Na segunda parte da entrevista concedida ao Comunicação, Teresa Urban fala da organização dos trabalhadores no Paraná durante a ditadura, a importância histórica daquele período, o movimento de estudantes, mídia e o cenário pólítico atual
Comunicação: – Porque a década de 60 é tão importante?
Teresa: O que aconteceu em 60 é uma somatória de fatos. Alguns cientistas gostam de apontar como característica desse período a ausência de grandes conflitos bélicos, então, quem foi jovem-adulto em 60 não experimentou a sensação de guerra, como gerações anteriores tinham experimentado. Nasceu em um período de paz. Isso permitiu que essa geração se dedicasse o tempo a coisas que não fossem de sobrevivência imediata, e ao mesmo tempo permitiu que o capitalismo se assentasse, se organizasse de forma a viver um período de expansão, e a experiência socialista se consolidasse. Do ponto de vista das condições, se tem uma série de coisas “rolando” pelo mundo que se espelham na criação científica e na produção cultural de uma maneira geral. Existia um mundo binário incomparável, a experiência socialista de um lado e o capitalismo florescente de outro. Era uma década rica do ponto de vista das possibilidades humanas, e isso também se reflete na estrutura familiar e do trabalho. Alguns autores dizem que as mulheres que passaram a fazer parte do mercado de trabalho no período da guerra se tornaram diferentes das de períodos anteriores, porque não eram mais as mesmas donas de casa, a mulher não voltava para a casa quando a guerra acabava. A mulher começa a ter um outro tipo de papel e com isso ela tem um outro olhar sobre a sociedade, cria os filhos de um modo diferente, a sexualidade dela é tratada de um outro jeito. Então, isso é questão de gênero. Há uma riqueza de discussão em todos os aspectos, aprontando o terreno para que brotassem coisas novas.
Comunicação: Além das manifestações que ocorreram em 68 na França, você lembra de algum outro país cujos movimentos tenham influenciado o Brasil?
Teresa: – Na França, você tem o início das grandes manifestações estudantis aliadas a discussões sobre a liberdade sexual. Há conflito, e a polícia entra pela primeira vez em cena, invade a universidade. Isso cria um fato político que se desdobra com a adesão dos trabalhadores ao grande maio francês. Na Tchecoslováquia, há uma outra situação: a Primavera de Praga, uma manifestação contra a dominação russa. Ou seja, em cada país acontecem coisas diferentes. O que acontecia nos Estados Unidos tinha muita influência sobre isso, acho até que é uma coisa pouco explorada. Porque desde 65, nos Estados Unidos, a mobilização contra a guerra do Vietnã era muito grande e contestadora. E, enquanto no resto do mundo, os estudantes estavam mobilizados por boas causas, envolvidos com a sociedade, nos Estados Unidos eles lutavam para não ir à guerra, para não morrerem. A juventude norte-americana estava batalhando pela sua própria vida, pois o número de mortos era imenso.
Comunicação: Porque é importante estudar o movimento dos jovens norte-americanos?
Teresa: O fato de existir esse movimento, de ele envolver uma coisa tão profunda como a defesa da própria vida, ao mesmo tempo em que envolveu segmentos que vão para a esquerda, a questão dos direitos humanos e da questão racial nos Estados Unidos, enriquece ainda mais esse movimento. Eu acho que a influência de tudo isso na preparação desse terreno é muito grande, e não pode ser esquecida. Se você fizer uma pesquisa nos anos 60, 66, 67 e 68, com certeza o Vietnã está presente todos os dias nas páginas dos jornais. Cria-se um clima de possibilidades. É como se de repente muita coisa fosse possível, e se você acrescenta a isso a Revolução Cubana, em que um grupo de rebeldes derrota o ditador e substitui o regime corrupto Batista por um regime socialista, há um quadro onde parece que quase tudo é possível.
Comunicação: Como era ser jovem naquela época?
Teresa: – Se tornar um jovem-adulto nesse período era respirar muito as possibilidades e sonhar. Mas o sonho em cada país é distinto. Você pode desde largar tudo e virar hippie, até virar revolucionário. O mundo se tornava grande, gigante.
Comunicação: Qual a trajetória do Brasil nessa década?
Teresa: O Brasil vinha de um período – anterior ao golpe militar – de grande envolvimento dos universitários com as questões da sociedade, o centro cultural popular da UNE (União Nacional dos Estudantes) era muito ativo e desenvolvia cultura para o povo. As discussões dos problemas brasileiros estavam na pauta dos universitários, que também acompanhavam todo o desenrolar dos problemas e movimentos no planeta de uma forma bastante próxima. Então veio o golpe, a UNE é fechada em 64 e incendiada, mas a fuligem é espalhada no ar e as lembranças continuam. A repressão nos primeiros anos de golpe não foi tão intensa, de tal maneira que há uma herança que se mistura a esse quadro internacional. Depois do baque de 64, você tem um ano de incertezas, não se sabia o que estava acontecendo. Em 66 os estudantes já estão se reorganizando, fazendo reivindicações ligadas à ditadura, à contestação da legalidade do regime, à defesa da constituição. Há também novos elementos, como a questão do ensino pago, que é posta como uma possibilidade dentro da Constituição, a questão da falta de recursos para a educação. O golpe militar começa a dirigir o dinheiro para áreas de interesse, sobretudo para áreas tecnológicas, há a precariedade da universidade e dos restaurantes estudantis e tudo mais.
Comunicação: Por que na época a luta por um ensino gratuito se tornou a bandeira do movimento estudantil?
Teresa: Houve um quadro de reclamações internas no começo. É importante lembrar que o número de universidades particulares era muito pequeno, então era ensino público ou quase nada. Por isso a discussão sobre o ensino pago era de grande importância. Não era como hoje, em que o ensino pago foi incorporado ao sistema. Na época, não havia muitas alternativas. O Paraná só tinha duas universidades: a PUC (Pontifícia Universidade Católica) e a UFPR. Só ia para a universidade um segmento muito insignificante, 0,2% dos jovens. Havia muita gente que vinha do interior, que se mantinha com um tremendo esforço. Ter que pagar uma faculdade significaria, para muita gente, o fim de qualquer sonho.
Comunicação: Quais eram as outras reivindicações?
Teresa: Existiu um movimento na medicina de estudantes que obtiveram a média para passar, mas não entraram porque não havia vaga suficiente para todos. A reivindicação de mais vagas na universidade era uma constante. Havia um movimento de estudantes que estavam na universidade e não aceitavam a abertura de vagas sem melhores condições de ensino. Enfim, esse problema ainda continua em algumas áreas. Havia o problema do ensino pago, de professores não competentes, não comprometidos com a universidade, problemas com os restaurantes universitários, que não tinham verba e não tinham comida, ou a comida era de péssima qualidade. Para quem vinha do interior e morava aqui, não tinha muito dinheiro, essa era uma questão vital. Essas questões estavam postas, mas na medida em que os estudantes começam com essa discussão eles percebem rapidamente que o problema não está na política estudantil, e sim relacionado à política educacional do governo, como a forma com que o governo via o ensino e estabelecia as suas prioridades. Os estudantes passam a contestar o regime da ditadura. Há uma ampliação da visão deles, do mesmo modo que essas questões interna trazem à tona a sensação de vigilância permanente. O fato de o governo possuir uma rede de informantes, em que tudo o que acontece na universidade é informado, incomoda. Incomoda o fato de existirem diretórios acadêmicos subordinados a políticas da universidadee à censura. Enfim, uma série de coisas começa a incomodar, e quando esses ares de novidade chegam de fora, as coisas começam a incomodar cada vez mais.
Comunicação: E com o AI-5, o que mudou no movimento estudantil e nos outros movimentos?
Teresa: Quando o AI-5 foi decretado, vimos que a ditadura,umo regime de força, não comportaria mais esse tipo de manifestação. O movimento estudantil tem o ápice nesse ano e após a decretação do AI-5 ele vai para os subterrâneos, pois é uma mudança brutal nas regras do jogo. Aqui no Paraná, por exemplo, o AI-5 foi decretado em 12 de dezembro de 1968, e no dia 14 de dezembro os estudantes fazem um congresso na chácara do Alemão, uma chácara no Boqueirão, e são presos. O congresso de Ibiúna também resultou em centenas de prisões, quase mil. Os participantes foram presos, condenados, torturados. O AI-5 cortou todas as possibilidades, porque foi um ato de exceção. Provocou prisões de massa, cassações de mandatos, invasão de todo o tipo de organização, muita gente foi exilada, torturada, morta, houve a formação de grupos armados. Enfim, mudou radicalmente a política e a cara do país. Em 68, é um país, em 69, é outro. Os trabalhadores, por exemplo, demoram a se reorganizar depois do AI-5. O peso que a classe operária organizada tem é muito diferente do movimento estudantil da classe média, a repressão é muito mais pesada e o risco que eles correm é muito maior.
Comunicação: No Paraná já existiam movimentos operários?
Teresa: No Paraná, o movimento operário era praticamente ausente nesse período. Em São Paulo já existiam grupos de resistências organizados, mas os sindicatos foram todos fechados. Os que não foram fechados passaram a ser controlados por pessoas de confiança da ditadura. O movimento operário demora a se reerguer, existem manifestações em 68 em São Paulo; no mês de maio os trabalhadores tomam o palanque das comemorações, acontece uma greve em Contagem, Minas Gerais, uma greve grande em Osasco no segundo semestre, mas ainda são muito pequenas as manifestações dos trabalhadores. Só explode de fato nas grandes movimentações operárias em 78, quando o movimento operário toma a frente do enfrentamento da ditadura, e consegue outros resultados.
Comunicação: O Movimento Estudantil se relaciona com o movimento dos trabalhadores? Pode-se dizer que o Movimento Estudantil foi o causador do AI- 5?
Teresa: O movimento estudantil foi uma espécie de abre-alas, que levantou a bandeira da resistência. Não foi o movimento estudantil que causou o AI-5, não existe uma relação de causa tão direta. A ditadura tinha uma função muito clara de reorganizar o país, as forças produtivas, o uso da terra, a ocupação das terras, então, se você não tivesse medidas de controle, seria muito mais difícil fazer isso. Mais de um milhão de trabalhadores rurais foram embora do Paraná. O Paraná tinha nove milhões de habitantes e perdeu um milhão. Se esse processo de contestação continuasse, ia virar uma guerra. E aconteceu isso sem que alguém se perguntasse por que isso estava acontecendo com essa pobre gente.
Comunicação: Como você resumiria esse momento histórico e qual a sua visão sobre como esse assunto é tratado hoje?
Teresa: Para dizer a verdade, eu não sei como a escola e os livros didáticos tratam disso hoje. Tenho a impressão que o meu neto não aprende quase nada sobre maio de 68. Eu acho que no Brasil se discute muito pouco a ditadura. Foi produzida pouca informação. Se você comparar a produção brasileira sobre a ditadura com o que é produzido sobre a ditadura na Argentina, não temos quase nada, são raros os filmes que tratam desse assunto. A literatura do Brasil é pobre em relação a isso. O país aceitou a Anistia com o acordo de que ‘não se fala mais nisso’. Mas é ruim e faz falta não falar nesse assunto. Nós só aprendemos sobre o que fazer quando olhamos para trás, não há outro jeito. Temos que descobrir onde é que erramos e acertamos, para aprender a não errar de novo.
Comunicação: Ocultar esses fatos aos estudantes tem algum outro sentido relacionado à ditadura?
Teresa: Talvez seja um indicativo de que a ditadura deu certo, o período em que os militares ficaram no governo funcionou para que as coisas fossem esquecidas, e a partir daí você tem um efeito cascata, porque você teve gerações de professores que foram formados sem nenhuma informação sobre o que estava acontecendo, e se esses professores não tiveram nenhuma informação, os seus alunos também não tiveram, e os alunos dos alunos consequentemente também não. Primeiro, você tem um golpe em 64 que já interrompeu um processo de criação e conhecimento, depois você tem um período de resistência, que é 68, e de novo você tem uma interrupção em que o movimento estudantil vai se extinguindo rapidamente, ou as pessoas são presas, ou vão embora, ou morreram, ou estão na luta clandestina. E quem não fez essas escolhas, ou não morreu, continua a estudar e fazer de conta que não aconteceu nada. As pessoas foram para a cadeia, para o exílio.
Comunicação: E quanto à mídia?
Teresa: Eu não assisti a muita produção de cinema, televisão. Eu tenho lido nos jornais, na internet, mas a impressão que fica é que a produção nesse período é escassa, percebo a repetição de muita informação vinda de fora, daquilo que se fala na França. Sobre o que aconteceu no Brasil, há pouco material, pouca produção acadêmica, pouca coisa divulgada. As pessoas são um pouco nostálgicas sobre a sua juventude, aos 18 anos todo mundo tem história. Aqueles anos foram muito ricos, do ponto de vista das forças de trabalho, de aprender, de fazer o que se gostava, de se sentir parte, de se sentir ator, de experimentar, de se apaixonar. Era intenso. Cada momento tem o seu tipo de intensidade, a minha geração teve uma oportunidade de ouro para viver. Eu espero que as próximas gerações tenham essa experiência, também. O mundo se tornou muito mais complexo, antes tudo era mais simples. É difícil ser jovem hoje, porque ao mesmo tempo em que você tem, aparentemente, uma quantidade de informação muito grande disponível, as pessoas são muito bombardeadas pelo modelo, existe padrão para tudo. As pessoas estão se afundando na falta de lógica do consumo, e isso não é bom, é mais chato ser jovem hoje. E mais perigoso.
Comunicação: Como você entende o cenário político atual?
Teresa: Do ponto de vista da liberdade de pensar, é diferente. Do ponto de vista da sociedade, de quem manda e quem obedece, não é tão diferente. Não estou dizendo que tenha semelhança, vivemos em um regime democrático O grau de fiscalização que a imprensa exerce sobre o poder é absoluto. Mas continuamos tendo uma sociedade profundamente injusta, desigual, uma distribuição de recursos desfavoráveis ao interesse da comunidade, o pouco envolvimento com interesses coletivos. A possibilidade de mudanças existe permanentemente. Pode ser difícil, lento, mas é diferente de não ter possibilidade.
Comunicação: E o Movimento estudantil hoje?
Teresa: Eu não posso falar sobre o movimento estudantil de hoje, porque não conheço. Alguns problemas de fato não mudaram, as universidades continuam com problemas, continua distante da sociedade. A impressão é que algumas coisas saíram da pauta, enquanto a geração de 68 convergiu para a necessidade de mudar o país, uma geração muito sensível às condições da população. Hoje, parece que a miséria é normal. Também me parece que há um partidarização maior, ou seja, os estudantes têm muito mais vínculo com as organizações partidárias do que havia antes. Ser jovem hoje é bem difícil; é difícil fazer uma escolha, saber quem está certo, e é difícil também ser um profissional.
Leia a 1ª. parte da entrevista com Teresa Urban
Leia também a entrevista com Antônio Urban, irmão de Teresa