezes é vítima de práticas agressivas da polícia. O número de imóveis vazios no estado e o de famílias desalojadas demonstram que o problema tem solução, mesmo que não haja interesse estatal nela. De acordo com dados da Secretaria Municipal de Urbanismo de Curitiba divulgados em 2018, somente na capital do estado haviam 154 imóveis abandonados e acumulando multas e sofrendo com o aumento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).
Não existe despejo pacífico. Sempre tem alguma forma de violência em desmontar a casa, em perder alguns pertences
Pedro Carrano
Pedro Carrano acredita que a presença da imprensa, mesmo que a contragosto da PM, pode resultar na diminuição da violência nos despejos, além de gerar consciência na população, mas lembra: “Não existe despejo pacífico. Não existe despejo democrático. Não existe despejo gourmet. Sempre tem alguma forma de violência em desmontar a casa, em perder alguns pertences”.
Reportagem por Felipe Azambuja e Isabella Honório | Fotografia de Gabriel Arouca Leão