ter 01 abr 2025
HomeCidadeCrise habitacional em Curitiba: a discrepância entre moradias desocupadas e a necessidade...

Crise habitacional em Curitiba: a discrepância entre moradias desocupadas e a necessidade urgente por habitação digna

Capital do Paraná apresenta domicílios desocupados que podem resolver a falta de 86 mil moradias dignas para a população, como destaca cálculo de déficit habitacional da última década

Por Emilly Cristina Domingues, Flavia Keretch, Pietra Hara e Thiago Ferrari

A habitação de qualidade é uma das pautas que está diretamente ligada a campanhas políticas, mas que muitas vezes não ultrapassam o final dos períodos eleitorais. Um estudo recente elaborado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania revela que em dezembro de 2023 um em cada mil brasileiros não possuía moradia. Em 2024, um levantamento feito pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais (OBPopRua/POLOS-UFMG) mostrou que o número da população em situação de rua no país é de 300 mil pessoas

Esses números não só são preocupantes, como insuficientes para entender a questão da moradia nas cidades brasileiras. Os dados falham ao ignorar moradores de áreas de risco, habitações irregulares e locais sem infraestrutura básica, fatores essenciais para entender a questão habitacional no país. Um indicativo que é pouco utilizado, mas que procura aumentar as noções reais de problemas com moradia é o cálculo do Déficit Habitacional. O mais recente aponta que o Brasil vive uma situação de 6.215.313 moradias dignas faltantes em todo o país em 2024. 


O que é Déficit Habitacional? 

Déficit Habitacional é um conceito que dá sustentação aos demais indicadores que buscam estimar a falta de habitações e/ou existência de habitações em condições inadequadas para moradia, para trazer uma melhor noção da ampla necessidade habitacional de uma região, nação ou município.

O cálculo se baseia no número de famílias sem moradia ou que vivem em condições de moradia precárias em uma região. Ele não é uma correlação direta do número de famílias sem moradia, assim como apontam grande parte dos órgãos públicos –  as entidades, muitas vezes, abafam as questões de moradia digna por entenderem que o Déficit Habitacional é o número de famílias que estão interessadas ou em lista de espera por uma vaga nas Companhias de Habitação Popular (Cohabs). Isso exclui boa parte de quem não está nessas listas, mas que ainda assim precisa de uma melhor moradia.

Quem realiza o cálculo do Déficit Habitacional no Brasil é a Fundação João Pinheiro (FJP), que disponibiliza desde 1995 os indicativos anuais nacionais, regionais e dos principais municípios do Brasil. A instituição tem uma parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e com o Ministério das Cidades, e se baseia na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua).

Segundo a Fundação, “Déficit e inadequação habitacional podem ser entendidos como a ‘falta de moradias e/ou a carência de algum tipo de item que a habitação deveria estar minimamente fornecendo’ e que, por algum motivo, não fornece”. A partir disso, o cálculo do Déficit Habitacional entra para dimensionar a quantidade de moradias incapazes de atender o direito da população de conjuntos habitacionais básicos. 

Os pilares do cálculo são o peso do aluguel na renda da família, a precariedade das habitações e a coabitação. Alguns dos fatores que alteram o cálculo desse indicativo são acessos a serviços básicos, estado físico das construções, superlotação, localização e questões de segurança. Também entra nesse cálculo os domicílios em coabitação e com elevado custo de aluguel.


Como Curitiba lida com questões habitacionais

Segundo dados da “Pesquisa de Necessidades Habitacionais do Paraná 2023”, mais de 500 mil pessoas não possuem moradia digna no Paraná. Em Curitiba, o número chega a 109.402 pessoas, divididas em aproximadamente 90 mil famílias. Ainda de acordo com o relatório da Cohapar, Curitiba apresenta 43.261 domicílios em 322 comunidades espalhadas na cidade e outros 7.400 em 93 loteamentos irregulares. 

322 comunidades, como a Nova Primavera, abrigam mais de 43 mil domicílios irregulares para curitibanos que buscam moradia digna na capital do Paraná. (Foto: Gregório Bruning)

Se levarmos em análise os cálculos do Déficit Habitacional, o valor estimado é de 86.774 domicílios dignos faltantes na cidade. Segundo dados da Fundação João Pinheiro, o déficit se dá em Curitiba, principalmente, pelo sobrepeso do aluguel na renda familiar, quando as famílias gastam mais que 30% da própria renda em aluguel. Esse valor se mantém próximo aos 80 mil desde 2013, ao compararmos os Relatórios de Déficit Habitacional e Inadequação de Domicílios divulgados pela FJP dos últimos anos, indicando a necessidade de políticas públicas de moradia digna na cidade há mais de uma década. 

Gráfico: Pietra Hara

Ao mesmo tempo, a capital paranaense conta com cerca de 102.569 mil domicílios privados desocupados, segundo o Censo Populacional de 2022, sendo 80% desses vazios e 19 mil de uso esporádico. Este número representa um aumento de 76,7% de imóveis desocupados, em relação ao que foi registrado no Censo de 2010. 

Gráfico: Pietra Hara

O alto número de domicílios permanentemente desocupados no Brasil escancara uma contradição no cenário habitacional do país. Enquanto milhões de pessoas enfrentam dificuldades para ter acesso a moradia digna, imóveis abandonados permanecem inutilizados. Políticas públicas efetivas poderiam transformar essas propriedades em habitações populares, agindo diretamente no déficit habitacional e otimizando recursos já disponíveis.

Alexandre Pedrozo, professor de arquitetura e urbanismo, destaca que Curitiba enfrenta um déficit habitacional significativo comparada a outras capitais, com muitos imóveis desocupados enquanto há uma grande demanda por moradia. “Gente precisando de casa, e casa vazia” afirma o professor. Ele explica que um governo que tem realmente a pauta da moradia para resolver, iria se organizar para que a população que necessita de moradia, de alguma forma, ocupe os prédios que estão vazios. “Que é um pouco o que os movimentos de moradia fazem, né? Eles tentam resolver essa conta que o Estado não consegue resolver”. O professor ainda evidencia que existem diferentes possibilidades que podem ser feitas para resolver a questão habitacional pelo município.

Gráfico: Pietra Hara

A moradia inadequada não se resume à ausência de teto, ela abrange também a precariedade das condições de habitabilidade, como a falta de saneamento básico, infraestrutura, ou mesmo o risco constante de desabamentos e alagamentos. De acordo com O Plano Estadual de Habitação de Interesse Social do Paraná, há 43.461 domicílios nas favelas de Curitiba. Essa população enfrenta diariamente a falta de serviços essenciais, além de estigmatização e exclusão social. A falta de transporte público eficiente, somada ao custo elevado dos aluguéis e à falta de investimentos em habitação social, contribui para que essas pessoas fiquem à margem da cidade.

Pedrozo menciona que Curitiba historicamente sempre foi uma cidade governada pela elite, explica que mesmo quando lugares como o centro de Curitiba se degradam, não existe venda dos imóveis. Além disso, as classes mais privilegiadas economicamente, bem como a própria Cohab, demonstram resistência à presença de populações de baixa renda nos mesmos espaços frequentados pelas pessoas ricas, reforçando a segregação socioespacial. “A gente precisa de políticas públicas, com programas e projetos, ao mesmo tempo regularizar e construir moradias. Curitiba nunca teve política pública para moradia, nunca foi colocado dinheiro público para moradia”, esclarece Pedrozo. A cidade tradicionalmente não priorizou a alocação de recursos para projetos habitacionais locais, dependendo principalmente das políticas do governo federal.

O fenômeno dos imóveis desocupados pode ser explicado por uma série de fatores. Muitos desses imóveis pertencem a investidores que preferem deixar as propriedades desocupadas, esperando uma valorização maior no mercado. Outro fator importante é o elevado valor dos aluguéis em Curitiba, combinado com a insegurança financeira de muitas famílias, o que faz com que muitos proprietários preferem deixar seus imóveis desocupados a alugá-los por um valor mais baixo. Pedrozo explica que a falta de políticas públicas eficazes de regulação do mercado imobiliário contribui também para que esses imóveis vazios não sejam utilizados para atender a quem realmente precisa.

Pedrozo também aponta que Curitiba não tem orçamento próprio para Moradia, destinando apenas 0,03% de seu orçamento para as políticas voltadas ao tema. E com a moradia e a questão habitacional sendo um tema tão importante, não é de se surpreender que na eleição municipal ela tenha sido ponto de debate e promessas entre diferentes candidatos.

O recém-eleito prefeito de Curitiba, Eduardo Pimentel, por exemplo, comprometeu-se a entregar 20 mil unidades de habitação social. Contudo, esse número ainda está longe das 58.781 famílias cadastradas na Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar) que aguardam por moradia digna, evidenciando a urgência e a amplitude dessa demanda na cidade. Mas indícios efetivos de mudanças orçamentárias, por exemplo, e anúncio de políticas públicas voltadas para o tema ainda são esperados — no entanto, a falta de uma Secretaria específica de Habitação em Curitiba evidencia uma lacuna importante na gestão pública da cidade. Sem órgão específico para planejar e executar a gestão habitacional, a capital enfrenta desafios para organizar e implementar políticas públicas capazes de atender às demandas da população de forma eficiente.

Foi solicitado, com base na Lei de Acesso à Informação, à Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) informações sobre a quantidade de Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), ou seja, áreas reservadas para a implementação de Habitação de Interesse Social — essas áreas podem abranger tanto terrenos já ocupados por assentamentos precários ou irregulares, quanto espaços ainda não utilizados, preferencialmente localizados em regiões com infraestrutura adequada —, bem como a área total representada pela soma dessas zonas. Até o fechamento desta edição, não houve retorno da Cohab.

O direito à cidade e à moradia

A urbanização no cenário brasileiro começou no século XVIII e se estendeu pelos séculos XIX e XX, estabelecendo traços urbanos presentes até hoje no país. Caracterizada pela ausência de políticas sociais após a abolição da escravatura e pela falta de planejamento durante a fase de industrialização do Brasil, as décadas subsequentes não tiveram políticas governamentais que resolvessem o problema da habitação e, principalmente, da migração populacional da zona rural para a urbana. 

Isso não significa, entretanto, que não houveram tentativas ou movimentações para a mudança do cenário estabelecido no Brasil, porém essas foram reprimidas ao longo da história. Hoje, como aponta Pedro Carrano, jornalista e militante da organização Consulta Popular, a luta por moradia dentro do espaço urbano vem principalmente da organização dentro de comunidades periféricas “Existe a luta das comunidades que, muitas vezes, ou recebem solidariedade de movimentos ou se articulam com diferentes entidades”.

Entidades que não necessariamente possuem um movimento nessas áreas, mas se engajam, sob a bandeira do despejo zero, regularização fundiária e da luta por moradia. “Estamos num momento em que, em Curitiba, isso tem sido bem organizado, tem envolvido vários entes, e além da própria base, da base social, que é o povo trabalhador que está lutando por moradia”, comenta. Carrano aponta ainda que a ampliação do diálogo entre poder público, movimentos sociais e cidadãos é essencial para atender às demandas, o que não tem sido feito nos últimos oito anos. 

“Muitos julgam que a luta por moradia é uma luta oportunista, uma luta de pessoas interessadas em dinheiro”

Pedro Carrano, jornalista e militante.

A função social da moradia é um princípio essencial no ordenamento jurídico brasileiro, consagrado pela Constituição Federal de 1988, o artigo 6º reconhece a moradia como um direito social fundamental. Esse artigo estabelece que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados.

No artigo 23, a Constituição também determina que é competência conjunta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios promover programas habitacionais e melhorias nas condições de saneamento básico, evidenciando o papel compartilhado entre os entes federativos na garantia desse direito. Essa estrutura legal reforça o dever do Estado em implementar políticas públicas que assegurem o acesso à moradia digna e o desenvolvimento urbano sustentável, atendendo às necessidades da população, especialmente a mais vulnerável.

Carrano ainda aponta que a prefeitura diz estar entregando moradias ou que têm políticas consistentes, mas que a articulação de fundos de investimento é muito baixa. Ao invés de ser tratado como um direito fundamental previsto na constituição. Ele argumenta que são feitos discursos reacionários sobre a pauta de moradia tratando o tema com senso comum. “Muitos julgam que a luta por moradia é uma luta oportunista, uma luta de pessoas interessadas em dinheiro”, afirmou o jornalista. 

Soluções possíveis e visões futuras

Os dados e falas analisados chamam a atenção, pois mostram que a capital paranaense teria como suprir necessidades locais, além de identificar que são necessárias políticas habitacionais e imobiliárias mais eficazes na garantia do direito à moradia, previsto na Constituição Federal.

A busca por soluções para o déficit habitacional em Curitiba exige mais do que o simples aumento no número de moradias; repensar o mercado imobiliário e investir em programas como aluguel social e ocupação de imóveis ociosos são passos fundamentais. Uma ideia que ganha força nos debates é também a transformação de imóveis abandonados em habitações populares, com apoio de subsídios e incentivos fiscais para viabilizar a causa.

O IPTU progressivo é um recurso que anima setores não só preocupados com a questão social como também mercadológica. Nessa proposta, o valor cobrado no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) de um imóvel aumentaria conforme o tempo em que ele está em desuso ou abandonado. Essa ferramenta é útil não só para resolver a questão habitacional, mas também econômica nas grandes cidades. Os imóveis vazios no centro de Curitiba não representam apenas oportunidades de moradia digna para cidadãos, mas também mercado consumidor e mão de obra para o comércio local.

“Esse instrumento [para a ocupação de imóveis desocupados] já foi utilizado em Curitiba. quando o governo quis, ele transformou a Rua Riachuelo”

Alexandre Pedrozo, professor universitário de arquitetura e urbanismo.

Outro ponto em destaque é a revisão das normas de uso e ocupação do solo, que poderia abrir espaço para construções de moradias populares em regiões centrais, melhorando o acesso à infraestrutura e aos serviços urbanos. Podendo solucionar o isolamento de certas regiões que são classificadas como moradias precárias por não terem acesso aos serviços básicos de bem estar social proporcionados pelo estado.

Todas essas políticas não terão efeito imediato, bem como não serão implementadas em um lapso de vontade da gestão em vigor na prefeitura, mas elas estão longe de serem simples devaneios de ativistas idealistas. Há uma possibilidade de mudança, há disputa pelas prioridades dentro do plano de governo da cidade, mesmo que ela não seja adotada ou reconhecida pela prefeitura. Como dito por Alexandre Pedrozo, “esse instrumento [para a ocupação de imóveis desocupados] já foi utilizado em Curitiba. Quando o governo quis, ele transformou a Rua Riachuelo”.

A questão central, como demonstrado, não é a quantidade de casas disponíveis nem o dinheiro em caixa, mas sim a destinação desses recursos. Como aponta Pedrozo, se apenas 0,03% do orçamento de Curitiba é destinado à moradia, isso significa que a gestão municipal optou por direcionar 99,97% dos recursos para outras áreas. Uma questão precisa ser resolvida, mas ela não é “técnica”, e sim política.

Esta reportagem foi desenvolvida em dezembro de 2024 para a disciplina de Jornalismo Investigativo e de Dados, ministrada pela professora Candida de Oliveira.

Pietra Dissenha Hara
Estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná.
NOTÍCIAS RELACIONADAS
Pietra Dissenha Hara
Estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná.
Pular para o conteúdo