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Tunísia vence França, antigo colonizador, em partida histórica

Apesar da eliminação para os australianos, tunisianos comemoram primeira vitória em copas sobre um europeu. No grupo C, Argentina e Polônia garantiram vaga

As Águias de Cartago superaram a França pela primeira vez na história, em partida válida pela terceira rodada do grupo C da Copa do Mundo 2022. O resultado, apesar de representar a primeira vitória tunisiana sobre um oponente europeu em copas, não foi suficiente para que a Tunísia conseguisse a classificação para as oitavas de final. Os dois países, que nunca haviam se enfrentado em mundiais, possuem uma história de repressão e conquista — a Tunísia ficou sob o domínio francês de 1881 a 1956.

A França é a atual campeã e já estava classificada. Venceu o torneio em duas ocasiões: em 1998 e em 2018. Kylian Mbappé é o destaque francês. Com 23 anos, fez 28 gols em 59 jogos pela seleção. Esta é a quinta Copa seguida em que a Tunísia se classifica, mas em nenhuma oportunidade conseguiu passar da fase de grupos. Apenas uma vitória da Austrália por seis gols de diferença sobre a Dinamarca tiraria a vaga de primeiro do grupo da França. A Tunísia só se classificaria vencendo a França e com um empate no outro confronto — ou vitória da Dinamarca a depender do saldo de gols.

O grupo D terminou com a França em primeiro, com seis pontos. A Austrália em segundo, também com seis. A Tunísia em terceiro, com quatro. E a Dinamarca com zero.

Confira a classificação atualizada da Copa do Mundo 2022.

O confronto

A partida teve um ritmo acelerado e muita presença de força física. Ben Slimane, o meia camisa número 25 da Tunísia, por exemplo, correu 10 quilômetros e saiu aos 36 minutos do segundo tempo. O juíz Matt Conger apitou 20 faltas (14 da Tunísia e 6 da França), com um cartão amarelo, para Kechrida, camisa 21 tunisiano.

Na primeira metade, as Águias dominaram — pressão, marcação intensa e busca pela bola. Apenas os tunisianos finalizaram no gol. A equipe tentou provocar o erro do adversário. E conseguiu: a França, embora com um elenco mais técnico e rápido, entrou com time misto e mostrou falta de entrosamento. Nesse momento, a Austrália empatava com a Dinamarca por zero a zero, a classificação inédita da Tunísia parecia realidade.

No segundo tempo, os franceses equilibraram as forças, mas uma grande chance do volante Laidouni colocou seu time em cima mais uma vez. O gol veio em seguida. Aos 13 minutos do segundo tempo, a Tunísia abriu o placar. O atacante Khazri recebeu a bola no meio de campo, conduziu até a meia lua da área, para escapar de Varane e Disasi e mandar para o canto direito do gol de Mandanda — golaço que extravasou a tensão da torcida.

Logo após o gol, Khazri, segundo maior artilheiro da história das Águias de Cartago, foi substituído por exaustão.

A primeira finalização certa da França foi aos 35 minutos do segundo tempo: um chute fraco de Dembélé, com a perna ruim. Para reverter o resultado, o técnico Didier Deschamps fez uma aposta arriscada, diante dos recentes desfalques da França por lesão, e colocou Griezmann e Mbappé em campo. A seleção azul melhorou muito no segundo tempo e aumentou a pressão até o final do jogo com várias chances de empatar.

Aos 53 minutos do segundo tempo, a bola rebateu na área da Tunísia e sobrou no pé de Griezmann, que muda o placar — para completar a frustração da torcida tunisiana, já eliminada com a derrota da Dinamarca. O VAR, porém, anulou o gol por impedimento no início da jogada.

Fim de jogo: Tunísia 1, França 0, pela primeira vez na história do futebol. França finalizou dez vezes e Tunísia cinco, mas ambas chutaram três vezes no alvo. A seleção francesa fez 618 passes, diante de 313 da Tunísia, e teve 66% de posse de bola.

A equipe tunisiana jogou com uma vontade impressionante — com elenco mais fraco e com menos nome, fez uma performance histórica. Até o último apito, mesmo com a vitória da Austrália que tirava a Tunísia do mata-mata, não afrouxou a defesa e se desinteressou pelo resultado.

A torcida da Tunísia foi em peso e fez barulho. Com a esperança da primeira passagem para as oitavas-de-final de sua história, mulheres e homens tunisianos pintaram as arquibancadas do Estádio da Cidade da Educação de vermelho e branco.

Ficha técnica

Tunísia: Dahmen; Ghandri, Meriah e Talbi; Kechrida, Skhiri, Laidouni, Maaloul; Slimane, Khazri e Ben Romdhane.
Técnico: Jalel Kadri
França: Mandanda; Disasi, Varane, Konaté e Camavinga; Tchouaméni, Fofana e Veretout; Guendouzi, Kolo Muani e Coman.
Técnico: Didier Deschamps
Local: Estádio Cidade da Educação, em Doha;
Público: 43 mil;
Data: 30 de novembro de 2022, quarta-feira;
Horário: 12 horas (de Brasília);
Árbitro: Matt Conger (Nova Zelândia)
Assistente 1: Mark Rule (Nova Zelândia)
Assistente 2: Tevita Makasini (Tonga)
Quarto árbitro: Salima Mukansanga (Ruanda)
VAR: Abdulla Al-Marri (Catar)

Grupo C

Pelo grupo C, a Argentina, com gols de Alexis Mac Allister e Julián Álvarez, venceu a Polônia por 2 a 0 e se classificou em primeiro lugar, com seis pontos. Por pouco os poloneses de Robert Lewandowski não ficaram fora da fase final — até os últimos instantes da partida entre México e Arábia, poloneses e mexicanos estavam com saldo de gols igual, com vantagem para os poloneses pelo critério do número de cartões amarelos. O gol de honra da Arábia Saudita, marcado por Salem Al-Dawsari já nos acréscimos da partida, possibilitou que a Polônia passasse para a fase final, em segundo lugar, com quatro pontos. Com a vitória sobre a Arábia Saudita por 2 a 1, o México terminou em terceiro, com quatro pontos. Os sauditas, em últimos, com três.

Revolução de Jasmim, na Tunísia, em 2011. Foto: Christopher Belsten/ Flickr.

Antes do futebol

A Tunísia foi, de 1881 a 1956, um protetorado da França. A influência estrangeira, no entanto, surgiu no início do século XIX. Em 1830, durante a invasão francesa na Argélia, a Tunísia fazia parte do Império Otomano, embora possuísse certa autonomia. Cinco anos depois, os otomanos retomam controle direto do território da Líbia, e os tunisianos se veem encurralados por duas potências conquistadoras.

A posição geográfica da Tunísia é estratégica. Com costa fértil, entrada central para o Mediterrâneo e acesso ao Saara, foi visada por invasores em diversas ocasiões.
O bei de Tunes (governadores civis de porções do Império Otomano) Muḥammad al-Ṣādiq (1859–82) proclamou a primeira constituição do mundo árabe em 1861, mas não conseguiu segurar a pressão francesa nem manter em pé o governo, que havia contraído dívidas enormes em bancos europeus.

Aumentos de impostos geraram revolta que foram reprimidas com violência, o que quase derrubou o regime. A Tunísia faliu em 1869 e, a partir daí, tentou montar uma comissão para impedir o controle total europeu. Porém, essa ação foi sabotada por inimigos internos do governo e por uma conspiração francesa e britânica.

Em 1881, sob a justificativa de que a Tunísia havia ocupado terras argelinas, a França invadiu o país, impôs o Tratado de Bardo e tomou controle do poder do bei e das finanças. Embora a autoridade suprema tenha sido passada para o general francês em comando, a França não transformou mesquitas em igrejas nem mudou a língua oficial, como fez na Argélia. As terras férteis próximas ao litoral e áreas de mineração foram negociadas pelos dominadores a países europeus.

Na década de 1930, um movimento nacionalista por independência ganhou força sob as mãos do jovem advogado Habib Bourguiba, mas sofreu repressão. Os líderes do partido nacional foram presos e deportados para a França.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o norte da África foi palco de batalhas entre Eixo e Aliados. Em 1942, com a invasão nazista na França, os líderes tunisianos foram soltos, mas Bourguiba se recusou a cooperar com o Eixo. Com a liberação aliada na África, a França retomou o controle da Tunísia.

Bourguiba foi exilado por acusação de se aliar com os fascistas. O período pós-guerra foi marcado por uma crescente insatisfação popular — algumas guerrilhas armadas surgem — e pressão pública na imprensa por independência. Ao longo dos anos, a França fez concessões aos nacionalistas, o que culminou na retirada do controle estrangeiro e declaração de uma república, com Bourguiba como presidente, em 1956.

Episódios fundamentais para a história ocorreram na Tunísia. Foi a alguns quilômetros de distância de Tunes, a capital atual, que surgiu Cartago, no século VIII a. C — a civilização fenícia que dominou o Mediterrâneo e conquistou porções da província que hoje é a Itália. Também disputou por poder e se envolveu em batalhas com o Império Romano, as Guerras Púnicas.

O Futebol e a política

O futebol é o esporte mais popular na Tunísia — é uma atividade familiar. Mulheres, homens e crianças se envolvem no jogo, diferente de outras nações árabes. No entanto, a seleção de futebol foi utilizada como ferramenta para promover o governo autoritário de Zine al-Abidine Ben Ali. Muitos símbolos de glória antigos foram misturados com um nacionalismo envolvendo o esporte. O apelido do time tunisiano de Águias de Cartago é um exemplo.

Em 2010, ocorreu a Revolução da Dignidade — conhecida na mídia ocidental por Revolução de Jasmim. O levante derrubou, em janeiro de 2011, o presidente Ben Ali. As manifestações, que duraram meses, protestaram contra a repressão, desigualdade, desemprego, e corrupção e foram provocadas pelo suicídio de Mohamed Bouazizi. Bouazizi, vendedor ambulante de 26 anos, ateou fogo no próprio corpo após as autoridades terem confiscado seu carrinho de frutas. Ele morreu 18 dias depois.

Este movimento desencadeou uma série de revoltas populares em países no norte da África e no Oriente Médio, conhecida como Primavera Árabe — que tem desdobramentos até hoje: é o caso da Síria, que permanece em guerra civil desde 2011.

Murilo Bernardon
Estudante de Jornalismo da UFPR.
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Estudante de Jornalismo da UFPR.
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