— Esse é o prismático, seu Assis? – Perguntou Antônio analisando um óculos de lente grossa e armação transparente.
— Isso, com prisma.
— Dá licença, vou testar.
Antônio colocou os óculos no rosto, deu uma olhada ao redor da sala e com uma careta completou.
— Pra mim complica, tô vendo tudo dois.
— É que esse é pra ler — Respondeu seu Assis entregando a letra de um poema de Fiama Hasse Pia Brandão impressa em um papel branco.
António tentou de novo, dessa vez observava o papel que seu Assis entregou a ele. A reação foi imediata. Assim que bateu o olho na música, mudou a expressão de desconfiança para grande entusiasmo.
— Olha!!! Nossa…. Nossa, que legal — diz enquanto começa a ler o texto — “Conheci dias duradouros…” Nossa, seu Assis, gostei!
Nesse momento, Antonio Nunes Soares, de 62 anos, se deparou com uma situação que acontece com grande frequência na vida de qualquer um que, como ele, porte baixa visão. A surpresa e a emoção caminham lado a lado com ele e com seu Assis, seja para o bem, ou para o mal. Sempre acontece de se animarem com a descoberta de uma nova ferramenta, como foi com Antonio, ou se decepcionar quando encontram uma nova dificuldade.
O momento aconteceu enquanto conversavam sentados ao redor de uma mesa branca, característica dos centros de atendimento de órgãos públicos, em uma sala no 13º andar de um prédio no Centro de Curitiba. Lá, funciona o Centro de Atendimento Educacional Especializado (Caee) Natalie Barraga. Toda sexta-feira de manhã a dupla de amigos se encontra nessa localização para fazer atividades de reeducação visual. Às vezes, depois da aula eles vão almoçar juntos ou tomar um café com um bolo Martha Rocha em uma lanchonete distante do Caee, que fica “lá na casa do chapéu”, de acordo com Antônio. Eles vão para lá e para cá, juntos e separados, afinal é uma amizade próxima, mas não muito, para um não enjoar do outro. Eles só não passeiam muito pela noite porque a escuridão é uma dificuldade para ambos, então a Martha Rocha fica para outro momento.
Seu Assis e seus chegados
Francisco Assis Cantarela, de 78 anos, é conhecido como seu Assis, e ama música. Violão, clarinete e saxofone são algumas das várias habilidades de Francisco, que também compõe músicas. Ele já trabalhou com várias coisas. Quando morava no estado de São Paulo, foi gerente de hotel e trabalhou com vendas. No ano de “noventa e pouco”, ele veio para Curitiba para atuar como vendedor de carros da Volkswagen e foi nessa época que, uma médica conhecida da esposa dele, o aconselhou a buscar um oftalmologista. Assim, ele conheceu o Doutor Formiga, oftalmo que o diagnosticou e encaminhou para o Caee. Com apenas 30% da visão, ele tem mais de um problema ocular e, dentre eles, o pior é a Degeneração Macular. Por conta dessa doença, a visão de seu Assis é como uma camiseta velha cheia de buracos, através dos quais ele não consegue enxergar. Ele vê bem pelas bordas do campo de visão, mas o centro é turvo. Essa configuração de visão gera com frequência algo que o incomoda: o descrédito. Para ele, isso é ainda pior que qualquer preconceito que poderia sofrer, porque invalida sua condição. Ele comenta que sempre escuta coisas como “Ah, diz que não enxerga, mas viu não sei o que no chão”.
Para ele, itens transparentes são uma dificuldade em especial. Um copo transparente com água só será visto caso o conteúdo esteja tremulando. A esposa de seu Assis, coloca H2O na taça para o marido, que não vê e sai do cômodo. Quando ela volta à cozinha encontra o copo no mesmo lugar, sem ter sido tocado. A bronca é certa. Ela tem o trabalho de colocar e ele não toma, como ela poderia não se frustrar? Mas ele lembra: “Precisa pôr um guardanapo colorido embaixo, ou não vou enxergar”.
Se esse tipo de situação fosse só em casa não seria um problema, mas a baixa visão está em todo lugar onde ele vai. Outro dia, foi a um bar encontrar um amigo. Chegou, cumprimentou, e na hora de se sentar, ao se apoiar na mesa já veio o susto. O copo com uísque foi direto para o chão e a voz do amigo para o alto: “Pô, Seu Assis!”. Imediatamente, mas com muita calma, Francisco retrucou: “Você não sabe que tenho problema de visão? Conhece a doença Degeneração Macular?”.
As causas da Degeneração Macular são uma grande discussão no campo científico, mas uma coisa é certa: ela surge e se agrava com a idade. A tendência é que os primeiros indícios surjam aos 50 anos ou depois, como foi o caso de seu Assis, que com 78 anos sofre a três décadas com a doença. Quando a mácula, região da retina responsável pela visão das cores e dos detalhes, para de funcionar como deveria, surge a doença. Isso pode ocorrer de duas formas diferentes. Se uma quantidade anormal de proteínas e gordura se acumularem na região, fazendo com que ela fique mais fina, é a chamada Degeneração Macular Seca. A outra possibilidade, Degeneração Macular Úmida, é resultado do surgimento de várias veias sanguíneas muito finas na mácula, onde podem expelir fluidos e embaçar a visão. A radiação solar e a luz azul emitida pelas telas de celulares e computadores aumentam a velocidade do desenvolvimento da doença.
Identificar cores é uma grande dificuldade das pessoas com baixa visão, em especial, as de tonalidade clara. Dessa forma, o jogo Cadê, da revista Recreio, é uma das atividades do processo de reeducação visual de seu Assis. Ele observa e exclama: “Esse aqui é uma pessoa! Aqui a cabeça, aqui o corpo… É uma menina”. Na realidade, o desenho para o qual ele está apontando é a logo do jogo, onde se lê Cadê em amarelo sobre um fundo azul.
Antonio tem mais facilidade com o desafio e consegue encontrar vários dos desenhos escondidos na imagem. Ele tem 60% da visão, mas já chegou a ter apenas 5%. Cerca de 15 anos atrás, ele trabalhava em uma empresa metalúrgica e, certo dia, durante o expediente, percebeu que as coisas começaram a ficar embaçadas, como o vapor de uma panela na tampa de vidro, mas não deu muita bola e pensou que um óculos logo solucionaria. Mas não foi o que aconteceu. Sem aviso prévio nem indícios, quando ele menos esperava, uma doença rara surgia em seu corpo.
“Ser baixa visão é uma merda, né, Antônio?”
Atingindo cerca de 15 a cada 100 mil pessoas, de acordo com última atualização da Federação Internacional de Esclerose Múltipla e a Organização Mundial da Saúde publicada em 2013, a esclerose múltipla ocorre quando o sistema nervoso central passa a atacar a bainha de mielina, que funciona como uma capa que protege os neurônios. A doença é autoimune e os efeitos variam de pessoa para pessoa, mas os mais comuns são perdas visuais, motoras, cognitivas, dor e fadiga. Há quem viva quase a vida inteira sem perceber que porta a doença, por não sentir nenhum sintoma, mas existem outras pessoas, como Antônio, que percebem mais do que gostariam. Quando a esclerose deu as caras para ele, tirou não apenas a visão quase completa, mas também a capacidade de andar. Antonio passou mais de um ano precisando de uma cadeira de rodas para se locomover enquanto não via quase nada. O processo de readaptação foi lento e doloroso. “Primeiro, eu chorei um ano inteiro, depois, comecei a me virar”, declara.
”A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”.
– José Saramago, em Ensaio sobre a cegueira
Quando acontece algo desse tipo com alguém, que compromete algum dos sentidos, a pessoa que porta o problema não é a única afetada. Com Antônio não foi diferente. A família também custou a entender como conviver e colaborar com ele da melhor forma, mas entendeu. Com o tempo (e fisioterapia), Antônio recuperou as capacidades motoras e boa parte da visão, o que torna mais fácil em casa também, mas algumas ações de ajuda em casa ainda se mantêm.
Por exemplo, mesmo com grande dificuldade com cores, o vermelho é uma solução para facilitar a percepção do contraste, a ponto de Antonio decidir que em casa essa é a cor que a toalha de mesa deve ter. Assim, qualquer coisa em cima dela pode facilmente ser vista por ele. Sua esposa não demorou a fazer a aquisição. Na cozinha, ela lava a louça e ele seca. Os talheres ficam sempre com a ponta virada para baixo no escorredor, para garantir que a hora de pegar, ele não enfie a faca na mão sem querer.
Antônio tem um amigo, o Gaúcho, que precisou aprender a lidar com a mesma situação, e fica reclamando sobre ter baixa visão com ele, sempre com grande indignação.
— Ser baixa visão é uma merda, né, Antônio?
— Mas por que, Gaúcho?
— Pô, você pega um celular. Tá, mas esquece a lupa. Tem que buscar a lupa. Aí depois que você pega a lupa tem que achar a luz para conseguir fazer a leitura. São três fatores!!! — Ele faz uma pausa enquanto o amigo dá uma gargalhada — Antônio, não é possível!
— Não, mas é assim, Gaúcho. A nossa realidade é essa agora. Não adianta querer mudar, tem que se adaptar.
“Adaptação”. Essa é a palavra de ordem para quem, “do nada”, precisa lidar com a baixa visão. Seu Assis e Antonio frisam muito isso e eles sabem que para conseguir, ter uma rede de apoio é essencial. Ter o privilégio de uma família disposta a ajudar, como as deles, faz toda a diferença. Para além dela, outras coisas também são super importantes. Aquele lugar onde a dupla conversava sobre o óculos prismático de seu Assis é o que garantiu que os dois conseguissem se adaptar com excelência, o Caee. “Aqui, não é puxando a sardinha pra ninguém, mas você consegue abrir um horizonte enorme”, declara Antonio.
Mas o que é o Caee?
O Centro de Atendimento Educacional Especializado (Caee) é um espaço público municipal, vinculado à Secretaria de Educação do Estado do Paraná (Seed), que visa complementar a educação de estudantes que possuem algum tipo de deficiência visual, seja ela a cegueira, a baixa visão ou outros tipos de acometimentos visuais.
O Atendimento Educacional Especializado (AEE), previsto na lei n° 13.005/14 para as PcDs, garante a organização, disponibilização de recursos, serviços pedagógicos e acesso às necessidades educacionais específicas das pessoas com deficiência visual, tanto para alunos de ensino fundamental (anos finais), como também para alunos de ensino médio, sejam eles atendidos na rede pública estadual ou particular de ensino. Além disso, as atividades do Caee também podem ser destinadas a indivíduos fora da vida escolar, como crianças de 0 (zero) a 5 (cinco) anos e adultos de qualquer idade.
Maria Olinda Maia é atualmente pedagoga do Caee Natalie Barraga, localizado no Centro de Curitiba, e conta que, quando atuava como professora foi marcada por um relato de uma pré-adolescente do sexto ano: “Durante as aulas do ensino regular, ela não tinha nenhum apoio e, por isso, não conseguia acompanhar a turma, o que teve por consequência sua não-alfabetização até os 11 anos de idade. Após ser encaminhada ao Caee e iniciar o desenvolvimento de atividades propostas por nós, em menos de seis meses ela conseguiu recuperar o ‘atraso’ em relação aos colegas. Antes ela mal conseguia escrever o nome, agora lê e escreve de tudo”.
“Na maioria das vezes, os alunos com deficiência visual possuem dificuldades que não são necessariamente ligadas ao entendimento do conteúdo passado em aula, mas sim com a acessibilidade a eles. Por isso, a introdução de equipamentos de ampliação do material didático, por exemplo, é responsável por um salto de desenvolvimento considerável na aprendizagem dos alunos”, complementa Maria Olinda.
O Caee Natalie Barraga que, atualmente, conta com, aproximadamente, 97% de indivíduos com baixa visão e 3% de pessoas cegas, foi criado em outubro de 1984, por meio de um convênio firmado entre a Secretaria de Estado da Educação, a Secretaria de Estado da Saúde, a Prefeitura Municipal de Curitiba e a Fundação Aristides Athayde.
Naquele contexto, seu nome era Centro de Reeducação Visual e funcionava na Rua Barão do Rio Branco, no prédio pertencente à Segunda Regional de Saúde. De acordo com o convênio estabelecido, a Secretaria de Estado da Saúde, além de ceder o espaço físico, também ofereceu atendimento médico (oftalmológico, pediátrico e outros) às pessoas atendidas pelo Centro de Reeducação Visual. A Secretaria de Estado da Educação ficou encarregada da cedência de professores especializados na área da deficiência visual.
O Centro tem funcionamento pela manhã e pela tarde, já que esse atendimento especializado precisa ser complementar às aulas, no período de contraturno. Ou seja, se o aluno possuir aulas do ensino regular durante a manhã, ele irá se dirigir ao Caee à tarde.
Além disso, o número de atendimento educacional especializado deverá ser de duas a três vezes por semana, com, no mínimo, duas horas/aula diárias. Cada aluno determina quanto tempo que continuará frequentando o Centro, pois como se trata de uma educação de adaptação ou readaptação à sociedade, ele mesmo definirá quando está apto para desempenhar suas atividades sem dificuldade ou, no caso dos indivíduos que perderam gradativamente parte da visão, quando estarão aptos para retornar à rotina sem dificuldades.
Os estudantes representam o maior grupo atendido, em torno de 51% das matrículas. A comunidade adulta totaliza em torno de 33% das matrículas e as crianças sem matrícula na rede de ensino, respondem por 16% dos atendimentos realizados.
O primeiro passo após serem encaminhados ao Caee, por meio da escola ou de um oftalmologista, é a realização de uma avaliação, que analisará quais atividades e por quanto tempo ele será indicado a frequentá-las. No caso das crianças que ainda não passaram por alfabetização, os métodos são diferentes daqueles oferecidos às crianças videntes, porque, mesmo que ainda não saibam ler ou escrever, elas possuem estímulos visuais desde que nasceram, por meio de propagandas e rótulos, por exemplo.
Quando se trata de uma criança cega ou com baixa visão, ela também precisará desses estímulos, mas esses, por sua vez, acontecerão por meio da utilização dos outros sentidos e a aprendizagem sistemática, no caso o sistema braille. Por isso, após ser realizada a avaliação, a pessoa com deficiência será destinada ao(s) programa(s) que forem necessários de acordo com suas necessidades, sejam elas: “educação precoce para criança com deficiência visual, estimulação visual, ensino do sistema braile, ensino das técnicas do cálculo do Soroban, orientação e mobilidade em contextos escolares e não escolares, Ensino de práticas educativas para uma vida independente, Ensino do uso e funcionalidade de recursos ópticos e não ópticos, uso de tecnologia assistiva e usabilidade e funcionalidade da informática acessível”, segundo determinações da Seed.
Quando for o caso do indivíduo se adequar ao programa de ensino de braille, ele passará pelos seguintes estágios: contextualização histórica do sistema, aprimoramento da conscientização do sentido tátil/pré braille, conhecimento dos recursos e materiais para a escrita do sistema braille (reglete, máquina braile e linha braille).
É comum haver pessoas com a mesma patologia visual, mas terem comportamentos visuais diversos, pois a visão funcional varia de pessoa para pessoa. Por isso há pessoas com baixa visão que fazem uso de diferentes recursos como: óculos com lentes especiais, lupas, ampliação de letras, reforço no contorno de desenhos, uso de guias de leitura, sistemas telescópicos, entre outros.
Ainda mais importante que as técnicas, contudo, é a parceria entre professores do atendimento especializado, professores do ensino comum e da família com o aluno, pois há casos em que o não uso dos recursos pode estar relacionado a fatores psicológicos. Segundo a pedagoga com especialização em Habilitação e Reabilitação Visual, Marília Costa Câmara Ferroni, “adolescentes têm necessidade de serem aceitos pelo grupo e o uso de um recurso diferente pode causar baixa autoestima e de auto aceitação de sua condição de pessoa com deficiência”.
De acordo com Maria Olinda, que também é psicóloga de atendimento particular, uma melhoria ao Caee Natalie Barraga seria a implementação de consultas psicológicas no dia a dia dos PcDs que frequentam o Centro, já que os estudantes, além do incentivo dos professores e familiares, também precisam de um atendimento psicológico com especialistas.
Serviço
Mais informações para chegar até o Centro de Atendimento Educacional Especializado Natalie Barraga:
Endereço: R. do Rosário, 144, 13ºandar – Centro
Horário de funcionamento: De segunda a sexta-feira, das 07h30 às 12h e das 13h às 17h30
Como contatar: ctanatalliebarraga@escola.pr.gov.br
Quem pode fazer parte: Estudantes que foram encaminhados pela escola em que estão matriculados ou indivíduos fora da vida escolar que foram encaminhados por um oftalmologista
Com bengalas, telelupas e lupas de mesa é mais fácil enxergar
“A catedral tem um degrau. Quando você está de frente, é uma situação. Quando você está saindo, o degrau não aparece. Então fica como se fosse reto do primeiro ao último degrau”. É o que conta o seu Assis sobre a dificuldade que tinha para descer os degraus da catedral Basílica Menor de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, que fica na praça Tiradentes, em Curitiba.
Hoje, a situação dele não é a mesma. “Com a bengala, eu vou indo. Ali tem um degrau, desço sozinho. A bengala avisa”. Ele tinha começado a usar esse recurso há um pouco mais de um mês. E agora, já pode fazer esse percurso sozinho. Seu Assis contava tudo isso logo depois que o amigo Antônio, que já usa há mais tempo, estava falando sobre o quanto essa ferramenta é importante para ele. “Se você olhar para mim, sem óculos, você fala: ‘Pô, esse cara tem deficiência?’ Você não vai perceber. É um sinalizador”, afirma Antônio.
E para além de sinalizar a deficiência visual, ela sinaliza qual o tipo. No caso deles, de baixa visão, a bengala é verde. A branca é usada por cegos e a vermelha e branca para aqueles que, além de cegos, são surdos. Todavia, Antônio conta um caso que foge à regra: “Aquela prateada é porque não tinha condição financeira para pintar a bengala. O alumínio só pega pó, é uma pintura cara”.
“Melhora muito a qualidade de vida deles, cem porcento”. É o que Maria Olinda Maia da Silva, psicopedagoga do Caee, comenta sobre o uso de equipamentos de auxílio para baixa visão. Assim como nos casos da bengala prateada, porém, não são todos os que têm essa possibilidade. “Alguns são caros, essa lupa de mesa é em torno de R$100, R$150. A gente tem alunos de todos os tipos, faixas carentes e alunos com condições financeiras que acabam doando as coisas para quem precisa. É uma rede de apoio”, completa.
E, sem dúvidas, essa situação dificulta o processo. É possível perceber isso a partir das histórias que ela conta. Imagine uma criança de 2 anos que precisa fazer o treino da bengala. E não tem condições de comprar. Ou então uma aluna que precisa de uma lupa eletrônica, mas não tem. Se tivesse, ela se desenvolveria muito melhor na escola. “Não tem como não influenciar”, assegura. O que acalma a situação é o que a Maria conta. No Caee, esses objetos que facilitam a vida daquele que tem baixa visão estão disponíveis. E lá, eles podem utilizar.
Além de fornecer os equipamentos, no Caee são feitos treinos para aprender a utilizá-los. Os professores explicam técnicas e saem com os alunos os orientando para ajudar na autonomia e independência. A ideia é que ao ouvir a toque da bengala nos diferentes lugares em que ela bate, os alunos consigam diferenciar os objetos. Seu Assis confirma a situação: “A bengala resolveu meu problema. Até em um supermercado, um carrinho daquele eu, às vezes, posso até esbarrar nele. Com a bengala não, bate primeiro. Sinaliza que tem um obstáculo ali”.
Além da bengala, são diversos os recursos que podem auxiliar a vida de uma pessoa com deficiência visual. Alguns podem aprender braille, sistema de escrita tátil ou até mesmo o soroban, ábaco japonês usado para cálculos. Telelupa, lupa de mesa e as configurações ajustadas no celular são as utilizadas pelo Antônio. O seu Assis usa óculos prismáticos.
As telelupas são recursos usados para visualizar de longe. “É como se fosse um monóculo. Você coloca e regula a distância”, diz. As lupas de mesa aumentam o tamanho de fontes para a leitura, mapas, gráficos, figuras ou qualquer outra coisa que precise de auxílio para visualização. Os óculos prismáticos têm lentes esferoprismáticas que ajudam na visão de perto.
Para usar o celular, Antônio utiliza fundo preto, ícones e teclados maiores e uma função de acessibilidade que faz a leitura do que está na tela. Ele conta também que há aplicativo adaptado para o uso de câmera e outro que você pode escanear algo para ouvir a leitura do que está na imagem. Já o seu Assis não utiliza esses recursos: “Só atendo o telefone. Eu sei ligar e receber”. Nesse mundo dos recursos tecnológicos, Maria conta sobre outras funções, como leitores de tela em computadores ou até mesmo um GPS adaptado.
Recursos ópticos são aqueles que a imagem visual é ajustada ou ampliada. É o caso das lupas de mesa, óculos e telelupas. Além desses, existem outros, como lunetas, sistemas telemicroscópicos, lupas manuais e o telescópio, usado para leitura no quadro negro.
Já a outra classificação são os não-ópticos, que mudam materiais e o ambiente para facilitar que a pessoa com baixa visão consiga enxergar. Nesse caso, são as fontes ampliadas, uso de acetato amarelo, que diminui a claridade no papel, mesa adaptada com plano inclinado, para conforto visual, e até mesmo uso de acessórios como lápis 4B ou 6B, canetas de ponta grossa e cadernos com linhas pretas espaçadas.
O contraste é outro aspecto que deve ser levado em consideração. Durante a visita ao Caee para conversar com seu Assis e Antônio, em uma mesa branca tinha vários objetos. “Eu tô vendo o celular, a caneta [que era inteira preta] e o estojo, o resto não”, explica. A dificuldade era ver óculos e canetas marca-texto coloridas, uma laranja e outra rosa. A professora do Caee Dolores pergunta: “Não deu para ver esses dois? Sem pegar”. Ele complementa: “Muito de leve”.
A professora explica que os contrastes que mais chamam atenção são as combinações de cores de amarelo ou branco com preto. E há as adaptações que as pessoas com baixa visão fazem no dia a dia. A toalha de banho de Antônio, por exemplo, tem um botão costurado para facilitar a identificação.
Sem dúvidas, esses equipamentos facilitam a vida de quem tem baixa visão. Para além das histórias do Antônio e do seu Assis, Maria conta sobre outros casos. Uma delas é sobre uma aluna que estava no sexto ano e ainda não estava alfabetizada. “Em três meses com ela, conseguimos um computador. Em seis meses, ela estava alfabetizada. Não era uma questão cognitiva, era uma questão visual”, ressalta. A pedagoga a ensinou a usar os recursos que as pessoas com baixa visão tem para auxiliar. E, rapidamente, ela aprendeu.
A (des)necessária ajuda
Antônio:
“Hoje de manhã, desci na praça e fui tomar meu café, veio um rapaz e perguntou: ‘Aonde você vai?’ Eu já não tinha a obrigação de falar, mas respondi: ‘Vou tomar um cafezinho’. O rapaz me apanhou e disse que ia me levar para tomar café, respondi que não”.
“Tira a mão, por favor”.
“Eu estou indo aonde eu quero, irei tomar meu café a hora que quero e com quem eu quero”.
Seu Assis:
“Uma senhora queria me ajudar a atravessar a rua, tinha fechado o sinal. Eu não atravesso com os carros parados, por segurança, atravesso na segunda parada. A senhora quis me auxiliar e quase trombamos com o carro. Não falei nada para não magoar a pessoa né”.
As situações relatadas pelos senhores Antônio e Assis exemplificam o que as pessoas PcDs são expostas no dia a dia, capacitismo. O termo é definido como uma forma de preconceito contra pessoas com deficiência, envolve uma pré-concepção sobre as capacidades que uma pessoa tem ou não devido a uma deficiência, e geralmente reduz uma pessoa a essa condição.
Os entrevistados falaram sobre as diversas vezes em que outras pessoas tentaram auxiliá-los, com abordagens que não seriam da mesma forma com pessoas não PcDs. Antônio relata melhor como essa preconcepção acontece com quem possui baixa visão: “O vidente, pessoa que enxerga, sempre acha incapacidade, ao invés de ter um diálogo antes acontece uma invasão, às vezes, é irritante, me tira a paciência. Você diz que não precisa de ajuda e ele quer insistir”.
Assim como o racismo, sexismo e discriminações contra a população LGBTQIA+, o capacitismo é também um problema estrutural. A maneira de tratar alguém que possua deficiência é historicamente construída. Desde a Grécia Antiga que os recém-nascidos com alguma deficiência eram colocados em uma vasilha de argila e abandonados. Até mesmo grandes pensadores como Platão, em A República, e Aristóteles, em A Política, trataram do planejamento das cidades gregas indicando que as pessoas nascidas com problemas deveriam ser eliminadas. Na Idade Média, pessoas com nanismo eram utilizados para entretenimento dos nobres; em seguida, surgem os “circos dos horrores” e, no século XIX,
Confira alguns exemplos de frases capacitistas para não utilizar mais:
1. Mais perdido que cego em tiroteio.
2. Finge demência!
3. Que linda! Nem parece que tem deficiência.
4. Inspiração! Deve ser tão difícil ter essa deficiência e eu aqui reclamando da minha vida. Você é um guerreiro (a)!
5. Ai, coitadinho, tem Deficiência! Que dó!
6. Nossa, você é retardado?
7. O pior cego é aquele que não quer ver.
8. Dar uma de João sem braço.
9. Que mancada!
10. Você, com essa deficiência, faz mais do que muitos que não são deficientes.
12. Achei que você era normal!
13. Está cego?
Como combater o capacitismo?
Além de parar de proferir frases como as citadas, é preciso estudar sobre o assunto, e pode ser de forma natural. Consumindo conteúdos de pessoas PcDs como Ivan Baron, que trata sobre essas questões de maneira leve e até divertida. Um começo para mudar essa realidade é enxergar e tratar o outro como ele é, uma pessoa com os mesmos direitos, sentimentos e necessidades que você. Ao abordar na rua ou em qualquer ambiente tendo esse pensamento já vai ajudar. “É simples, se você quer conhecer sobre deficiência visual, quer saber como me tratar, você tem que me ouvir”, ressalta Antônio.
Fora a conscientização que deve partir de cada um, ter atitudes capacitistas fere o artigo 4 da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) – (Lei nº 13.146/2015) “Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”. A Lei, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, é responsável por estabelecer direitos e garantias às pessoas com deficiência. O Estatuto começou a ser desenvolvido em 2008, contou com a participação de diversos setores da sociedade, incluindo organizações de pessoas com deficiência, representantes do governo e especialistas em direitos humanos. Foi aprovado pelo Congresso Nacional em 2015 e entrou em vigor em janeiro de 2016. Desde então, ele tem sido um importante instrumento para garantir a inclusão social das pessoas com deficiência no Brasil.
A reportagem é uma produção de Cecilia Sizanoski, Chananda Buss, Isabelle Gesualdo e Louize Lazzarim.